Uma nova série sobre as novas tempestades que se vislumbram já no horizonte
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte II – 9. Os desafios de uma economia financeirizada, de uma economia desmaterializada
Por Martin Wolf
Financial Times em 21 de dezembro de 2017
Os decisores políticos devem ter em conta que vivemos num mundo em que as empresas investem em ativos intangíveis.
O que há de novo na economia de hoje? Não é o papel das próprias ideias. As tecnologias que tomamos como adquiridas – a roda, a cerâmica cozida, o arado ou o motor a vapor – foram outrora novas e brilhantes ideias. O que há de novo na economia de hoje é que muitas das nossas melhores ideias permanecem desmaterializadas. A ideia é realmente valiosa, mas não assume uma forma física. Isso muda quase tudo.
Esse é o tema de um novo livro intrigante, Capitalism without Capital: The Rise of the Intangible Economy, de Jonathan Haskel do Imperial College and Stian Westlake of Nesta. O seu argumento fundamental é convincente: Apple, a companhia a mais valiosa do mundo, não possui virtualmente nenhuns bens físicos. São os seus ativos intangíveis — integração de design e software numa marca — que criam valor.
Talvez o facto mais surpreendente num livro cheio de surpresas é quão grandes são agora os investimentos em ativos intangíveis- em investigação e desenvolvimento, software, bases de dados, criações artísticas, design, imagem de marca, processos de negócios. Medir isso tornou-se uma importante atividade intelectual. Nos EUA e no Reino Unido, o investimento em ativos intangíveis ultrapassa agora os ativos tangíveis. Isso também é verdade na Suécia, mas não na Alemanha, na Itália ou na Espanha. (veja os gráficos.)
Isto é importante porque as propriedades dos ativos intangíveis são fundamentalmente diferentes das propriedades dos ativos tangíveis. Compreender essas diferenças pode explicar algumas das características peculiares da economia moderna, incluindo a crescente desigualdade e a tendência à diminuição da taxa de crescimento da produtividade.
Os autores explicam as características dos ativos intangíveis referindo-se aos “quatro Ss”: [scalability; sunkenness; spillovers; and synergies] ou seja escalabilidade, falta de visibilidade, efeitos de repercussão e sinergias. Em conjunto, estas características subvertem o funcionamento familiar de uma economia de mercado competitiva.
“Escalabilidade” significa que um bem intangível pode ser utilizado por uma qualquer pessoa sem que com isso se prive alguém de usufruir dos seus benefícios. Os economistas chamam a isto um bem “não-rival”. Ninguém pode comer a sandes que estou a comer. Mas um ativo intangível pode ser usado repetidamente. Numa economia onde a escalabilidade — frequentemente sobredimensionada por efeitos de rede — é importante, algumas empresas rapidamente tornar-se-ão enormes. Estes vencedores, por isso mesmo, também poderão desfrutar de enormes vantagens.
“Falta de visibilidade ” refere-se ao facto de que os ativos intangíveis tendem a ter pouco ou nenhum valor de mercado, ao contrário, digamos, da terra ou de uma fábrica. Eles têm valor enquanto parte da atividade do seu proprietário, mas para ninguém mais. Isto significa que o investimento em ativos intangíveis é um investimento arriscado. O facto de as expectativas estarem ancoradas de forma nada segura pode, argumentam os autores, também gerar bolhas de preço de ativos.
“Os efeitos de repercussão ” significa que uma grande parte dos benefícios de um investimento podem ser aproveitados por outros. Mesmo com a proteção da propriedade intelectual, muitos dos benefícios do investimento numa ideia é provável que venham a beneficiar outras pessoas que não os seus criadores. Imitação (e roubo) é uma forma gratificante de bajulação. A presença de tais repercussões enfraquece o incentivo para investir. A resposta é então a existência de direitos de propriedade intelectual, mas estes são inerentemente arbitrários e economicamente dispendiosos.
Finalmente, os ativos intangíveis apresentam sinergias. Isto vai contra a ideia de efeitos de repercussão. As sinergias incentivam a cooperação inter-empresas (ou as fusões definitivas), enquanto os efeitos de repercussão são suscetíveis de as desencorajar. Quem é que na verdade quer realmente dar um almoço de graça aos seus concorrentes?
Tomadas em conjunto, estas características explicam duas outras características centrais da economia de ativos intangíveis: incerteza e contestação. A economia de mercado deixa de funcionar de forma familiar, de forma habitual.
O crescimento dos ativos intangíveis explica o que veio a ser chamado de “estagnação secular”? Parcialmente.
Isto não é, afirma-se, tanto porque o crescimento foi muito subestimado. Mas um grande problema é a crescente diferença nos resultados entre as principais empresas lideres e os retardatários. O fracasso destes últimos em beneficiarem do investimento em ativos imateriais ou intangíveis, por eles próprios ou por outros, pode explicar em parte o seu fraco crescimento de produtividade.
Mais uma vez, o aumento dos ativos intangíveis pode também explicar parcialmente o aumento da desigualdade. Uma maneira que o fazer é que os trabalhadores nas empresas mais bem sucedidas tendem a partilhar o sucesso de seus empregadores.
Além disso, as pessoas com competências relevantes destacam-se muito bem. Além disso, e é intrigante, os negócios intensivos em ativos imateriais tendem a aglomerar-se em cidades prósperas. Isso não só concentra as oportunidades como gera valores de propriedade, difundindo a riqueza para aqueles que possuem essas propriedades.
Finalmente, os ativos imateriais são móveis, o que os torna difíceis de serem tributados.
Esta transformação da economia exige um repensar da política pública. Aqui levantamos cinco desafios.
Em primeiro lugar, as estruturas de proteção da propriedade intelectual são mais importantes. Mas isto definitivamente não significa que estas proteções devam ser ainda mais amigáveis dos proprietários de tal propriedade. Os monopólios da propriedade intelectual podem realmente ser necessários, mas, como todos os monopólios, podem ser caros.
Em segundo lugar, uma vez que as sinergias são tão importantes, os decisores políticos têm de ponderar como incentivá-las, incluindo através de políticas sobre telecomunicações e desenvolvimento urbano.
Em terceiro lugar, o financiamento de ativos imateriais é difícil. Para os empréstimos bancários tradicionais apoiados por garantias bancárias, é quase impossível. O sistema financeiro vai precisar de mudar face a esta nova realidade.
Em quarto lugar, a dificuldade de apropriação de ganhos a partir de investimentos em ativos imateriais pode criar um subinvestimento crónico numa economia de mercado. O governo terá de desempenhar um papel importante na partilha dos riscos.
Finalmente, os governos devem também considerar como tratar as desigualdades criadas pelos ativos imateriais, uma das quais (insuficientemente referida neste livro) é o aparecimento de empresas super dominantes.
Os autores, Haskel e Westlake, mapearam a economia de uma nova economia desafiadora. É um mundo em que muitas das velhas regras funcionam bem mal. Precisamos repensar a política, mas cuidadosamente.
Texto em http://gonzaloraffoinfonews.blogspot.pt/2017/12/the-challenges-of-disembodied-economy.html
Texto original em The challenges of a disembodied economy / The financial times comment & analysis