Uma nova série sobre as novas tempestades que se vislumbram já no horizonte
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte I – 3. Davos 2018: A ordem liberal internacional está doente
Por Martin Wolf
Publicado por Financial Times em 23 de janeiro de 2018
Os delegados precisam de considerar o que é que deve ser feito para evitar que o modelo se destrua
No ano passado, Donald Trump era um espetro que assombrava a reunião anual do Fórum Económico Mundial [WEF], em Davos. Este ano, ele pode estar lá em carne e osso. Se assim for, será um encontro desconfortável. Ele rejeita os princípios da ordem internacional liberal promovida pelo seu país ao longo de sete décadas. Esses valores são também os valores que animam o WEF. Estes valores são o que tornam este fórum algo mais do que apenas um ponto de encontro para os ricos e poderosos do todo o mundo.
Como John Ikenberry de Princeton argumenta num artigo recente, “os EUA e os seus parceiros criaram uma ordem internacional multifacetada e extensa, organizada em torno da abertura económica, de instituições multilaterais, da cooperação na segurança e solidariedade democrática”. Este sistema ganhou a guerra fria. Essa vitória, por sua vez, promoveu uma mudança global a favor de políticas democráticas e da economia de mercado livre.
Hoje, no entanto, a ordem internacional liberal está doente. Como Freedom in the World 2018, publicado pela Freedom House, uma organização sem fins lucrativos financiada pelo Estado americano, afirma: “A democracia está em crise”. Pelo décimo segundo ano consecutivo, os países que sofreram retrocessos democráticos superaram em número aqueles que registaram ganhos. Os Estados que uma década atrás pareciam histórias de sucesso promissoras – como a Turquia e a Hungria – estão a passar para o domínio do autoritarismo.
No entanto, agora, quando potentes regimes autoritários desafiam a democracia, os EUA retiraram-lhe o seu apoio moral. O Presidente Trump mostra simpatia pelos autocratas no exterior. Pior ainda, argumenta Freedom House, ele viola as normas de governança democrática.
Sob a Presidência Trump, os EUA também questionam o tecido da cooperação internacional – tratados de segurança, mercados abertos, instituições multilaterais e tentativas de enfrentar desafios globais como a mudança climática. Em vez disso, proclamou a sua intenção de cuidar apenas dos seus próprios interesses, mesmo que à custa direta de aliados de longa data. As relações de agora devem ser transacionais.
Nem a base da economia mundial está em melhor forma. A economia pode estar em recuperação, mas nenhuma liberalização comercial significativa ocorreu desde a adesão da China à Organização Mundial do Comércio em 2001. O Brexit também se revelará um ato de desglobalização. Os fluxos de comércio e de capitais não cresceram mais rapidamente do que a produção mundial. A hostilidade à imigração é desenfreada. A China, uma nova superpotência, controla muito estreitamente o fluxo de ideias.
Aqueles que acreditam na simbiose da democracia, da economia mundial liberal e de uma cooperação global simplesmente têm que achar tudo isto bastante assustador.
Então, porque é que isto aconteceu? A resposta consiste em mudanças no mundo e nas condições internas dos países, especialmente das democracias de elevados rendimentos. Entre as mudanças globais, as mais importantes são a diminuição da relevância do Ocidente como comunidade de segurança após o fim da guerra fria, juntamente com o seu menor peso económico, especialmente em relação à China.
Muitos americanos sentem que têm menos razões e menos capacidade para serem generosos para com os antigos parceiros. Entre as mudanças internas, muitas pessoas dos países com elevados níveis de rendimento sentem que a ordem liberal global na qual os seus países se empenharam pouco fez por eles. Esta ordem internacional está a gerar, em vez disso, um sentimento de oportunidades perdidas, de rendimentos e de respeito. Pode ter trazido grandes ganhos para o tipo de pessoas que frequentam Davos, mas muito menos para todos os outros. Especialmente, após o choque da crise financeira, a maré não parece estar a subir, e se o está, certamente não está a fazer subir todos os barcos.
Como Ikenberry resume: “A crise da ordem liberal é uma crise de legitimidade e de objetivo social”. O programa do presidente Trump, que eu rotulo de “pluto-populismo”, é um resultado reconhecível de tudo isso. Ele diz aos seus apoiantes que os seus interesses já não serão mais sacrificados: eles estarão em primeiro lugar. O facto de que as políticas da administração Trump serem pouco suscetíveis de oferecer tais benefícios pode ser irrelevante. Não há muita gente disponível para ouvir aqueles que defendem uma tal posição.
Para aqueles que acreditam que uma ordem internacional liberal enraizada na política democrática é eticamente correta e é a melhor forma de conciliar a cooperação global com a legitimidade interna, isto é deprimente. Os homens e as mulheres de Davos têm que considerar o que deve ser feito para salvar a ordem global da destruição.
Seria possível apenas esperar que tudo vá pelo melhor. À medida que a economia se vai recuperando, o otimismo pode regressar. Isso deve, por sua vez, atenuar pelo menos algum descontentamento. Mas isso é fácil. As forças que levam a resultados divergentes nas nossas economias são poderosas. Está longe de ser evidente que até mesmo a fragilidade financeira tenha sido eliminada.
Em vez de complacência, precisamos de enfrentar duas questões fundamentais.
A primeira é: o que é mais importante se se deparar uma escolha difícil: a coesão política interna ou a integração económica internacional? À margem, deve ser o primeiro. A vida económica exige estabilidade política. A gama de políticas – fiscal, monetária e financeira – deve fazer com que a maior parte da população sinta que seus interesses contem nas decisões. Caso contrário, a estabilidade democrática está em perigo.
A segunda é: onde concentrar os esforços na cooperação global. A resposta deve ser a de gerir os bens comuns globais e manter a estabilidade global em primeiro lugar. Embora eu gostasse de ver uma maior liberalização do comércio, isso deve ser feito de forma certa e deixou de ser uma prioridade. Ainda menos estar a pressionar para abrir fronteiras para a livre circulação de pessoas ou mesmo para manter a livre circulação dos capitais a nível global. A política é esmagadoramente nacional. Os resultados das escolhas políticas devem satisfazer as pessoas de cada país.
O Presidente Trump não é a cura. Mas ele é evidentemente um sintoma. A ordem internacional liberal está a desmoronar-se, em parte porque não satisfaz as pessoas das nossas sociedades. Aqueles que frequentam Davos precisam de reconhecer isso. Se eles não gostam das respostas do Presidente Trump – eles não deveriam gostar – eles precisam então de avançar melhores respostas.
Texto original em https://www.ft.com/content/c45acec8-fd35-11e7-9b32-d7d59aace167
Martin Harry Wolf, é um jornalista inglês centrado em assuntos de economia. É editor associado e comentador chefe de economia no Financial Times.