À ESPERA DO REFERENDO NA CATALUNHA – DOIS TEXTOS DE ALFONSO CASTELAO – selecção e introdução de ANTÓNIO GOMES MARQUES

 

(1886 – 1950)

À Espera do Referendo na Catalunha

Muitos de nós aguardamos com ansiedade o próximo referendo na Catalunha, que o governo do Sr. Rajoy tem tratado, em linguagem futebolística, à canelada ou mesmo à cacetada, o que não deixa de ser irónico pelas consequências, ou seja, na minha opinião, nunca os independentistas estiveram tão perto de conseguir o seu objectivo.

Confesso a minha hesitação. Se, por um lado, desejaria ver uma Europa unida, lutando por objectivos democráticos, por uma sociedade livre, independente, justa, com igualdade de oportunidades para todos, com respeito pela diferença, por outro lado, a posição do governo de Madrid irrita-me ao ponto de desejar que o referendo saia vencedor. Para além de pensar que todos os povos têm direito à sua autonomia.

Recentemente, o meu companheiro de muitas lutas e amigo de longa data, Hélder Costa, tomou posição pública sobre o referendo que se aproxima e onde, mais uma vez, se verifica que as nossas opiniões podem diferir em pormenores que classifico de insignificantes; na resposta que lhe dei, também pública, lembrei um grande defensor da federação ibérica, Castelao, o que me levou a passar a português de hoje dois textos deste grande cidadão, nascido galego, e que me parecem adequados ao momento que vivemos com a Catalunha no pensamento, com o desejo simultâneo de ver a divulgação da sua obra em Portugal, com a certeza de que todos teríamos muito a ganhar se, graças a essa divulgação, pudéssemos pensar não só o futuro da Hispânia, mas também o futuro da Europa.

Leiam os textos que vos deixo.

António Gomes Marques

Portela, 2017-09-26

 

OPINIÕES

por Castelao

Desde que reinaram na Hispânia as dinastias estrangeiras dos Áustrias e dos Bourbons, importadores do cesarismo unitário e centralista que rompeu a verdadeira tradição da nossa península, os espanhóis não se podiam sentir identificados com a missão histórica da monarquia, porque a política dos reis tinha por finalidade a dominação e castração da vontade popular, porque a violência assimilacionista tinha por fim afogar a livre aspiração do espírito aferrolhando as liberdades populares. Por isso a vontade reinante dos povos opôs-se aos propósitos da monarquia e não se logrou a unificação pretendida, já que depois de centenas de anos o regime uniformista não destroçou a personalidade dos diferentes povos, que hoje revivem e reclamam garantias para o livre desenvolvimento da sua economia e da sua cultura.

O republicanismo dos primeiros tempos, traduzido literalmente do francês, apesar do seu simpático amor às liberdades individuais, não chegou ao cerne da consciência popular, porque não enchia os anseios democráticos dos espanhóis, que desejavam tanto como os direitos do homem o direito dos povos. Mas quando nasceu a doutrina política do federalismo, os espanhóis incorporaram-se em cheio no novo ideal republicano.

Desde então “monarquia” quer dizer “centralismo” e “república” quer dizer “descentralização”. E, portanto, aqueles chamados republicanos que ainda defendem o sistema unitário e centralista importado em Espanha pelas dinastias estrangeiras dos Áustrias e dos Bourbons, não são mais que monárquicos disfarçados, ou o que é pior: viúvos da Monarquia casados em segundas núpcias com a República.

Frente a um republicano que invoca a intangível soberania do Estado para continuar aferrolhando a liberdade política, administrativa e espiritual dos povos, sente-se um reviver da ideia de que o Estado é um organismo supletório chamado a desaparecer… Porque, decerto, a soberania desde que veio a República, está vazia de significação real, mas ainda fede a monarquia e a imperialismo: é, como se disséssemos, um título nobiliárquico abolido, uma verba de luxo excessivamente cara para uma República de trabalhadores. A soberania para um republicano, deve residir nos povos, para que o Estado seja forte e possa subsistir, para que todos possamos sentir-nos com alegria dentro dele. Para Pi y Margall a soberania popular está por cima da soberania nacional, pois o federalismo é justamente o sistema que se baseia na partilha da soberania.

Causa tristeza reparar como agora surgem republicanos contrários ao Estatuto da Galiza quando no programa do seu partido acolhem os princípios federais e os seus deputados votaram nas Cortes constituintes a favor da República federal. Acabo de citar o partido que acaudilha o senhor Lerroux.

O Estatuto pede para a Galiza muito menos do que a constituição da República concede, e a nossa República não quis ser federal. Por conseguinte somente os monárquicos têm direito a combater o Estatuto em nome dos sentimentos patrióticos, porque para eles a Pátria é consubstancial com Monarquia, e Monarquia em Espanha quer dizer “centralismo”.

Um republicano federal sabe que o Estatuto não ultrapassa os limites da sua doutrina. Cumpre lembrar, o que se tem esquecido, que o projecto parlamentar da constituição federal do ano de 1873 diz no seu artigo primeiro: “Compõem a nação espanhola os Estados de…” No artigo noventa e dois: “Os Estados têm completa autonomia económico-administrativa e toda a autonomia política compatível com a existência da nação”. No artigo noventa e três: “Os Estados têm a faculdade de promulgar uma constituição política que não poderá contradizer a presente constituição”. E se lerdes as atribuições concedidas aos Estados regionais no Título XIII então vereis que o Estatuto aprovado na Assembleia de Santiago é mais reduzido.

Cumpre também lembrar o projecto de Constituição federal votado na Assembleia de Saragoça do ano de 1883, que começa desta maneira: “As regiões, Estados soberanos, declaram em uso da sua autonomia que querem fazer parte da Federação Espanhola, sob as condições escritas no seguinte Pacto ou constituição federal”. Assinavam este projecto, que contém princípios como o de que as regiões escolherão a língua que acharem conveniente, três patriotas republicanos galegos: Telesforo Ojea, Santiago Casares e Juan Domínguez.

Não se pode, pois, ser federal e combater o Estatuto, a não ser que pareça pequeno. Não se pode, pois, acatar a Constituição e combater o Estatuto. Não se pode, pois, ser republicano e defender um sistema contumaz, próprio da Monarquia.

E aqueles que proponham a liberdade da Galiza a cativos localismos, a nojentos interesses de partido, a inconfessáveis egoísmos pessoais, não merecem ser homens do nosso tempo.

 

In «El País (23-11-1933)»

 

 

CATALUNHA NA MORTE DO LIBERTADOR

 

por Castelao

 

Maravilhoso espectáculo este que ofereceu Catalunha na morte do seu grande homem de excepção. Consolador, fortificante espectáculo o do grande país mediterrânico, nesta hora de menosprezo pelos valores humanos, de exaltação de “massas”, emborcando-se inteiro, estremecido de emoção, diante de um homem que fizera do seu coração e do seu espírito, vibradoras antenas da mais erguida aspiração humana: a aspiração de ser livre.

Grandes povos são todos aqueles que valorizam, na vida e na morte, as suas figuras representativas; aquelas que recolhem os seus anseios, as suas aspirações, e fazem delas o apostolado da sua vida. Povo capaz de admirar, cuidar e acarinhar a um homem superior, é, potencialmente, um povo de homens superiores. Pelo contrário, povo que carece desta sensibilidade é um povo de almas mortas, de seres inferiores, invejosos dos que se erguem por cima do nível vulgar.

Por isso Catalunha é um grande país. Cuida devotamente as suas figuras representativas. Ergue-as por cima do bem e do mal, rende-lhes culto, e assim logra ter heróis, mártires e apóstolos e por isso, no concerto das nacionalidades ibéricas, Catalunha é uma verdadeira potência material e espiritual. Por isso, passe o que passe, Catalunha será sempre Ela, não será parte de ninguém, a não ser que será, por saber ser diferente, unidade e personalidade existente. Catalunha merece ter homens da estirpe de Maciá. Cada povo tem, exactamente, o que merece ter. Nem mais nem menos.

Deus ajude a Catalunha! Por boa, por generosa, por sensível, por Pátria dos seus filhos, que lhes dá alentos na vida, e na hora da morte, todos os seus jardins têm flores viçosas e loureiros verdes para fazer coroas. Deus guie por caminhos de liberdade os seus filhos bons e generosos, homens de bem, com o dom inestimável da gratidão!

Que grande, que invencível desejo temos de ser catalães!

 

In «A Nossa Terra, n.º 319 (28-XII-1933)

 

2 Comments

  1. Os seus desejos justíssimos de ver uma Europa, a lutar por objectivos democráticos, por uma sociedade livre, independente justa e com respeito pelas diferenças só podem concretizar-se com o regresso libertador à Primeira Europa que foi destruída pela formação dos Estados-Nação e que, necessariamente, conduziu ao fim das Nações-Estado. Os expansionismos colonialistas das monarquias dos castelhanos, dos francos, dos ingleses, dos prussianos, dos austríacos, dos sardos e dos moscovitas foram, de facto, os responsáveis pelas sucessivas tentativas de hegemonização que têm mantido a História dos Povos europeus sob a contante ameaça e realidade das guerras. Portugal, que cometeu um seu grande feito histórico ao dar fim ao seu império, e voltar a ser uma Nação-Estado, devia ser pioneiro na defesa intransigente, nesta Europa amalgamada, dos seus vários Independentismos. Se Portugal não tinha o direito – e muito bem – de ter colónias, que razão assistirá aos demais para permitirem-se tê-las? Força catalães, depois as outras Nacionalidades da Hispânia haverão de dizer da sua justiça. CLV

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