CONTOS & CRÓNICAS – O ESCRITOR DA SEMANA – NOVA CARTA DE MAURÍCIO VILAR – João Machado/3

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Desculpe, cá estou eu novamente. É que a situação agravou-se ainda mais. Apareceram-me ainda mais dificuldades. Nestes últimos dias tenho estado muito ocupado a preparar a frequência de que lhe falei na última carta. De manhã meto-me no meu quarto a ler os livros e os cadernos que tenho, mas confesso-lhe que o faço com pouca vontade. Quando percebo que a minha mãe já mergulhou na televisão, ponho-me a ler outra coisa ou adormeço. Mas à tarde, logo a seguir ao almoço, saio e vou para a faculdade. Com companhia, consigo estudar melhor. Há muitos estudantes assim, que conseguem fazer os seus cursos no café, ou nas bibliotecas. Digo adeus à Heloísa (a minha mãe dava cabo de mim se soubesse que a trato assim, mesmo numa carta), depois de lhe descrever minuciosamente os meus planos para a tarde, e lá vou eu.

A maior parte do tempo estou na cantina a estudar na companhia de uma colega. A matéria é muito chata, não o vou agora maçar com as dificuldades que levanta. Felizmente a minha colega Maria da Luz dá-me uma grande ajuda. É uma rapariga de uns quarenta anos, assim baixinha e gorducha, um pouco míope, mas muito inteligente e estudiosa. Simpatiza muito comigo, e espanta-se quando falto a um exame ou frequência. Quando sabe dos meus fracassos ralha sempre muito comigo. Insiste constantemente que tenho de estudar mais, e faz-me longas prelecções sobre a matéria. E imagine, dá-me sempre cópia de umas cábulas que ela prepara cuidadosamente, com uma letra miudinha, mas muito legível, e que disfarça em várias partes do vestuário, não sei bem quais. Agradeço-lhe sempre muito, mas confesso que raras vezes me sirvo das cábulas. Não por respeito ou por receio, acredite, mas porque, como já sou muito conhecido dos professores que tomam conta dos exames, sou muito vigiado. A Maria da Luz tem um ar muito sério, só está há quatro anos na faculdade e já está a acabar o curso. Devem achá-la de toda a confiança. Pelo que me tem contado, percebi que trabalhou muitos anos numa loja, mas entretanto morreu o dono e deixou-lhe uma data de dinheiro. Os filhos do dono ficaram com a loja, que fica ali para o Chile e rende imenso, com bastante lucro. Mas a Maria da Luz preferiu despedir-se e tirar um curso. Ao que parece tinha essa ambição desde muito nova.

Mas hoje estou a escrever muitos apontamentos no meu caderno, e consegui que a Maria da Luz ficasse toda contente. E confesso-lhe que a tarde foi proveitosa, porque consegui avançar no estudo. Já eram quase sete horas da tarde quando me vim embora. Paguei um café à minha colega e vim para o metro. Estava a abarrotar e tive de me apertar até chegar à paragem do Caldas, mesmo ao pé da minha casa. Subo a escada de saída, e quem havia de encontrar? A Maria Antónia. Veio mesmo de encontro a mim. Mostrou-me o seu maior sorriso. Pensei logo: “Estou tramado!”. Com toda a lata, perguntou-me:

– Então, quando me vai visitar?

– Não sei. – gaguejei.- Não tenho podido…

– Ah, seu maroto! Anda aí de volta das colegas! Ainda vou fazer queixa à sua mãe!

– Pelo amor de Deus, não diga essas tolices! – retorqui  pondo um ar enfastiado.

– Ai agora o Jesus é para aqui chamado! Diga-me uma coisa, quando volta à pensão da D. Generosa?

– Não sei. Bem vê, tenho muito pouco dinheiro…

– Deixe-se disso. Tudo se resolve.

Pregou-me um beijo na cara, e arrancou, escada abaixo. Fiquei ali especado, uns bons minutos. Depois, dei um suspiro, que fez voltar a cabeça a uma velhota que passava, e continuei a subir a rua.

Cheguei a casa, e encontrei a minha mãe a dormir em frente à televisão. Sentei-me ao pé dela. Acordou estremunhada e perguntou-me:

– Já chegaste? Que horas são?

– Quase oito horas. Podemos ver o telejornal?

– Sim. Tenho o jantar pronto desde as seis. Estudaste muito?

– Muito. Tenho a frequência preparada.

– Que bom. Quando acabar o telejornal vamos comer.

E assim foi. Imagine que ainda estive a ver a telenovela com a minha mãe. Ela adormeceu logo. E eu vim escrever-lhe.

Obrigado

5 de Julho de 2014

Maurício Vilar

 

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