1. No dia 22 Fevereiro de 1984 : Antenne 2 criou o acontecimento “Viva a crise!”

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Parte I


(Sophie Bourdais, YTelerama, 2 février 1984)

IVES_MONTAND

Vinte e quatro anos antes de “A França em falência? ”, às 16h 30mn sobre France 5, a televisão de serviço público tentava já a vulgarização económica militante. Fechem os olhos, concentrem‑se, deixem invadir-se pelo vazio: aí está, regressámos a Fevereiro de 1984, ao tempo em que Yves Montand e os seus camaradas economistas (neoliberais) gritavam: “Viva a crise!”

A viagem no tempo existe, testei-a. A máquina, ultra-eficiente, está situada à dois passos de Télérama, no edifício Leste da biblioteca François-Mitterrand. Chama-se Inateca. Graças a ela, em meados de Novembro, bastou-me alguns minutos para regressar a 24 anos antes, ao tempo onde a paisagem audiovisual francesa, PAF, contava apenas três cadeias, onde a France 2 se chamava ainda Antenne 2 , onde Noël Mamère apresentava o jornal do meio-dia, e onde os socialistas reinavam desde há três anos sobre uma França (já) em crise.

Reexaminar Viva a crise!, difundida a 22 de fevereiro de 1984 às 21:40, é balançar num universo onde todas as extravagâncias formais são autorizadas desde fazerem avançar a objetivo, o qual é pedagógico em sentido forte do termo : não se age de destilar uma lição de economia cheia de nuances e de contradições mas sim de imprimir uma mensagem claramente neoliberal no consciente e no inconsciente do espectador. À maneira de Orson Welles que anuncia a chegada do Marcianos, e desde o estúdio do telejornal das e 20 horas onde tinha estado uma hora antes, Christine Ockrent arrasa em quatro minutos o moral das famílias francesas anunciando uma forte redução de todas as prestações sociais. Se Yves Montand, o Sr. Leal da emissão, restabelecer imediatamente a verdade, é apenas para repercutir melhor sobre a plausibilidade das falsas medidas anunciadas, e denunciar o egoísmo dos Franceses, que vivem melhor do que dizem, que dependem muito frequentemente do Estado, e recusam aceitar terem de fazer esforços que tirariam o país do seu inegável declínio económico, tecnológico e humano.

Viva a Crise !

As precisões são trazidas por Michel Albert, antigo Comissário no Plano, especialista das questões económicas europeias, principal convidado e pilar intelectual da emissão (o seu livro, o Mal francês, foi a base para o cenário escrito por Jean-Claude Guillebaud). Para a edificação de Montand e do telespectador, Michel Albert descreve uma Europa “em vias de falhar a terceira revolução industrial” (a da informática e da electrónica), que “começa a deslizar para o subdesenvolvimento” e cujos países-membros se disputam uns aos outros em vez de procurarem juntos a melhor maneira de saírem da situação de crise que se instalava na Europa. Mais tarde, Michel Albert administrará um pequeno curso de economia sobre o monetarismo e o keynesianismo, e explicará porque nem um nem o outro dão resultados satisfatórios. Mas Viva a crise! não abusa dos comentários sábios. Prefere espetacularizar o seu objetivo utilizando expressões do tipo “e se? ”, método bem conhecido dos amadores de ficção científica. Isto dá, por exemplo:

  • E se o México fizesse entrassem em falência e anulasse unilateralmente a sua dívida internacional? Ei!, bem, isso fragilizaria todo o sistema bancário ocidental, os bancos americanos, que emprestaram demasiado aos países em via de desenvolvimento, reencontrar-se-iam em estado de falência, Reagan reagiria demasiado tarde, o Parlamento francês deveria legislar em urgência para impedir o contágio, e as restrições monetárias que se seguiriam poderiam pois conduzir a uma baixa da produção industrial e do poder de compra, a um aumento de 110% das falências de empresas e à explosão do desemprego. Má notícia.
  • E se mandassem todos os trabalhadores imigrantes para os seus respetivos países? Bem, Paris iria ficar submerso com o lixo não recolhido (sic), o sector automóvel, o edifício e a indústria em geral tornar-se-iam periclitantes e os países de origem cortariam relações diplomáticas. Má ideia.
  • E se projetássemos as previsões feitas por um historiador para daqui a 30 anos, ou seja no futuro relativamente próximo, para contar como é que a grande crise da década de 1980 arrastou, através da falência dos sistemas de proteção social, o colapso do sistema democrático e o retorno à Idade Média? Isto daria um longo plano um pouco tremido e terrivelmente kistch sobre Henri Amouroux a vaticinar sobre o horrível ano de 1990 e as suas consequências sinistras. Isto permitiria reenviar o espectador para a segunda guerra mundial, precedida, como sabemos, da grande depressão de 1929. E levantar uma hipótese interessante: não será que a França precisa de uma boa guerra para reanimar a sua economia falida? Não, é o se diz na análise muito a sério feita pelo animado jovem que é Alain Minc, outro convidado vedeta de Viva a crise! : agora que a guerra potencial é de natureza termonuclear, a questão não pode mesmo ser posta, porque não haverá mais proporcionalidade (re-re-sic) na destruição em grande escala. Ficamos pois tranquilos.

Acham tudo isto deprimente? Estão errados, se assim pensam. A melhor parte da emissão, é a última, intitulado “A crise? Viva a crise! ” E Michel Albert compara a situação da França a um parto, onde “o que está sujo e que mete medo” (re-re-re-sic) não nos poderá fazer esquecer o milagre que é o nascimento.

A crise, sob os seus sinistros ouropéis, seria por conseguinte uma possibilidade e um progresso para todos. É suficiente resolver o problema do desemprego (porque não generalizar o trabalho a meio tempo cortando os salários em dois? Re-simulação para rir numa fábrica de pão biológico) e de ter ideias, como este formidável jovem enarca, um tecnocrata, que realizou um sonho de criança ligando a tradição oral e o computador, e criou um novo pólo de atividade na sua região: reconhecem-no, é Philippe de Villiers em Puy du Fou. E como Yves Montand é um pouco nada cético sobre a generalização do modelo Philippe de Villiers-Puy du Fou como solução para salvar a França, Michel Albert apresenta-lhe também Annette Roux, presidente de Bénéteau (fabricante de veleiros de lazer) e saúda as suas competências, as de Montand, como inventor “da empresa Montand”.

Assim exortada a cultivar a iniciativa individual, a França também é convidada a pensar em termos europeus. Para isso, propõe-se-lhe uma pequena reportagem muito filme de empresa sobre os futuros Estados Unidos da Europa, presididos por Margaret Thatcher e chamados a negociar de igual à igual com os Estados Unidos da América. O ECU, moeda única, não fará ir abaixo o dólar? E BIOP, gigante europeu da informática, não estará, de novo, em vias de comprar IBM? A comunicação entre os povos não é garantida pela maquinazinha, “a traducette”, um grande walkman orgulhosamente arvorado pelos cidadãos? Na Cinecitta, Sergio Leone, assistido por George Lucas e Francis Ford Coppola (que acabam de emigrar para a Itália), tem em rodagem o filme Era uma vez a Europa. Quanto aos viticultores, fizeram fortuna com o Vinicola, uma formidável mistura de grandes colheitas europeias, e são alvo de críticas porque recusam ajudar o Terceiro Mundo. Apenas, para chegar à realização desta Europa idilicamente próspera, vai ser necessário que ela se agite um pouco. É pelo menos isso o que conclui Yves Montand, interpelando os espectadores por interposta câmara. “Sereis vós e somente vocês que irão encontrar a solução. Não há nenhum Salvador Supremo, nenhum super-caid, não há nenhum Super-Homem. Sereis vocês, tomem o vosso destino em mãos, saibam o que querem, exijam-no, vejamos o que se pode fazer e sigam em frente! Então, ou nós teremos a crise ou sairemos da crise, e em qualquer dos dois casos, temos o que merecemos. »

Estávamos em 1984. Tivemos nós o que merecíamos? As opiniões estarão certamente divididas, sem dúvida. Em antecipação, a França tem estado sempre em crise (financeira, esta vez), e a televisão está sempre apressada em trazer-nos o diagnóstico e as soluções. Hoje, às à 16:30, França 5 volta a difundir Viva a crise! Em torno do problema da dívida pública e de uma eventual falência nacional. A isto chama-se sobriamente A França em falência? E, quanto a este azar, não vale a pena esperar vinte e quatro anos para o discutir: podemos debatê-lo aqui.


Original aqui

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