Seleção e tradução de Francisco Tavares
3. O paciente italiano: uma avaliação da atual situação económica
Por Heiner Flassbeck
Publicado por em 17 de junho de 2018
A Itália ainda está a sofrer politicamente da análise completamente inapropriada da sua situação económica por parte das nações do norte. Isto resulta da ignorância económica geral no Norte, mas também se deve a preconceitos falaciosos contra os quais lutam os nossos vizinhos do Sul.
Há dois anos, numa exaustiva análise macroeconómica, descrevi a doença italiana (ver aqui e aqui) e descrevi o país como sendo a vítima mais seriamente afetada pelo ataque europeu ao raciocínio económico. As condições pouco se alteraram desde então, pelo que a mesma análise pode ainda ser utilizada sem restrições. Hoje desejo somente atualizar alguns elementos sem fazer grandes comentários e concentrar-me em grande parte na análise política.
A situação mantém-se quase inalterada – e desoladora
Hoje em dia afirma-se com frequência que a Itália teve uma recuperação económica nos anos mais recentes, a qual estaria a ser posta em causa pelo novo governo. Sim, houve melhoria, mas nem tudo é como parece à primeira vista. Olhando para o PIB (Figura 1), existe na verdade uma ligeira tendência de subida após 2014 mas, atenta a enorme recessão anterior, não é mais do que uma gota no oceano.
Figura 1 – PIB ajustado pela inflação (França, Alemanha e Itália)
A tendência de subida, como se pode ver na Figura 2, vem claramente do setor industrial, enquanto que absolutamente nada ocorreu nos setores de construção e de retalho desde há anos. Contudo, em Itália a situação na indústria tem sido tão desoladora, que a extremamente débil recuperação dificilmente pode ser considerada uma recuperação.
Figura 2 – Produção Industrial (França, Alemanha e Itália)
O excedente da conta corrente da Itália é visto frequentemente como uma “prova” de que o país não está a ir assim tão mal e que não está a ser prejudicado de modo nenhum pela política económica da Alemanha (Figura 3). Mas isso é um erro. A Figura 3 mostra claramente que a alteração na conta corrente de Itália de um défice (que era maior que o défice francês em 2010 e 2011) para um pequeno excedente resulta da recessão que atingiu mais uma vez a Itália e de modo particularmente duro em 2011.
Figura 3 – Saldo da balança de transações correntes (França, Alemanha e Itália)
Olhando separadamente para as exportações e as importações (Figuras 4 e 5), a Itália – tal como a França – registou alguma recuperação nas suas exportações nos anos recentes. Contudo, mesmo após a recessão global de 2008/2009, ambos os países ainda estão muito atrás da Alemanha.
Figura 4 – Exportações ajustadas pela inflação (França, Alemanha e Itália)
Se colocarmos os dados em 2009 como índice 100, como se vê na Figura 5, isto torna-se particularmente claro. Significa que mesmo neste momento o caminho para uma recuperação real da França e da Itália via exportações foi fortemente restringido pela ofensiva exportadora da Alemanha.
Figura 5 – Exportações ajustadas pela inflação (índice 100 em 2009) (França, Alemanha e Itália)
No que diz respeito às importações, é possível ver porque razão o saldo comercial externo da Itália, apesar do seu excedente, não está realmente melhor do que o da França (Figura 6). Em Itália as importações caíram, especialmente depois de 2011, o que não aconteceu com a França. Em França, as importações cresceram quase tanto como na Alemanha.
Figura 6 – Importações ajustadas pela inflação (França, Alemanha e Itália)
O geralmente fraco desempenho do comércio externo da Itália (e da França) não pode, é claro, ser explicado seriamente com chavões. E claro que também não pelo facto (como mostrámos muitas vezes) de que os “aforradores” alemães quisessem “investir” o seu capital no estrangeiro. O que poderia ter impedido os aforradores franceses e italianos de “investirem” no estrangeiro? Não, é bem claro: a divergência de competitividade que surgiu desde o início da união monetária europeia é responsável pelas amplas discrepâncias nos desempenhos de comércio externo.
A melhor maneira de medir a competitividade de um país é utilizar a chamada taxa de câmbio ajustada, ou seja, uma média ponderada (a nível mundial) das diferenças na evolução dos custos unitários do trabalho e alterações nas taxas de câmbio nominais (Figura 7). Isto mostra que a desvalorização alemã, isto é, a melhoria da sua competitividade, principalmente se comparada com a Itália, tinha atingido enormes proporções em 2009. Mas mesmo hoje, ainda existe um fosso de 20% separando a Itália da Alemanha e impede que o país tire proveito das oportunidades nos mercados mundiais e na Europa de que poderia usufruir se não houvesse essa disparidade.
Figura 7 – Taxa de câmbio ajustada (França, Alemanha e Itália)
É também muito claro que esta melhoria da competitividade alemã não pode ser atribuída à “eficiência” alemã, mas exclusivamente ao facto de que desde o início a Alemanha aumentou os salários demasiado pouco em relação à sua própria produtividade e a Itália aumentou os salários demasiado (Figura 8). Contudo, a Itália regressou agora à sua meta de inflação, enquanto a Alemanha ainda está bem abaixo dela.
Figura 8 – Custos unitários do trabalho (Itália, Inflação na área económica europeia, Inflação na área económica europeia sem a Alemanha, Objetivo de inflação, Alemanha)
Aquilo que realmente importa
O maior mal-entendido em relação à Itália (como em relação à Grécia alguns atrás) assenta numa fraca análise em geral. Muitas pessoas que não estão habituadas a explicar processos económicos em concreto tendem a utilizar fatores que não são de modo algum transitórios para poderem explicar uma fraqueza temporária. Estes incluem a corrupção, excessiva burocracia e certas formas de regulamentação do mercado de trabalho.
Mas isto deve ser rejeitado desde o início visto ser uma abordagem inadequada. Como disse uma vez um colega italiano: “A corrupção existe em Itália desde há pelo menos duzentos anos, mas isso não pode explicar o motivo porque a economia não funcionou nos últimos dez anos.” Na realidade, nenhum destes fatores ajuda a explicar certos fenómenos temporários, uma vez que existem há décadas e anteriormente não impediram o país de crescer e criar empregos.
Vamos continuar a negar a verdade?
À luz disto a grande maioria das opiniões em Itália são pelo menos tão erradas como as que foram emitidas em relação à Grécia. Basta olhar para a capa desta semana do popular magazine semanal alemão Der Spiegel. Não só é de extremo mau gosto e ofensiva para com os nossos vizinhos italianos, mas tão falha de substância que a palavra “vergonha” não é suficiente para descrever o que uma pessoa sente quando confrontada com uma tal porcaria. Apenas uma frase de todo este discurso sugere que os autores tenham alguma ideia do que se está a passar,
“A Itália apresenta um triste retrato, representa um fracasso político, mas também pelos efeitos das tentativas feitas para salvar o euro, que fortaleceram os extremistas, e não só em Itália.”
Oh sim, a Itália também é uma referência das tentativas de salvar o euro. Mas quais? Esteve a Alemanha envolvida? E porque não é a Itália uma referência da política errada da Alemanha na união monetária desde o início? Hendrik Enderlein, professor de economia política na Hertie School of Governance em Berlim, que pouco depois foi citado na Der Spiegel como sendo “um bom europeu”, provavelmente “esqueceu-se apenas” de qual foi o papel que a Alemanha desempenhou e ainda desempenha na Europa.
E depois há a Chanceler Angela Merkel, que explica num jornal alemão que “na zona euro é necessária uma mais rápida convergência dos estados-membros”, mas nem sequer é capaz de dizer o quer realmente dizer com isso: refere-se a uma convergência nominal, isto é, convergência de taxas de inflação e custos unitários do trabalho ou convergência real, isto é, convergência de níveis de vida? A primeira é de facto urgentemente necessária, mas a Alemanha não fornece os recursos necessários. A última não é necessária numa união monetária, mesmo se desejável, o que ninguém nega.
Como se vê, a atual situação não pode ser explicada com falsos argumentos. Nem é possível explicar com a aplicação da usual negação de responsabilidade alemã ou com argumentos ocos. Se não fizermos uma tentativa séria de partir de conceitos económicos tradicionais, a Europa não poderá salvar-se. No fim de contas, devíamos compreender que a recusa alemã se tornou intolerável para os nossos vizinhos. Em Itália existem economistas esclarecidos que compreendem as ligações económicas relevantes. Esperemos que o novo governo não se impressione com os habitualmente estúpidos contra-argumentos alemães, mas que solicite em voz alta a atenção da opinião pública europeia para explicar o seu caso e o papel da Alemanha neste desastre.
Este artigo foi publicado em alemão em Makroskop (makroskop.eu) e em inglês em Brave New Europe (braveneweurope.com).
Texto disponível em http://www.flassbeck-economics.com/heiner-flassbeck-the-italian-patient-a-current-economic-assessment/