JÁ O TEMPO SE HABITUA, de JOSÉ AFONSO

Imagem1Letra e música de José Afonso

In Contos Velhos, Rumos Novos, 1969

Já o tempo

Se habitua
A estar alerta

Não há luz

Que não resista
À noite cega

Já a rosa

Perde o cheiro
E a cor vermelha

Cai a flor

Da laranjeira
À cova incerta

Água mole

Água bendita
Fresca serra

Lava a língua

Lava a lama
Lava a guerra

Já o tempo

Se acostuma
À cova funda

Já tem cama

E sepultura
Toda a terra

Nem o voo

Do milhano
Ao vento leste

Nem a rota

Da gaivota
Ao vento norte

Nem toda a

Força do pano
Todo o ano

Quebra a proa

Do mais forte
Nem a morte

Já o mundo

Se não lembra
De cantigas

Tanta areia

Suja tanta
Erva daninha

A nenhuma

Porta aberta
Chega a lua

Cai a flor

Da laranjeira
À cova incerta

Entre as vilas

E as muralhas
Da moirama

Sobre a espiga

E sobre a palha
Que derrama

Sobre as ondas

Sobre a praia
Já o tempo

Perde a fala

E perde o riso
Perde o amor

Obrigado a Vagalume. In Cantar de Novo, págs. 72-74, Nova Realidade, 1970.

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