Sobre o espírito do capitalismo
Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
4. Dez anos depois do rebentar da crise estará a sociedade civil pronta para enfrentar a Alta finança?
Por Laurie Macfarlane
Finance Watch, 28 de setembro de 2017
Neste artigo do blogue, o editor de economia de OpenDemocracyUK Laurie MacFarlane convida a sociedade civil a começar a enfrentar as causas profundas da crise financeira e que trabalhemos todos juntos para construir uma alternativa mais justa e mais sustentável. Este artigo foi publicado pela primeira vez no site Civil Society Futures Website.
Há já dez anos, o banco francês BNP Paribas cessou as atividades em três Hedge Funds, anunciando que já não poderia continuar a calcular o valor dos instrumentos tendo como colateral hipotecas ditas subprime americanas.
O evento é largamente considerado como representando o início da crise financeira global, pois o que até aí tinha sido considerado como uma pequena turbulência no mercado imobiliário americano tornou-se algo muito mais grave. Os bancos deixaram de conceder empréstimos uns aos outros e o sistema financeiro ficou bloqueado, gerando ondas de choque em torno do sistema financeiro global. O Reino Unido, com um dos maiores, mais complexos e mais interligados sistemas bancários no mundo desenvolvido, foi excecionalmente exposto.
Uma década passada e os custos da crise – tanto humanos como financeiros – não podem ser subestimados. O custo do resgate de bancos atingiu mais de 1 milhão de milhões de dólares, enquanto o custo para a economia em termos de perda de rendimento e de produção terá sido muito maior.
De acordo com Andrew Aldane, o economista-chefe do banco de Inglaterra, o custo pode ser tão elevado quanto £ 7,4 milhões de milhões – um custo semelhante ao de uma guerra mundial. Desde a crise que os salários reais na Grã-Bretanha sofreram um declínio maior do que em todo e qualquer outro país avançado, com exclusão da Grécia. Anos de austeridade empurraram os serviços públicos para o ponto de rutura e os decrescentes níveis de vida têm visto as famílias recorrerem a medidas desesperadas como a utilização de bancos alimentares. Mark Carney, governador do Banco da Inglaterra, recentemente descreveu os últimos dez anos como a “primeira década perdida desde 1860”.
À medida que cada etapa de dez anos se aproxima – desde o colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008 à Cimeira de Londres do G20 realizada em 2 de abril de 2009 – muito será escrito sobre o papel de cada um dos principais culpados: os banqueiros irresponsáveis e gananciosos, os reguladores fracos e incompetentes, as agências de rating de crédito estavam completamente desprevenidas e os economistas cegos. Mas, e a sociedade civil? O que é que há a aprender com a experiência da crise financeira, e o que é que isso significa para o futuro da sociedade civil?
O ângulo morto da sociedade civil?
Em 1960 os ativos do sector bancário do Reino Unido totalizavam £ 8 mil milhões, ou 32% da produção económica anual do país. Por volta de 2010 o valor dos ativos tinha aumentado para £ 6,24 milhões de milhões, ou seja, 450% da produção económica anual. Em relação à dimensão da economia nacional, o sistema bancário britânico cresceu e tornou-se o maior entre as economias avançadas, com a maior parte do crescimento a ocorrer nas duas décadas anteriores à crise.
Apesar deste rápido aumento da dimensão e influência dos bancos e de outras instituições financeiras, a sociedade civil não prestou muita atenção às suas atividades. Naturalmente, organizações como as uniões de crédito desempenharam um papel fundamental nas comunidades locais durante muitos anos. Mas, no período que antecedeu a crise, poucas organizações levantaram questões difíceis sobre o conjunto do sector financeiro, ou questionaram se estava ou não a servir os interesses a longo prazo da sociedade.
Naturalmente, a sociedade civil não estava sozinha na incapacidade de ver a crise que chegava. A grande maioria dos macroeconomistas foram apanhados totalmente desprevenidos, assim como os reguladores cujo trabalho era impedir que tais crises acontecessem. Enquanto a economia era levada para a catástrofe, os banqueiros centrais estavam a saudar a chegada da “grande moderação” e Gordon Brown tinha declarado o fim dos altos e baixos na economia no sentido de um crescimento sustentado.
No entanto, um dos papéis da sociedade civil é levantar questões difíceis e desafiar o poder. Embora fosse injusto transferir a culpa por não se ter previsto a crise, elementos da sociedade civil poderiam e deveriam ter agido com mais coragem para desafiar o poder da City de Londres. Mas demasiadas vezes eles consideraram mais fácil olhar para o outro lado.
Demasiado pouco, demasiado tarde
Uma vez rebentada a crise, as organizações da sociedade civil baralharam-se até chegarem a acordo quanto ao que aconteceu e o que significou para elas. Poucas organizações estavam bem colocadas para reagirem rapidamente. Desde longa data que havia o sentimento de que a finança era um campo tecnocrata que era melhor ser deixado aos peritos e este sentimento tinha deixado a sociedade civil lamentavelmente desarmada para intervir, apesar de as organizações da sociedade civil serem perfeitamente capazes de levantar a cabeça em torno de outras questões igualmente complexas. Além disso, a capacidade da sociedade civil estava reduzida no preciso momento em que mais era necessária, à medida que as fontes de financiamento começaram a secar no meio das vagas de dificuldades provocadas pela crise económica. Sem uma análise coerente do que correu mal e do que era necessário fazer, a sociedade civil lutou para fazer ouvir sua voz no processo de reforma que se seguiu.
Apesar disso, houve uma série de desenvolvimentos positivos. A crise desencadeou um despertar de questões sobre a banca e a Finança, e deu origem a um novo movimento dinâmico dedicado à causa da reforma financeira. Novas organizações como Positive Money, Finance Innovation Lab Move Your Money foram criadas e ao lado de organizações mais antigas, como New Economics Foundation, foram encontrando explicações quanto à forma como funcionava o sistema financeiro e ao mesmo tempo que procuravam reorientar a Finança para o bem comum. Mas, apesar de alguns esforços heroicos, essas organizações, inevitavelmente, enfrentaram uma luta árdua contra a força do lobby do sector e da cultura “de complacência” dos reguladores.
É difícil saber exatamente o quanto o setor gasta em lobing, mas uma investigação do departamento independente de jornalismo de investigação (Independent Bureau of Investigative Journalism) revelou que as firmas da City de Londres tinham financiado mais de 50% do total do financiamento do partido Conservador em 2010, o ano em que David Cameron tinha ganho as eleições gerais. Em 2012, uma investigação semelhante revelou que a indústria de serviços financeiros britânicos gastou £ 92 milhões de libras num só ano em lobing sobre os políticos e os reguladores. Combinado com a cultura “das portas giratórias” entre a indústria financeira e os reguladores, é fácil ver como a voz da sociedade civil foi abafada.
Enquanto as reformas limitadas puseram um travão em alguns dos piores excessos, não demorou muito tempo a que um intenso lobby do setor as tenha reduzido a pouco mais que nada ou tenha mesmo revertido. Por volta de 2015 isso tinha compensado uma vez que George Osborne [então chanceler do Tesouro] anunciou um “novo acordo” entre os decisores políticos e os homens da City e silenciosamente aprovou uma série de concessões para os grandes bancos em áreas de tributação e regulação. Então, em dezembro de 2015, o governador do banco de Inglaterra, Mark Carney, declarou que “o período pós-crise acabou”. A mensagem era clara: o sistema financeiro tinha sido corrigido, as lições tinham sido aprendidas, e era hora de seguir em frente. Podíamos voltar aos negócios como de costume.
O que é que se segue como futuro?
Como as memórias da crise se desvanecem, é essencial que a sociedade civil não se esqueça do que aconteceu e não se predisponha a aceitar as exigências dos lobistas da banca e da finança. Muitos especialistas situados fora do eixo setor financeiro-reguladores alertam que as reformas financeiras não foram suficientemente longe, e preveem que um outro acidente maior poderia estar bem próximo, ali ao virar da esquina. O Conselho de risco sistémico, um grupo de especialistas internacionais em estabilidade financeira, advertiu recentemente os líderes do G20 que o sistema financeiro global está vulnerável a outra crise. Desta vez, avisam eles, os bancos centrais e os governos terão muito menos munições disponíveis para responder. Avisos semelhantes vieram do Banco de Pagamentos Internacionais que recentemente disse que uma outra crise financeira global poderia em breve bater-nos à porta “como uma vingança”.
Agora, com o Brexit no horizonte, o risco é ainda maior. À medida que mais bancos começam a deslocar as suas operações para o estrangeiro, o governo indicou que pode responder através de uma redução na regulação, numa tentativa de conter o fluxo de saída de empresas financeiras. Os meios de comunicação relataram que os executivos da banca e lobistas já estão a trabalhar forte e duro nos bastidores para tirarem vantagem do Brexit.
Para evitar que a história se repita, há uma necessidade urgente de fortalecer a voz da sociedade civil sobre as finanças, e desenvolver um contrapeso credível e eficaz contra o poder de lobby dos bancos. Devemos também trabalhar para transformar o nosso sistema financeiro quebrado para garantir que as finanças sirvam a sociedade, e não o contrário.
O que isso significa isto na prática? Em primeiro lugar, significa estabelecer uma voz da sociedade civil credível e bem dotada de recursos sobre a banca e as finanças. Esta não é uma ideia nova – em 2011 o Parlamento Europeu estabeleceu uma nova ONG independente chamada Finance Watch. Esta organização recebe financiamento público da UE, e está incumbida de atuar como um contrapeso do interesse público ao poderoso lobby financeiro. Embora o pessoal especializado em finanças do Finance Watch esteja ainda amplamente em minoria em relação aos representantes da indústria nos corredores de Bruxelas, a organização tem desempenhado um papel vital educando os legisladores e o público sobre o sistema financeiro. À medida que a Grã-Bretanha começa a planear um futuro fora da UE, tapar esta lacuna com uma nova organização centrada no Reino Unido será vital.
Em segundo lugar, a sociedade civil tem de iniciar a longa e dura tarefa de transformar o nosso setor bancário. O setor bancário do Reino Unido está entre os mais concentrados no mundo desenvolvido, e é excecionalmente dependente de bancos comerciais focados na maximização do lucro. O setor bancário canaliza anualmente milhares de milhões para a economia, mas a maioria flui para o imobiliário e os mercados financeiros, inflacionando os preços dos ativos e desestabilizando a economia. Noutros países, o setor bancário desempenha um papel mais positivo investindo de modo sustentável nas comunidades locais, e estes bancos caracterizam-se, frequentemente, por serem propriedade, e terem uma governança, de “partes interessadas”. Por outras palavras, a missão do banco não é maximizar lucros, mas otimizar o rendimento para uma gama de partes interessadas, incluindo clientes e a economia local mais em geral. A evidência empírica mostra que estas instituições, tais como cooperativas, mútuas e bancos públicos de poupanças, têm muito melhor desempenho que os seus grandes concorrentes em medidas de estabilidade financeira, desenvolvimento económico local, empréstimos às empresas e inclusão financeira.
Aprendendo com as melhores práticas em todo o mundo, devem ser dados passos para aumentar a diversidade do setor bancário e criar novas instituições que sirvam os interesses das empresas e das comunidades locais. Iniciativas como a Community Savings Banking Association já estão a fazer isso de baixo para cima, mas ainda há muito para fazer antes que estes modelos possam alcançar a escala necessária para causarem impacto.
Mas reformar o setor bancário é apenas a ponta do iceberg. O domínio do setor financeiro sobre a política e a economia não aconteceu no vácuo – é o resultado de um conjunto de escolhas políticas deliberadas para reescrever as regras da nossa economia. O alastrado setor financeiro do Reino Unido foi, e ainda é, o pináculo do neoliberalismo – o sistema económico que permitiu a privatização, a desregulamentação e a lógica do mercado penetrar em todas as áreas da sociedade.
A crise financeira foi um produto deste sistema. Mas desafios como pobreza, desigualdade, alienação, mudanças climáticas e os sem-abrigo não podem ser separados do sistema económico que os reproduz. Para superar essas questões, a sociedade civil deve ir além da simples melhoria dos sintomas e começar a combater as causas profundas. Isso significa desafiar os princípios do próprio neoliberalismo e trabalhar em conjunto para construir uma alternativa mais justa e sustentável.
Laurie Macfarlane
Texto original em http://www.finance-watch.org/hot-topics/blog/1437