A gestação de um golpe – por Céli Pinto

Falareconomia1

Selecção de Júlio Marques Mota

 

A gestação de um golpe

Céli Pinto

Agradecimentos à autora, Céli Pinto, e a Camilo Joseph.

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Gostaria de refletir aqui sobre dois aspectos que reputo fundamentais para tornar o entendimento do que está acontecendo mais abrangente. A primeira se refere às condições de emergência para a crise que estamos vivenciando, e a segunda refere-se ao momento atual.

Sobre o primeiro, parece-me urgente tomarmos em consideração dois cenários: as manifestações no Brasil a partir de 2013 e a crise generalizada nas experiências progressistas na América Latina.

Em relação ao momento atual, a problemática central é que estamos, na maior parte das vezes, analisando os diversos atores da crise como se estivessem se movendo em um momento pré-golpe, quando o golpe já foi dado. Os golpistas agora estão empenhados em institucionalizá-lo. Mas vamos por partes, como dira aquele conhecido senhor inglês.

De 2013 a 2016, é visível a qualquer observador medianamente atento, uma trajetória da esquerda para a direita nas manifestações de rua.

Já em 2013 o quadro não era simples. Se, de um lado, havia o Movimento Passe Livre, o Bloco de Lutas no Rio Grande do Sul, os Black Blocs e uma esquerda anti PT, por outro, a grande maioria das pessoas que estavam nas ruas não pertencia a nenhum desses grupos. Era uma classe média jovem e despolitizada, que dizia ter saído do Facebook e que os políticos não a representavam, além de fazerem menção ao hino nacional dizendo que o gigante acordou. Entretanto, as violentas manifestações contra bandeiras partidárias e o entusiasmo da Rede Globo não foram suficientes, na época, para alguns analistas perderem o encanto com a juventude na rua, embalados por uma equivocada comparação com o movimento dos Indignados na Espanha.

2014 foi o ano da Copa do Mundo e das eleições presidenciais. Em relação à Copa, houve manifestações importantes de movimentos populares progressistas fortemente reprimidos pela polícia. Mas houve também muita gente pedindo um Brasil padrão Fifa. Muitos dos que estavam na rua em 2013 voltaram e foram em massa ao jogo de inauguração da Copa no dia 12 de junho, no estádio do Itaqueirão, em São Paulo. Nesse dia, dos setores mais caros do estadio começou uma grande e desrespeitosa vaia à presidenta da república, que nunca mais parou. Aquela vaia é simbólica, pois deixa claro quem ganhara a disputa discursiva das ruas. Tanto foi assim que, depois disso, Dilma Rousseff começou a significar tudo que a classe média brasileira não queria. Tudo o que estava engasgado nos últimos 12 anos.

Dilma ganhou as eleições presidenciais, mas quem ganhou as ruas, o discurso vitorioso foi o de classe média, conservador, que vinha se gestando desde as manifestações de 2013. Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, as ruas dos bairros de classe média alta das principais cidades do país estavam lotadas de gente que gritava a favor do candidato da oposição ao PT.

O que faltou nas ruas? O mesmo povo que faltou em 2013 e em 2014: faltou a massa de militantes e apoiadores do PT. Grande parte ainda votava no PT, mas não era mais suporte para o discurso de esquerda, ao pelo menos de um postura progressistas. Esta ausência é fundamental para entender a crise.

Não cabe aqui analisar a natureza deste fato, ou as causas do quase desaparecimento do discurso petista, mas vale apontar três razões, mesmo que rapidamente: escândalos de corrupção + presidencialismo de coalizão muito alargado + afastamento dos movimento sociais, o militante ou simpatizante passou a ser um mero cliente das boas políticas sociais do governo.

Tendo este cenário em mente, passemos à segunda caraterística da condições de emergência da crise: o debacle das experiências de esquerda na América Latina. O subcontinente teve uma onda de governos progressistas durante as últimas duas décadas, mas nos últimos anos tem sofrido reveses importantes: na Argentina, Cristina Kirchner não fez seu sucessor e foi eleito o ultra neoliberal Macri; na Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito que lhe daria direito à nova reeleição; Rafael Correa, no Equador, enfrenta sucessivas crises com parte da população indígena; na Venezuela, Maduro praticamente não consegue governar em meio a uma profunda crise econômica. No Peru, onde nunca chegou a haver um governo de esquerda, a filha do famigerado Fujimori se torna uma importante candidata de direita à presidência da República. No Brasil, temos a crise que todos conhecemos.

Não há coincidência nestes sucessivos eventos que colocam a esquerda de escanteio na América Latina. Em primeiro lugar, é necessário admitir que não é fácil governar, a partir de uma proposta progressista, países capitalistas com profundas desigualdades de classe , étnicas, raciais e de gênero. Com elites e classes médias com grandes privilégios vivendo quase em um regime de apartheid em relação às classes populares. O preço a pagar para conseguir o mínimo de governabilidade é muito alto. Parte expressiva da corrupção vigente nestes países é efeito destas dificuldades. Soma-se a isto uma crise econômica mundial, que baixou os preços dascomodities, trazendo consequências graves para as economias latino-americanas.

E finalmente, mas não menos importante, o reordenamento do capitalismo internacional frente à sua crise coloca os arautos de seus interesses neste países de prontidão para tirar proveito das crises internas e intervir nas riquezas nacionais através de programas neoliberais, que possibilitariam a desnacionalização ainda mais profunda das economias latino-americanas.

Estas são as condições de emergência da crise política que vivemos no Brasil. A diversidade de atores e interesses infiltraram-se no aparato estatal e tomaram de assalto o sempre citado Estado Democrático de Direito. Aproveitaram-se da independência, conquistada nos governos petistas pela Polícia Federal, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, para transformar as investigações sobre a corrupção no Brasil em um despudorado golpe contra o governo constituído. As instituições perderam a centralidade e agora dependem do senso de oportunidade ou do oportunismo de alguns de seus membros. O juiz Moro é um herói de ocasião, que passará para o rodapé da História rapidamente. Entretanto ele tem desempenhado um papel relevante, pois – sendo um juiz de primeira instância em um estado de pouca relevância política no país – foi alçado a grande autoridade. Prende, solta, manda buscar, com mandados coercitivos, quem ele decide, na hora que quiser, para irem até ele e possibilitar que exerça seu poder. Além do juiz também agora é sinônimo de Judiciário, os membros do Supremo Tribunal Federal. Somos mais de 200 milhões de pessoas, há um governo eleito com mais de 50 milhões de votos e dependemos da sorte de nenhum processo cair nas mãos de Gilmar Mendes, ou tudo poderá acontecer. Isto não se constitui mais em um poder da república, um golpe já foi claramente dado.

Soma-se muito de perto do poder Judiciário o Ministério Público. Não vou me ater aqui às trapalhadas de alguns membros do Ministério Público de São Paulo, risíveis ao exporem ao Brasil seu profundo primarismo intelectual, mas ao Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que mudou seu parecer em relação à nomeação do ex-Presidente Lula como ministro da Casa Civil porque, segundo ele próprio, leu um pouco melhor o processo. Isto é um escárnio, para não dizer um deboche das instituições, das autoridades constituídas, do povo brasileiro. Então o Procurador Geral da República, do alto de sua autoridade, dá pareceres desta importância sem uma análise cuidadosa? Será que o Dr Janot pensa ser possível acreditar em tal absurdo?

Mas o assalto ao Estado Democrático de Direito não pára aí, tem talvez seu ponto alto na presidência da Câmara de Deputados. O problema não é o que deputado Eduardo Cunha faz a partir de seu cargo, mas o que o Poder Judiciário, o Ministério Público e seus colegas de legislativo deixam ele fazer. As leis, as indignações, os falsos moralismos que valem para Lula ou qualquer político ligado ao PT que tenha seu nome mencionado mesmo de passagem por um delator de plantão em Curitiba, não são as mesmas que valem para o Dr Cunha. Ele continua mandando, apesar de citado pela banca internacional e pelos delatores nos porões das prisões de Moro, o que parece não ter importância. Ele fará o trabalho sujo e certamente será recompensado.

Se o Estado já foi tomado pelos golpistas, o que fazer? Parece que lutar a partir de dentro está muito difícil, se não impossível. A única possibilidade de reverter este quadro é uma grande mobilização popular, nas ruas nos sindicatos, com manifestações, atos públicos, abaixo-assinados, campanhas nacionais, uso total de todas as redes sociais, constante resposta aos pseudo-jornalistas da Rede Globo, pois há muitos jornalistas contra o golpe. Urge recriar o discurso progressista, a defesa das instituições tomadas pelos agentes do golpe. Urge trazer os partidos políticos para o protagonismo da batalha democrática. Há necessidade de uma frente popular. Há necessidade de politizar a política.

 

Céli Pinto é Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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