Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – O modo sorrateiro como a austeridade foi vendida ao público, como banha da cobra. Entrevista de Lynn Parramore  a Orsola Costantini

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

O modo sorrateiro como a austeridade foi vendida ao público, como banha da cobra

Entrevista de Lynn Parramore Lynn Parramore a Orsola Costantini Orsola Costantini

Institute for New Economic Thinking, 22 de dezembro de 2015

 

3 o modo sorrateiro

Uma abordagem orçamental camuflada com a aura da ciência e do jargão técnico tornou-se um instrumento de manipulação.

Orsola Costantini, economista senior no Institute for New Economic Thinking, é a autora de um novo trabalho, “The Cyclically Adjusted Budget: History and Exegesis of a Fateful Estimate,” (O orçamento corrigido das variações cíclicas: história e exegese de uma estimativa fatídica) que expõe a fascinante— e perturbadora — história de como uma abordagem orçamental camuflada numa aura científica e técnica se tornou um instrumento de manipulação da opinião pública e serve os interesses dos poderosos. Na entrevista que apresentamos, ela revela como a austeridade foi vendida ao público através de um processo que prejudica as vidas das pessoas comuns, consolida o conhecimento e o poder no topo, e compromete a própria democracia. À medida que a desigualdade económica atinge novos patamares e programas de austeridade são debatidos em todo o mundo (mais recentemente, em Espanha e Portugal), compreender como uma mentira se torna uma “verdade” política e económica nunca foi tão importante.

Lynn Parramore: O seu recente trabalho trata de algo chamado “orçamento corrigido das variações cíclicas ou efeitos da conjuntura.” De que se trata e o que significa para a vida das pessoas comuns?

Orsola Costantini: O orçamento corrigido das variações cíclicas (Cyclically Adjusted Budget-CAB) é uma estimativa estatística que ajuda os responsáveis governamentais quando decidem em que gastar o dinheiro e em quanto vão tributar as pessoas. São sobretudo governos centrais que o utilizam, mas também instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Os economistas dirão que esta ferramenta é imprecisa. No entanto, as instituições nacionais e internacionais ainda confiam nela para justificar decisões importantes quanto à despesa pública e à tributação.

Mas há algo que os especialistas não dizem: o orçamento corrigido das variações cíclicas pode ser facilmente manipulado, dependendo da direção em que sopram os ventos políticos. E é suficientemente técnico e obscuro de modo que as pessoas comuns tendem a vê-lo como objetivo e inquestionável. É aqui que começa o problema.

A utilização do CAB pelos políticos e responsáveis do governo pode limitar o leque de escolhas políticas que parecem viáveis para uma comunidade. Os decisores políticos podem evitar o incómodo de assumir a responsabilidade política por estas escolhas, também. Tínhamos de fazê-lo! Assim o obriga o orçamento!

Veja o que aconteceu em toda a Europa em 2008: Uma coisa é dizer aos estudantes na rua que a sua educação e bem-estar económico não são uma prioridade para o governo enquanto que salvar os bancos o é. Muito diferente é dizer que os políticos nada têm a ver com isso e que a economia exige a tomada de determinadas decisões, por vezes dolorosas.

LP: A senhora indica que essa abordagem do orçamento foi inventada como uma forma de tornar o New Deal aceitável para a comunidade empresarial. Como é que isso resultou? Com o tempo, quem se beneficiou com isso? Quem perdeu?

OC: Na década de 1940, os trabalhadores lutavam pelos seus direitos, a luta de classes estava a aquecer e os soldados iriam brevemente regressar das frentes de batalha. Nesse ponto, uma nova organização para a atividade económica foi criada, o Committee for Economic Development (CED). Dirigida por Beardsley Ruml e outras figuras importantes do mundo empresarial, o CED desempenhou um papel crucial no desenvolvimento de uma abordagem conservadora para a economia keynesiana que ajudou a que se fizessem políticas que ajudariam a colocar todos os americanos a trabalhar de forma aceitável para a comunidade empresarial. A ideia era que mais consumidores se traduziriam em mais lucros – o que é bom para o a atividade empresarial. Afinal, os peritos económicos e os técnicos do orçamento foi o que disseram, não apenas os políticos. E os dirigentes empresariais foram informados de que o crescimento económico e a estabilidade de preços seguir-se-ia em paralelo com o crescimento, o que eles gostaram de ouvir.

Mas as coisas mudaram progressivamente durante a década de 1970 e início de 1980. As empresas tornaram-se globais. Elas tornaram-se financeirizadas. O equilíbrio de poder entre trabalhadores e proprietários começou a deslocar-se mais para os proprietários, os capitalistas. As pessoas foram informadas de que precisavam de fazer sacrifícios, que tinham de aceitar cortes nas despesas sociais e menos direitos e benefícios no trabalho — tudo em nome da ciência económica e do capitalismo. O orçamento ajustado das variações cíclicas transformou-se numa ferramenta para evitar gastos excessivos — ou justificar cortes selecionados.

As pessoas da classe média tinham receio que a inflação corroesse as suas poupanças, por isso estavam mais interessadas em aprovar medidas draconianas para se cortar nos salários e reduzir os orçamentos públicos. As pessoas nos degraus mais baixos da escala económica foram as primeiras a sentir a dor da aplicação destas medidas. Mas, eventualmente, a classe média caiu para o lado errado da barreira, também. A maioria deles tornou-se relativamente mais pobre.

Suponho que isto mostra os limites da democracia quando a informação, o conhecimento e, em última instância, o poder estão distribuídos de forma desigual.

LP: A senhora está realmente a falar sobre o nascimento da austeridade e da forma como as mentiras sobre gastos públicos e orçamentos foram vendidas ao público. Porque é que a austeridade é uma ideia tão poderosa e porque é que os políticos ainda ganham eleições promovendo-a?

OC: A ideia da austeridade é tão poderosa hoje porque se alimenta de si mesma. Torna as pessoas inseguras sobre as suas vidas, as suas dívidas e os seus empregos. As pessoas ficam com medo. É um forte mecanismo de disciplina. As pessoas deixam de unir forças e o status quo político fica assim mantido.

Mesmo o nome desta ferramenta, o “orçamento corrigido das variações cíclicas”, carrega uma aura de respeito. Ele desvia a nossa atenção. Não o questionamos. Cria uma barreira entre o indivíduo e o reino político: mina a própria participação democrática. Esta teoria obscura valida, com a sua autoridade, um grande erro económico que soa como o senso comum, mas que é realmente banha da cobra – a noção de que o orçamento do governo federal é como um orçamento familiar. Na verdade, não é. A sua casa não cobra impostos, não imprime papel-moeda.  Na verdade, o orçamento público funciona de forma muito diferente, mas o absurdo de que ele se deve comportar exatamente como um orçamento familiar, é o  que nos  é repetido por políticos e formuladores das politicas seguidas que, no fundo, só querem espremer as pessoas comuns.

LP: Como é que tudo isso se desenrola nos EUA e na Europa?

OC: A União Europeia exige que os seus membros cumpram uma chamada restrição orçamental ajustada das variações da conjuntura. Cada país tem de rever os seus planos económicos e fiscais com a Comissão Europeia e provar que são compatíveis com o Pacto. É um limite no défice de um país, mas é também muito mais do que isso.

Graças à estimativa, os governos da Itália ou da Espanha, por exemplo, devem forçar a economia em direção a alguma condição económica ideal, cuja definição é obviamente bastante controversa e tem até agora recompensado os países que implementaram a desregulamentação do mercado de trabalho, o corte nas pensões, e até mesmo mudaram a forma como se dão as eleições. De novo, é um mecanismo de controlo.

Nos EUA este cenário também se desenrola, embora menos estritamente. Falar sobre o orçamento muitas vezes assenta nas mesmas ferramentas estatísticas ardilosas e politicamente obscuras para apoiar um argumento ou o outro. Normalmente, ouvimos argumentos que sugerem que temos de cortar programas sociais e os direitos dos trabalhadores e benefícios ou enfrentar a desgraça económica. Sintonize os debates presidenciais e você vai ouvir isso – e note que não é estritamente limitado apenas a um partido.

LP: Como é que nós podemos parar jogadores tão poderosos de se apropriarem da economia e dos orçamentos para os seus próprios fins?

OC: O nosso sistema educacional é cada vez mais desigual e desprovido de recursos públicos. Isso é verdade nos EUA, mas também na Europa, onde a crise acelerou um processo que já estava em marcha. Quando as crianças não têm uma sólida educação, a produção de conhecimento cai no controle privado. O poder é, então, consolidado. Os quadros teóricos oficiais que beneficiam os mais poderosos ficam assim inamovíveis.

No campo económico, temos de envolver diferentes pontos de vista e mantermo-nos a questionar as narrativas e os quadros de pensamento dominantes. Um dia, a curiosidade humana salvar-nos-á da prostituição intelectual.

 

Texto original em https://www.ineteconomics.org/perspectives/blog/the-sneaky-way-austerity-got-sold-to-the-public-like-snake-oil

 

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