O NARCISISMO E POESIA NA LITERATURA por Rachel Gutiérrez

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(Continuação)

Esse Narciso que pode criar a si mesmo e o mundo outra vez é o poeta , pois o ato por meio do qual o homem se funda e se revela a si mesmo é a poesia, como afirmou Octavio Paz. Contudo, como se um vento tivesse encrespado as águas do lago, imagens se misturaram, idéias se confundiram. De que duplos poderes viris e femininos falava Bachelard ainda agora?

Pois ele acrescenta:

Quanto mais se desce nas profundezas do ser falante, mais simplesmente a alteridade de todo ser falante se designa como a alteridade do masculino e do feminino.

Nas profundezas do lago, é seu ser original que Narciso vem encontrar, um ser que ainda não se separou da totalidade, um ser em quem animus e anima ( palavras tão caras a Bachelard) ainda se fusionam em androginia primeva e cósmica.

Carl Gustav Jung, com quem Lou Salomé tem certamente mais afinidades do que se  tem ousado  apontar, demonstrou ser o psiquismo humano, em sua primitividade, andrógino. E não seria essa uma das explicações para o enamoramento de Narciso por si mesmo?

Para Lou Salomé, a bissexualidade se manifesta…

…como se fôssemos orientados pela constante presença de um parceiro (do outro sexo) dentro de nós para uma unidade mais elevada que, por isso mesmo, jamais se torna completamente unilateral.

E no diário de Viena, em uma entrada de 17 de outubro de 1913, Lou escrevera:

Na terminologia de Freud, a civilização do homem significaria uma elaboração da homossexualidade.

Voltemos, contudo,  ao Narciso que se detém, fascinado, diante das águas. A floresta que o circunda não se limita a refletir-se com ele no lago, habita seu olhar e o olhar de seu reflexo. Sabe-se que espelhos diante de espelhos produzem o infinito. E em face dessa totalidade inchada de si e inacessível, como diria Octavio Paz, Narciso tem uma vertigem. Ele acaba de ver a vida e a morte . Será por isso que seu olhar é triste? Lou Salomé nos diz :

… a tristeza de Narciso ( tristeza nascida de sua lenda  e desse amor voltado para si-mesmo) se encontra aí  singularmente agravada pelo caráter inorgânico , não vivo, daquilo no qual ele “se” reflete.

O caráter inorgânico das “desmoronadas pedras impassíveis” ?

A visão de Lou do processo criador se nutre principalmente da experiência poética de Rainer Maria Rilke, cujo poema Narziss , que ela  havia copiado  em seu diário de Viena , reaparece (incompleto)  no ensaio O Narcisismo como Dupla Direção.

Ela explica:

…aquilo que se escapa dele, incapaz de ser retido pelo “meio dócil” só adquire seu pleno poder graças à matéria morta junto à qual ele parou         para confrontar-se.

E acentua :

…ao mesmo tempo,  naquilo que escapa de Narciso está alusivamente indicado por que é assim: por que essa experiência tão triste é a tal ponto inelutável – e é porque Narciso se dissolve igualmente à maneira do Criador ( “ no ar e nas sensações do bosque”) porque ele não se choca com recusa alguma – porque dá vida, por sua vez, àquilo que foi declarado morto, ao externo, ao vis-à-vis, porque sua vida se estende para muito além.

Para além da exaltação do poeta como ser privilegiado e demiúrgico, Lou Salomé admite a necessidade da dissolução dele, à maneira do Criador, na própria obra,  como sugerem os versos rilkeanos. E parece entender que a tristeza de Narciso se deva à tomada de consciência de que a vida e a morte são uma e a mesma coisa. Pois , em seu Rainer Maria Rilke,  livro consagrado ao poeta no ano seguinte à morte deste , um ensaio-elegia, Lou afirma que desde o começo,  mesmo quando enfatiza a morte ou a mortalidade, ele quer referir-se menos à  morte do que à totalidade da vida e da morte. Pois,

…a poesia representava para ele uma realidade onde (morte e vida) são a mesma coisa.

Além disso, é  possível que diante da grandeza do Todo refletido no lago, Narciso sinta toda a gravidade de sua tarefa, todo o peso de sua imensa vocação: ele precisa dizer o mundo e esse dizer deve ter força suficiente para instaurar um novo mundo. Pois dizer e criar como poeta é transformar-se em lago onde a vida e o humano podem mirar-se. A Poesia nos abre a possibilidade do ser que encerra todo nascimento: ela recria o homem como totalidade: vida e morte em um só instante de incandescência…, diz Bachelard em L’Intuition de l’Instant. E ofenomenólogo do imaginário afirmava que para um sonhador de lago, a água é o primeiro olhar do mundo. Sim, a água, elemento primordial de Thales de Mileto , mais antiga ainda, que decorre da vasta tradição mitológica, presente em todas as teogonias e cosmogonias que vieram do Oriente para a Grécia, a água do Caos aquoso que gerou o Cosmos… A água que no lago de Narciso se transforma no espelho mágico que opera a transição para a poesia, ou a conversão narcísica em criação artística.

À luz dessa expressão de Lou Andreas-Salomé, podemos dizer que o Narciso-poeta se alimenta do mundo que ele viu e revê em seu lago interior, esse espaço privilegiado da consciência poética, onde as imagens renascem transfiguradas, úmidas ainda, surgindo das águas cósmicas iniciais. Pois Narciso mergulha o olhar nas profundezas da infância humana comum, no infinito de si mesmo, no reino sem fronteiras da imaginação criadora.

Referindo-se a um outro poema – Wendung , que   se pode traduzir por transição, mudança, transfiguração – , que Rilke lhe enviara de Paris, em 1914, Lou acompanha o processo do poeta para ilustrar o que ela entende por conversão narcísica:

Existe aí como que o anúncio da conquista de um reino novo, cujas fronteiras não podem ser vistas claramente, a não ser pelo pressentimento; pressentem-se degraus, passeios cujos caminhos estavam até agora mergulhados na bruma. E uma réstia de luz que permitisse apenas ver um passo diante de si equivaleria , de um poema ao outro  ( do Narziss ao Wendung ) a pousar realmente pela primeira vez o pé num domínio onde (…) a iluminação e a ação se confundem ainda; essa experiência só pode se tornar poema na medida em que for reconquistada do vivido.

O novo poema vinha confirmar as impressões do Narziss do ano anterior e reafirmava a noção de que o poeta, mais do que ninguém, expressa um sentimento oceânico da vida e a certeza de que à unificação primeira – narcísica – com o Todo, corresponde uma reunificação na nova realidade criada pela arte. Lou acrescenta:

É em algum lugar, lá nas profundezas, que toda arte começa outra vez, como em sua origem mais longínqua quando era fórmula mágica, conjuração – injunção feita à vida humana para sair de seus abismos ainda insondados – (…)

A fonte ou o lago de Narciso é a consciência do poeta. E a consciência, como diz Sartre, é o oco do ser, um vazio preenchido pelas imagens do mundo, habitado pelo mundo. No lago narcísico, o externo se interioriza no primeiro momento do processo. E se a ninfa Eco definha e morre é porque não consegue ser a verdadeira anima de Narciso, ainda que Bachelard acredite reconhecê-la sempre ao lado do belo jovem,  repetindo o que ele diz  e sendo para ele um alter-ego, a sua ressonância. Pois Narciso a deixa morrer e só então se enamora, mas de si mesmo.

E o si-mesmo de Narciso é o Outro do poeta, seu duplo. A verdadeira solidão consiste em estar separado de si-mesmo, em ser dois. Todos estamos sós porque todos somos dois. O estranho, o outro é o nosso duplo, diz Octavio Paz. Mas esse Outro é também o mundo: natureza habitada por deuses , ou criada por Deus, o mundo exterior está aí, diante de nós, visível ou invisível, como nosso horizonte necessário. Anjo, pedra, animal, demônio, planta, o “outro” existe, possui sua vida própria e às vezes se apossa de nós e fala por nossa boca.

Narciso-poeta se enamora do si-mesmo-mundo dentro dele, ou melhor, se enamora de seu próprio estar-no-mundo.  Se não fosse assim, como poderia cantar? Pois é em seu enamoramento que adquire a faculdade de formar imagens que cantam a realidade, como diz Bachelard, e por isso mesmo ultrapassam a realidade, dando vida àquilo que sem ele seria declarado morto, como diz Lou Salomé. Contudo, sem que isso signifique que deseje morrer, Narciso-poeta enamora-se também da própria morte, pois vive próximo não apenas do lago e da floresta nele refletida mas também do místico, que diz  me muero por que no muero ,  e do filósofo,  para quem “filosofar é aprender a morrer”.

E a morte pode significar o retorno ao Todo, à origem, à fonte cósmica de onde tudo vem e para onde tudo deve regressar. Para Rilke, a morte é fruto, colheita, resultado, recomeço ou retorno. Pois só a morte torna a vida completa.  A gente morre é para provar que viveu , disse João Guimarães Rosa.

O Narciso-poeta é o que vive a experiência da paixão até o fim e ultrapassa a morte para renascer em cada primavera como flor acrescentada ao lago. Se não conseguir ultrapassar o segundo momento de seu processo – aquele em que se atormenta com a impossibilidade de tocar ou abraçar seu Outro no espelho das águas – , deve definhar e morrer, pois não terá sido um Narciso-criador, um novo Prometeu plenamente realizado,  capaz de fundar uma segunda realidade e a si mesmo, como o define Lou Salomé.

O verdadeiro Narciso não vai buscar seu Outro num rio caudaloso e agitado, nem nas ondas do mar. Ele precisa é de sua fonte, de seu lago de águas tranqüilas que refletem o céu. Porque aquilo que se escapa dele, (sua criação) … que o meio dócil não retém, só adquire seu pleno poder , só atinge sua vida verdadeira – a vida reconquistada pela arte – graças à matéria morta junto à qual ele se deteve para dela fazer o seu espelho.

Essa matéria morta é a matéria das imagens do inconsciente do poeta. Matéria morta porque adormecida, caída – como as pedras no fundo do lago. Ora, a poesia , como diz Bachelard, é uma função de despertar. Narciso será poeta na medida em que for capaz de despertar as imagens “mortas” ou adormecidas, trazendo-as das profundezas para a superfície.

(Continua)

 

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