A UBERIZAÇÃO DA EUROPA VISTA ATRAVÉS DAS LEIS DO TRABALHO IMPOSTAS EM FRANÇA E NA ITÁLIA – 5. PROJECTO DE LEI EL KHOMRI E JOBS ACT ITALIANO. QUEM GANHA COM AS REFORMAS?

 

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Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

introdução

Projecto de lei EL Khomri e Jobs Act italiano. Quem ganha com as reformas?

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Federico Bassi*, Projet de loi El Khomri et Jobs Act italien. A qui profitent les réformes?

Libération, 28 de Março de 2016

 

Aqueles que imaginavam em 2012 que o governo socialista francês permaneceria nas nossas  memórias pelas   suas batalhas contra a Europa austeritária  estarão seguramente desiludidos (e)  e a  proposta muito  recente de reforma do código do trabalho faz-lhes correr o risco de ficarem ainda mais desiludidos.  O projecto de lei inscreve-se num  objectivo mais geral de flexibilização  do mercado do trabalho em nome “da flexisegurança”, esta mistura de flexibilidade do emprego e de  segurança dos assalariados e dos desempregados. O seu espírito é comparável ao da lei italiana Jobs Act . Sem estar a produzir os efeitos prometidos sobre o emprego, estas reformas inscrevem o código do trabalho na corrida europeia pelo dumping social e pela deflação.

A flexibilidade primeiro que tudo

O projecto de reforma de 2016 foi precedido nomeadamente do acordo nacional interprofissional de 11 de Janeiro de 2013 sobre a competitividade e a segurança do emprego (retomado na lei n° 2013-504 de 14 de Junho de 2013 relativo à segurança do emprego), que introduzia já uma boa dose de flexibilidade em  face das  seguranças previstas.

Pelo lado da flexibilidade, a reforma de 2013 introduziu  pela primeira vez a possibilidade para as empresas em dificuldade de ajustarem o tempo e remuneração pela via de um  acordo  maioritário, com o despedimento por motivos económicos, em caso de recusa do assalariado. Isso também facilitava os planos sociais (fixados por um acordo maioritário  com os  sindicatos ou por aprovação administrativa), bem como a mobilidade interna imposta sobre os trabalhadores por um acordo de empresa, sob a ameaça de despedimento por motivo pessoal em caso de recusa. Outras disposições da reforma de  2013: a possibilidade de privilegiar na ordem dos despedimentos económicos  a  ‘competência profissional’ e a redução do prazo de prescrição para contestar   o despedimento.

Pelo  lado da segurança do emprego, o acordo previa  sobre-cotizações  para o desemprego  sobre  os CDD (contratos de duração determinada)  pelo  “aumento da actividade” assim como previa   isenções  sobre as contribuições sobre os contratos  CDI para menores de 26 anos de idade. Previa igualmente   o acesso generalizado  a um  complemento de  saúde colectiva   com um conjunto mínimo de prestações  e direitos recarregáveis no seguro de desemprego, bem como uma conta pessoal  de formação alimentada anualmente  e com um tecto.

Este acordo de 2013, alargando o âmbito dos acordos de empresa  às  remunerações,   ao  tempo de trabalho e aos despedimentos, a CGT e FO  recusaram-se a assiná-lo  e  apelidaram-no de  “acordo da vergonha”. O Medef, por seu lado, tinha assinado, ao mesmo tempo que lamentava   que os pilares do direito do trabalho francês (salário mínimo, 35 horas e o contrato de duração indeterminada)  não tenham sido  suficientemente modificados.

Para além da flexibilidade: a inversão da hierarquia das normas e a eliminação das 35 horas

O projeto de lei de Myriam El Khomri dá hoje corpo  aos receios da  CGT e FO e aos sonhos do MEDEF, ao  desregulamentarem ainda mais o mercado do trabalho e descentralizarem as negociações para o nível da empresa.

Primeiro, este projecto facilita o despedimento pela extensão do campo de aplicação do despedimento económico bem como pela fixação de um limiar máximo (ou indicativo, de acordo com as novas declarações do executivo) de indemnizações no caso de despedimento abusivo. Além do mais,  por uma nova extensão do campo dos acordos de empresa chega-se à eliminação de facto das 35 horas, o tempo de trabalho passando a  decidir-se caso a caso  com base nas exigências da empresa. Assim, há temas da regulação do trabalho que são no seu todo  confiados aos acordos de empresa, considerando assim evitar  “as rigidezes” do direito e a negociação do  ramo.

Em nome de uma simplificação do código do trabalho, a ser reduzido  aos seus  princípios fundamentais, este projecto inverte a hierarquia das normas. O código do trabalho e os acordos de ramo teriam  apenas por vocação  definir os princípios ou a estrutura básica e eventualmente de compensar a falta do acordo de empresa. Os acordos de empresa passariam a prevalecer sobre os acordos mais gerais, de ramo, sobre os  acordos nacionais e a lei geral, que pretende estabelecer apenas as normas mínimas. Isso equivale a permitir que os empregadores venham a assumir   decisões a nível da empresa, aí onde as relações  de força são mais desequilibradas (em desfavor dos empregados) que ao nível dos ramos ou a nível interprofissional.  Tanto mais quanto a  possibilidade acrescida de se recorrer a um  referendo de empresa corre o risco de enfraquecer ainda mais os sindicatos.

Projeto de lei  EL Khomri e Jobs  Act: diferenças formais mas semelhanças substanciais

É interessante comparar o projecto de lei francês à lei italiana Jobs Act. Apesar das numerosas diferenças, existem semelhanças entre a reforma do mercado do trabalho de Matteo Renzi e o projecto de Myriam El Khomri, sobretudo no que respeita ao espírito destas reformas.

A lei Jobs Act   visava nomeadamente  facilitar o recurso aos contratos de  duração indeterminada criando uma nova forma de CDI, o  contrato de protecção crescente  (contratto a tutele crescenti-CTC). Atribuindo aos empregadores uma margem de manobra  importante sobre os despedimentos, acompanhando-a  de isenções de contribuições sociais generosas, este novo contrato é suposto substituir todas as formas de CDI  existentes (sem estar a excluir o recurso aos CDD nem a  outros contratos ainda mais precários). Além, do mais,  no prolongamento do projecto de simplificação dos despedimentos instituído pelo governo de Mario Monti, suprime-se  a protecção dos assalariados contra os despedimentos injustificados. Esta protecção era assegurada pela obrigação imposta  ao empregador de os reintegrar  na empresa no caso do tribunal do trabalho julgar   o despedimento injustificado ( tendo  o assalariado a  opção de preferir uma indemnização). Esta obrigação é mantida apenas em casos muito específicos (nomeadamente de discriminação). A possibilidade de reintegração foi assim substituída por indemnizações proporcionais à antiguidade ( as famosas  protecções crescentes), atingindo-se   um limite de  24 meses de salário (12 meses para as PME)

O projeto de lei EL  Khomri não contém um tipo novo de contrato como  o CTC acima referido, mas introduz igualmente  outras disposições similares  às de Jobs Act. Primeiro, se o governo francês recuou  parcialmente sobre o limiar máximo das indemnizações de despedimento sem causa real e séria, manteve a ideia de uma tabela indicativa em função da antiguidade do assalariado. Seguidamente, no projecto de lei francês, como no código do trabalho italiano, a remuneração das horas suplementares decidir-se-ia por acordo com um mesmo limiar mínimo fixado à 10% de majoração. Mas o projecto de lei francês vai ainda  mais longe na desregulamentação do mercado do trabalho e da descentralização das negociações, deixando aos acordos de empresa o cuidado de decidir do limiar, onde no código do trabalho italiano este limiar é fixado por acordos de ramo e não de empresa.

Estas duas reformas participam bem de um processo de convergência à baixa da protecção dos trabalhadores. Um elemento no projeto de lei EL  Khomri merece contudo uma atenção particular: o lugar central dado aos acordos de empresa, que representam  de resto um dos seus elementos mais controversos e que é em si-mesmo um factor  de desregulação e de fragilização dos assalariados nas negociações.

Quem ganha com estas  reformas?

A  questão   da flexibilidade é completamente central na análise económica dos 30-40 últimos anos. A actual corrente dominante em ciências económicos concentra a sua atenção sobre que chama “as rigidezes institucionais” que perturbam  o livre jogo da concorrência sendo suposto que assim se  permite  um ajustamento espontâneo dos mercados ao equilíbrio “óptimo” (sem que se saiba muito  bem  para quem é que este equilíbrio  é  exactamente  optimal). Os desequilíbrios económicos seriam por conseguinte o fruto destas rigidezes que o economista italiano Guido Carli definia como os Lacci e Lacciuoli (os laços e os laçarotes ) – que convém eliminar. A flexibilização é assim apresentada como o remédio à ineficácia e contra as distorções da concorrência sobre um mercado do trabalho demasiado rígido devido ao excesso de regulamentações; a reforma é suposta ser  no interesse de todos, sobretudo dos trabalhadores.

Os partidários das reformas que flexibilizam o mercado do trabalho, na Europa nomeadamente, apoiam-se sobre pressupostos teóricos da corrente económica dominante para afirmar que estas reformas reduzirão o desemprego. Não parecem de forma alguma incomodados pela abundância de trabalhos empíricos que mostram a inexistência de uma relação cientificamente provada entre a flexibilidade do mercado do trabalho e as  taxas de desemprego. O discurso sobre o  projecto de lei francês como na lei italiana Jobs Act demonstram uma ausência de tomada de consciência da  incapacidade destas reformas  lutarem  contra o desemprego. Mesmo as principais  instituições económicas internacionais, que durante muito tempo têm difundido o mito da flexibilidade, reconheceram o seu erro. A flexibilização  do mercado de trabalho, tendente a favorecer ao mesmo tempo a entrada e a saída do mercado do trabalho, tem efeitos ambíguos: os fluxos de entrada são compensados pelos fluxos de saída de maneira globalmente procíclica, o que torna o mercado excessivamente  reactivo em relação ao ciclo económico. Se o objectivo fosse realmente o de  aumentar  a taxa de emprego e de estabilizar o ciclo, seria então bem  melhor recorrer à medidas macroeconómicas que estimulam a procura para encher os cadernos de encomendas  das empresas   ou a formas de intervenção directa sugeridas por exemplo pelos partidários do Estado empregador de última instância.

As reformas tendentes a flexibilizar o mercado do trabalho pesam sobre as  dinâmicas salariais mais do que reduzem o desemprego. Numerosos economistas de resto sublinharam o papel destas reformas na zona euro, onde são elas que carregam o fardo  do ajustamento dos desequilíbrios  comerciais. A flexibilização  do mercado do trabalho traduziria primeiro a vontade de favorecer “uma desvalorização interna”, isto a fim de permitir aos países devedores de reganharem   em  competitividade-custo através da   baixa de salários e reduzirem  as suas importações ao deprimirem a sua procura interna.  A flexibilização do mercado do trabalho significa pois  também procurar um  ajustamento dos desequilíbrios comerciais que a moeda única teria contribuído para o seu forte aumento. É pois estar  a enfraquecer o poder de negociação dos sindicatos e dos trabalhadores. Mais do que uma solução para o problema do desemprego, a flexibilidade do mercado do trabalho prova-se ser, por conseguinte,  um instrumento de regulação do conflito salarial. Esta apresenta-se também como uma exigência incontornável de uma união monetária cuja estabilidade comercial assentaria  sobre as cinzas do conflito salarial. Tendo por efeito  fechar os países devedores numa espiral deflacionista  de custos  sociais e económicos não mensuráveis.

A reforma El  Khomri pesará assim principalmente sobre os sindicatos e os trabalhadores dos sectores mais sensíveis às pressões patronais, onde a ameaça de encerramento e de deslocalização será mais forte, sobre o principal terreno eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen.  Porque enfraquecerá ainda mais o poder de negociação dos sindicatos já afectado pela crise económica. Conhecem-se os objectivos dos referendos de empresa: introduzir o trabalho dominical (Fnac), o trabalho de noite (Sephora) ou o regresso às  39 horas pagas 37 (Smart). Estes referendos têm sido frequentemente  rejeitados  pela oposição de sindicatos que representam mais de 50% dos assalariados, uma oposição que deixaria de ser relevante no projeto de lei El  Khomri. O risco de conduzir a um recurso permanente aos acordos e aos referendos de empresa como meio  de renegociar princípios fundamentais que o código do trabalho deveria pelo contrário proteger, manifesta-se aqui em toda a sua  amplitude.

Federico Bassi, Economistas Aterrados,  LIBÉRATION,  Projet de loi El Khomri et Jobs Act italien. A qui profitent les réformes ? Texto disponível em ;

http://leseconomistesatterres.blogs.liberation.fr/2016/03/28/projet-de-loi-el-khomri-et-jobs-act-italien-qui-profitent-les-reformes/

Federico Bassi est doctorant en économie, chercheur à l’Université Sapienza de Rome et à l’Université Paris 13.

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