A GALIZA COMO TAREFA – a outra tradição – Ernesto V. Souza

A história social no Estado espanhol é traumática no decorrer dos séculos. Frustração, repressão, incultura programada, dominação, terror, marcam a ferro o cronograma desenhado, ou improvisado, pelos poderosos no decurso dos séculos XVII até hoje. Decadência, desmoronamento da máquina imperial, subalternidade a França e Inglaterra, seguidos de longos e demolidores períodos de repressão cultural e controlo: contrarreforma, absolutismo, restauração e ditaduras ocupam boa parte da história cultural e política dos últimos 4 séculos e não terminam de se ir.

As datas de 17 e 18 de julho, e as de 7 a 19 de agosto,  efemérides do Golpe de Estado de 1936 e das vagas de alguns dos mais impactantes assassinatos extra-judiciais de figuras e personagens do mundo político, intelectual e cultural, re-abrem sempre à opinião e à rememoração reivindicativa os espaços da memória, crescentes nas últimas dous décadas.

Atualmente assistimos a uma fase de consolidação social (e tecnológica) das liberdades políticas e de opinião como nunca houvera (quitando os momentos brilhantes da Constituição liberal de 1812, a efémera I República de 1874 e o seu ronsel, e a II República (1931-39) esmagada pelo franquismo). Porém o momento global é significativamente contrário, contrarrevolucionário, limitador e repressivo como efeito ou – na escusa – das atas e regulamentações patrióticas, protecionistas e limitadoras dos direitos de reunião, manifestação, protesto e opinião, condicionados pelas políticas anti-terroristas.

A orientação e tentativa de controlo policial e judicial das ideias e as opiniões no mundo globalizado foi facilmente admitida no discurso de um Estado Espanhol que autonomamente e pioneiro fora conservando, adaptando e desenvolvendo um imenso repertório de ferramentas repressivas internas por baixo da tona democrática. Algumas sobreviveram ao franquismo.

Por outra banda, as primeiras gerações educadas nos momentos inciais da democracia, numa explosão incontrolada de discursos civis mais progressistas, têm agora entre 50 e 35 anos. E a própria sociedade espanhola no decurso dos últimos 40 anos foi libertando-se do terror social que impusera a Ditadura do general Franco e começa a perguntar e a ficar consciente da eliminação física, psíquica, social e patrimonial que se derivou do Golpe de Estado, da política de repressão na retaguarda e das três décadas a seguir de Ditadura.

Atualmente existem em todo o estado espanhol multitude de associações, muitas de caráter local e iniciativas diversas de pesquisa que se agrupam em duas correntes reivindicativas arredor dos movimentos chamados de “Memória histórica”: as orientadas ao Estudo da repressão e a localização, reabertura de processos e legalização dos enterramentos nas fossas comuns da tamanha – e crescente – listagem de desaparecidos; e as orientadas à denuncia da permanência dos elementos franquistas nos “espaços de memória” coletiva (nomes de ruas, placas comemorativas, estátuas, museus, honras e prémios…) e que procuram a reabilitação a deslegitimação judicial do franquismo e a substituição, eliminação e reposição – aplicando a legislação – de nomes, símbolos e leis anteriores.

Mas não basta com denunciar, não avonda com justiça ou com revancha, há que reintegrar a tradição republicana. Não é útil aplicar essa políticas de damnatio memoriae (que por outra parte acompanham toda a história cultural da Espanha ao longo dos séculos do nacionalismo) aos símbolos, personagens e à cultura franquista, ou dissimulá-los como fez a Transição,

Trata-se também de recuperar as figuras, a cultura, os livros, as revistas, as causas, as instituições, as datas e os símbolos das tradições republicanas, anarquistas, operárias, dos nacionalismos galego, catalão e basco, que foram duramente castigadas e apagadas durante tanto tempo e com notável, em muitos casos sucesso, afetando a própria imagem que se pretende reconstruir deles.

Provavelmente o período 1924-1936 é o mais marcante na história da cultura popular, da esquerda e de todas a culturas e tradições alternativas do Estado Espanhol. Há uns há uns 25 anos li por vez primeira o pequeno livro de Gonzalo Santonja: “La República de los Libros: el nuevo libro popular de la II República” ( Barcelona: Anthropos, 1989). Este livro abalou-me, desde ele comecei a ler e colecionar quando o acaso mos deparava (antes da internet) nos recantos perdidos de velhos e pequenos sebos, livros de antes do 36 descobrindo um outro mundo, outra cultura. E a perceber que tudo quanto se fizera em edição na Galiza nessa mesma época coincidia exatamente (e à vez à contra nacional) com as linhas e parámetros do livro de avançada e popular republicano.

Destruir é doado, construir difícil, reconstruir complicado. Trata-se, ainda, de compreender o sentido, a importância, o contexto, de reunir os livros, não com propósitos colecionistas quanto interpretativos, de reconstruir as bibliotecas expurgadas, de analisar a lógica das coleções descanonizadas, dos autores um  dia à moda postergados, de seguir os fios de debates, as personagens e análises de uma modernidade – em muitos casos – à vez desconhecida e surpreendente. Conteúdos, grafismo, vanguarda tipográfica e comercial para uns livros de temas sociais, ecológicos, feministas, filosóficos, religiosos, revolucionários, que apostavam por novos circuítos comerciais, por popularizar a cultura e criar um modelo de sociedade nova.

Cumpre destacar, mesmo para podermos ler com o sentido original os autores principais do Rexurdimento galego e do século XIX e primeiros do XX espanhol, que existiu uma tradição cultural alternativa que do século XVIII (com antecedentes apagados no humanismo e no erasmismo) percorre todo o  século XIX, e abrolhou nas três primeiras décadas do século XX. Uma tradição que bebeu das fontes americanas, da República Portuguesa, da Revolução Soviética e que depois passou ao exílio, porém que ainda não voltou.

Há restos, memórias e linhas familiares, há livros e estudos, mas não conseguiram dar conta do tamanho, da importância da tradição apagada e do que supõe em termos de impacto social e cultural a privação deste rico património e ao mesmo tempo a sobredimensão da contra-cultura, tradição e cânone absolutista, ultracatólico, maschista, castrense, fascista, conservador e do assimilado e mimetizado a ele.

 

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