Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

A revista À Nous Paris, a revista da elite francesa «globish» que se “enjaille”
Diane de Bourguesdon, A revista “À Nous Paris”, a revista da elite francesa «globish» que se “enjaille”
Revista Causeur.fr, 30 janvier 2018
Do caráter às vezes salutar para ultrapassar o seu desgosto de esteta interessado em pôr, sem qualquer constrangimento, as mãos na lama.
Uma bateria de telefone sem carga e o sentimento de mal-estar daí resultante pode levar uma pessoa relativamente sã de espírito a pegar e folhear uma dessas revistas gratuitas do metro parisiense que alguém terá descuidadamente abandonado no lugar em que viajou sentado.
Teria sido uma pena passar ao lado da revista e não lhe pegar. Não há nenhuma razão provável para acreditar que nesta segunda semana de Janeiro a revista À Nous Paris tenha apresentado uma particularidade editorial especial em comparação com os outros números do ano. Mas é uma verdadeira jóia da propaganda semântica que se encontra por acaso nas minhas mãos.
A eles Paris
O que é que nela está escrito? Primeiro de tudo inglês, por vezes, quando não é a sua versão degenerada “Franglaise”, não deixando praticamente nenhuma frase incólume nas trinta páginas da revista. “Sneakers”, “Take-Away”, “Webstation” “spoken words as” e outros “protest-Songs” disputam-se “à challenge”, ao desafio, “à mistura” e até mesmo a frase “muito fresco”- o último significado é que é muito agradável. Menção especial ao convite – simpático de resto – no final – de se engaiolar, de se “Enjailler”, um verbo desconhecido até então, que a Wikipedia nos ensina que tem como origem a palavra “Enjoy” (que é descoberto pela mesma ocasião que este verbo vem do francês “Enjoy”), sem dúvida mais elegante do que a injunção à “kiffer” mas que poderia ter sido substituída, com vantagem, pela muito melhor expressão “divertir-se “
Contrariamente ao que o pensamento materialista moderno procura fazer acreditar, uma língua é muito mais do que uma mera ferramenta de comunicação. A língua veicula uma maneira particular de ver o mundo. Este dialeto “global” está longe de ser trivial: ele desenha os contornos lisonjeiros de uma sociedade particular, a da elite rica e internacional que vive nas grandes metrópoles. Uma análise rigorosa da semântica desta revista faz emergir as grandes características: ela ama mais do que tudo, a festa e a admiração, que combina a exigência absoluta e a tolerância extrema.
“Eu danço, logo eu vivo”
Comecemos pelas festividades. Que este semanário para uma clientela ativa e urbana dedique mais de quatro páginas para a publicidade de noites parisienses, para não mencionar a seção “clubbing” especificamente dedicada, admitamo-lo. Mas o espírito benevolente do divertimento, este realmente paira em cada uma das suas páginas. Somos aí convidados a uma “grande deambulação pelo bairro, de que ficamos a saber que estará com “um ambiente” alimentado por especiais animadores. O jovem citadino vive perigosamente, por isso não hesitará em ir para um palco “eletrificado” por um DJ. Descobre-se o evento “Todo Paris é um cocktail”, evocação provável de Paris é uma festa mas agora atualizada para os anos de 2018 para designar uma semana de bebidas “em saldo” em 75 bares da capital. “Mandem-se para o ar” é gentilmente sugerido mais à frente ao leitor que já não aguenta mais. E, como toda gente é simpática e se entende bem nesta sociedade maravilhosa, a solidão sombria é abolida e nós vivemos apenas em grupo, nós evoluímos apenas em “bande”, nós trabalhamos num “coletivo”, nós só nos deslocamos em “bando”. Mas o melhor é, sem dúvida, a afirmação cartesiana “Eu danço. Logo eu vivo”, que só resume o horizonte antropológico da juventude urbana contemporânea.
Do que os representantes da nova humanidade estão a fugir mais do que tudo, é da rotina, sinónimo para eles do que possivelmente há de mais abominável no mundo, o tédio. Um comportamento caseiro, de quem gosta de ficar por casa, é mais do que mal visto. Pelo contrário, gostar-se-á de “jantares nómadas”, vamos para “lugares efêmeros”, estaremos em cada momento em busca do que está “em sintonia com os nossos desejos”, iremos ao restaurante estrelado que « squatte la rue de Charonne »., ou seja, que fica na rua Charonne”. A mais bela promessa é, obviamente, a do espanto, a do maravilhado e é-se obrigado a reconhecer que os jornalistas não se pouparam a esforços léxicos para o evocar e com finura. É uma verdadeira avalanche de adjetivos que cai sobre as nossas cabeças ao longo de muitas páginas, e a maioria delas sugere transgressão: audacioso, inventivo, criativo, reinterpretativo, refrescante, fora do comum, irreverente, alternativa, desconcertante, eclético. As personalidades, “agitadores”, e lugares exalam um cheiro a santidade. Sem dúvida que com tudo isso o espectro de rotina será colocado para bem longe, para muito longe.
Da festa do consumo ao consumo da festa
O parisiense certamente gosta de se divertir, mas não de qualquer maneira. É exigente e não pode ficar satisfeito com o consumo de massas, bom para o Quidam. O parisiense gosta do que se diferencia, do que se destaca, o que sai da vida quotidiana e que o conforta na sua superioridade cognitiva de consumidor esclarecido. É todo um vocabulário que é então mobilizado para atrair os bacocos, que procuram atrair: “marcas e moradas confidenciais, seleção ultra-refinada, coleções inéditas ou de grupos restritos coffrets de edição ultra-limitada, marcas não encontráveis, edições limitadas”. Puro snobismo ? Não, não, é consumo responsável! Além disso, a preocupação ética de todo este pequeno mundo é real e constantemente lembrada: a moda e a culinária devem ser “responsáveis”, sempre prontas para desencadear a adesão empenhada dos cidadãos, como nos criadores que “militam por uma outra visão da moda”.
O jovem da moda reserva a sua intransigência e o seu gosto elitista para aquilo que consome. No que diz respeito ao seu comportamento, ele vai mostrar o contrário, apresenta-se com uma tolerância mais extrema que seja possível. Todas as diferenças devem ser esquecidas, especialmente para não impedir a apoteose de uma comunhão na globalização festiva. A revista, repetidamente faz a apologia do multiculturalismo (a “street” multicultural”, o multiculturalismo ambiente), defende o “novo entrelaçamento” e até vai mesmo tão longe como seja orgulhar-se de uma “Europa sem limites”. Além do cosmopolitismo, a teoria do género é claramente difundida, nas páginas de moda a propósito de um criador que “quebra os códigos do género”, propondo um “vestuário masculino [que] que tem o ar de uma feminilidade flagrante” em “modelos efebos “, “uma mistura a seduzir os homossexuais” (“mixe le drag au queer”) “e” mostrar a sua coleção masculina sobre modelos de mulheres. ” A única livraria mencionada na revista propõe “uma seleção de romances sobre feminismos, homossexualidade e sobre todas as questões de género”
Esta número da revista, obviamente, não foi suficiente para atrair a adesão sem reservas do leitor ocasional. Mas que pensar sobre a sua influência no leitor diário, e com mais força de razão, se a mensagem implicitamente contida é retomada em coro nas televisões, no cinema e em toda a imprensa?
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