A CRISE AUSTERITÁRIA E A QUADRATURA DO CÍRCULO – REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA ECONOMIA, DO PENSAMENTO ECONÓMICO E DA DEMOCRACIA – TEXTOS DE REFERÊNCIA PARA ENTENDER A REALIDADE PRESENTE – B) BILL MITCHELL. 2. SOBRE OS DÉFICES PÚBLICOS. O QUE NÃO PODE IGNORAR – III

Obrigado ao blog do tirloni.
Obrigado ao blog do tirloni.

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

Bill_Mitchell_wiki_photo

Coisas básicas sobre os défices

bottlebrushheader980

Bill Mitchel, Budget deficit basics

Billy blog, 4 de Abril de 2011

(conclusão)

O problema é que o mito tornou-se parte do folclore em que operam e então ouvem-se mesmo os progressistas a  falarem desta preocupação  (como se mencionou  acima, com o exemplo do Japão).

Como um aparte, reconhecendo que os bancos centrais podem directamente financiar ( facilitar)  as despesas públicas sem recurso aos mercados privados de dívida os neoliberais  estão na verdade a admitir que não  há nenhum constrangimento  financeiro sobre as despesas públicas. É por isso são tão ruidosos  sobre a inflação.

Há  pois  na  argumentação neoliberal muitos erros na lógica e nos factos  – entre os quais estes problemas chaves:

  1. Os bancos centrais não podem controlar a oferta de moeda. Leia por favor o meu texto – Understanding central bank operations – para mais discussão nesta matéria .

  2. Não há nenhum multiplicador de moeda – leia por favor o meu texto – Money multiplier and other myths – para mais discussão nesta matéria.

  3. A expansão da base monetária não provoca a inflação. Leia por favor os seguintes blogues – Building bank reserves will not expand credit e ainda Building bank reserves is not inflationary – para uma discussão  adicional.

  4. O banco central estabelece a taxa de juro – leia por favor o meu texto – Will we really pay higher interest rates? – para mais discussão nesta questão.

  5. O aumento das despesas públicas  não coloca nenhuma pressão à alta  sobre as taxas de juro – leia por favor meu blogue – Will we really pay higher interest rates?  – para mais discussão nesta questão.

  1. O governo nacional não tem nenhum constrangimento financeiro e as operações monetárias que podem estar  associadas com as despesas públicas não alteram o impacto dessa despesa.

O governo gasta da mesma forma, independentemente dessas operações. O governo  credita as contas bancárias (ou credita-as  indiretamente mediante a emissão de cheques). Esta despesa acresce a procura  agregada  e aumenta o emprego e a produção  – tanto quanto  há também aumento da capacidade produtiva.

A realidade pode ser que o Tesouro pode instruir o banco central para creditar algumas  contas bancárias e alguns registos contabilísticos no âmbito da Administração podem  ser  alterados. A contabilidade não tem aqui nenhum interesse para nós economistas neste contexto.

Alternativamente, o Tesouro pode instruir alguns organismos públicos para fazer uma emissão  de títulos a coincidir com o aumento da despesa . A despesa irá ocorrer da mesma forma mas neste caso  a contabilidade para a emissão de dívida é um pouco diferente (como veremos), mas sem nenhum significado quanto à própria despesa em si-mesma.

Os economistas  neoliberais afirmam que a criação de base monetária  (vista como o governo a solicitar ao banco central para que compre  títulos do Tesouro o que leva este  então a imprimir moeda) significa que a despesa extra causará inflação acelerada porque haverá “muito dinheiro a querer comprar muitos poucos bens “.

Mas na verdade as economias responderão  ao acréscimo da  despesa agregada expandindo a produção  a não ser que eles não possam  fazer isso. Quando é que pode haver esta limitação à expansão da produção? Na situação de  pleno emprego. Nesse caso, porque é que um governo continuará a expandir a sua despesa  nominal  se eles sabem que não podem obter  mais produção (e emprego) na economia em questão ?

A maioria das economias normalmente estão constrangidas por uma procura deficiente (definida como uma procura abaixo do nível de pleno emprego) e assim o aumento da procura nominal (crescimento na despesa pública) não nos vai levar a inflação.

Assim,  quando os governos estão a aumentar os seus  défices para compensar um colapso no consumo privado, há muita capacidade produtiva por utilizar e a permitir o aumento da produção  ao invés de  ir aumentar a inflação. Também pode imaginar  que o risco de inflação vem da despesa – não  da ginástica  contabilística que  é realizada – ou seja, se o governo  contrai “um empréstimo sobre si-mesmo ” (troca  de informações contabilísticas  entre o Tesouro e o Banco Central) ou se contrai um empréstimo junto  do público (troca de moeda banco central contra títulos).

Então essas operações monetárias (criação de base monetária/emissão de dívida ) nem aumentam ou diminuem o risco de inflação associado com a despesa pública. O que importa aqui é saber se existe capacidade não utilizada na economia para aumentar a produção, quando um aumento da  despesa se verifica na  economia. Se há capacidade não utilizada, então  o risco de inflação é baixo ou  inexistente.

Se não há então   o risco de inflação é alto – emita-se dívida ou não !

Mas e acerca da argumentação de  que a emissão de dívida  é menos expansionista porque a emissão  absorve  a capacidade de despesa privada?

O que acontece quando um governo soberano, um governo que dispõe do poder de emitir moeda, (com  uma taxa de câmbio flexível) está numa situação de  défice público  sem emissão de dívida?

Tal como todas as despesas públicas, o Tesouro creditaria  as contas de reserva detidas pelo  banco comercial junto do  banco central. O banco comercial  em questão estaria onde o objectivo a atingir com a despesa pública tivesse uma conta. Assim,  os activos e passivos do banco comercial  também aumentam porque vai-lhes ser registado  um depósito.

As transações são claras: aumentam os ativos do banco comercial e também cresce o seu passivo porque teve lugar um novo depósito. Além disso, o objectivo a atingir com a  iniciativa orçamental desfruta do aumento dos activos (depósito bancário) e dos resultados líquidos (um registo contabilístico passivo/capitais próprios no balanço ). A tributação faz o oposto, e por essa razão um défice  ( despesa maior do que a receita ) significa que as reservas aumentam  e aumentam os resultados líquidos privados.

Isto significa que é provável  haver um  excesso de reservas no “sistema de caixa ” o que então levanta questões para  o banco central sobre a gestão de liquidez. O objectivo do banco central é “fixar ” uma taxa de juro como objectivo  e deve então  assegurar que a concorrência  force o mercado interbancário a não comprometer este objecto.

Quando há excesso de reservas há uma pressão à descida da taxa de juro overnight (com os bancos a  procurarem obter oportunidades de ganho), o banco central, em seguida, tem de vender títulos do governo aos bancos para absorver o excedente de liquidez e colocar a liquidez  a um nível compatível com o alvo por si definido. Alguns bancos centrais oferecem  um retorno sobre as reservas overnight o que reduz a necessidade de vender dívida como uma operação de gestão de liquidez.

Estas vendas de dívida não “financiam”  os défices públicos  – elas são uma operação monetária destinada a manutenção de taxas de juro. Então a massa M1 (depósitos no setor não-governamental)  aumenta  como resultado do défice sem que haja um aumento correspondente no passivo. É este resultado que leva à conclusão de que os défices  aumentam os activos financeiros líquidos no setor não-governamental.

O que aconteceria se houvesse  uma venda de títulos? Tudo o que acontece é que as reservas dos  bancos são reduzidas pelo montantes  das vendas dos títulos  mas isto não reduz os depósitos criados pelo défice. Então o valor patrimonial líquido do setor não-governamental não é alterado. O que muda é a composição da carteira de ativos mantida no setor não-governamental.

A única diferença entre o Tesouro “contraindo empréstimo  junto  do banco central” e emissão de dívida para o setor privado é que o banco central tem de utilizar  diferentes operações para alcançar e manter a sua política de taxa objectivo. Se a dívida não é emitida para compensar o défice, em seguida, tem de pagar juros sobre o excedente  de reservas (o que   muitos bancos centrais  estão actualmente a fazer) ou deixar a taxa alvo cair para zero (a solução do Japão).

Não há nenhuma diferença quanto ao impacto dos défices  sobre o  património líquido no setor não-governamental.

Os economistas neoliberais  diriam  que drenando as reservas, o banco central reduziria a capacidade dos bancos de concederem empréstimos o que, então, através do multiplicador monetário expande a oferta de moeda.

No entanto, reexaminemos  os erros da  lógica acima descrita quanto à forma como os neoliberais utilizam a ideia de constrangimento em termos de défice público :

  • A constituição de reservas nos  bancos  não aumentam a capacidade dos bancos para concederem empréstimos. Estes não  precisam de reservas para concederem empréstimos. Os bancos emprestarão se há clientes dignos de crédito,  independentemente das operações que acompanham os défices  públicos. Leia por favor o seguinte  texto  – Building bank reserves will not expand credit.

  • O multiplicador monetário   não descreve adequadamente o processo da criação do crédito – isto é, a maneira como  os bancos concedem  empréstimos.

  • A inflação é provocada  pela procura agregada que cresce mais rapidamente do que a capacidade de produção efectiva. A posição da reserva dos bancos não está  funcionalmente relacionada com esse processo. Leia por favor o seguinte texto  – Building bank reserves is not inflationary – para uma discussão mais aprofundada .

Isto leva-nos  à conclusão de que os défices públicos  não implicam  um risco de inflação. Todas as componentes da procura  agregada carregam um risco de inflação se estas componentes se tornam  excessivas, o que só podem ser definido  em termos de relação entre a capacidade produtiva e a despesa. Pode acontecer que no nosso  exemplo um défice de 6 por cento com pleno emprego pode ser demasiado  expansionista.

Não há nada aprioristicamente que o sugira. Não há nada de intrinsecamente  interessante sobre um défice de 6 por cento ou sobre um défice de 2 por cento. Tudo depende das contribuições das despesas  dos três setores (governo, sector privado e sector externo e interno).

Se um défice de 6 por cento – que é um fluxo de despesa  – adiciona demasiado poder de compra  à procura agregada (despesa) ao nível do pleno emprego e não é compensado  por drenagem da procura  proveniente do sector externo (défice  comercial) e pelo  setor privado interno  (poupança global ) – então a MTM  fornece orientações claras para a política económica.

Enquanto o governo está  satisfeito com o mix da política público-privado  da atividade então terá de cortar no seu défice para evitar a pressão da procura à alta dos preços. Se ele quisesse  mais actividade  pública e menos privada, poderia fazê-lo  aumentando os impostos e cortando pois no rendimento disponível do  sector privado.

Mas a afirmação de que as  aplicações privadas em títulos da dívida  reduzem  o risco de inflação é totalmente falaciosa. Não reduzem.

Conclusão

Espero   que isto esclareça algumas das questões candentes que são atuais, mas muito obscurecidas pelos errados comentários públicos.

Os défices orçamentais são importantes, pois eles são a maneira que o governo pode utilizar para aumentar a procura agregada  e assim influenciar os níveis da  produção e do emprego. Se adicionam muita procura  nominal então, o governo irá provocar tensões inflacionistas. É realmente muito simples.

Mas o valor  do défice público  que está associado com o  máximo da  produção e do emprego é sem significado. Os únicos objetivos verdadeiramente legítimos  que o governo deveria procurar alcançar são  os objectivos  reais  – emprego e produção  – mas se se concentrar em determinados resultados orçamentais (orientado pelo estrito cumprimento das regras orçamentais)  poderá muito  provavelmente frustrar essa legitimidade.

Bill Mitchell, Budget deficit basics, texto disponível em:

http://bilbo.economicoutlook.net/blog/?p=14044

________

Para ler a Parte II deste texto de Bill Mitchell, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

A CRISE AUSTERITÁRIA E A QUADRATURA DO CÍRCULO – REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA ECONOMIA, DO PENSAMENTO ECONÓMICO E DA DEMOCRACIA – TEXTOS DE REFERÊNCIA PARA ENTENDER A REALIDADE PRESENTE – B) BILL MITCHELL. 2. SOBRE OS DÉFICES PÚBLICOS. O QUE NÃO PODE IGNORAR – II

 

Leave a Reply