Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
TARGET 2 – ou atiçando as pessoas
Por Heiner Flassbeck e Joachim Nanninga
Publicado por Brave New Europe, em 29 de julho de 2018
Depois de o saldo alemão no TARGET 2 ter quase atingido um plus de 3 milhões de milhões de euros apareceu uma nova onda de artigos alarmistas na Alemanha, na qual os eternamente alarmistas economistas alemães tentam fazer crer ao povo alemão que “outros” querem atrair a Alemanha a uma armadilha financeira. Isto é um comportamento irresponsável.
Um leal leitor de Makroskop enviou-me recentemente o artigo de Werner Sinn sobre o TARGET (versão resumida no diário Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), em alemão) e pôs-me uma simples pergunta: “Porque escreve isto este homem? (o Professor Sinn foi presidente – 1999/2016 – do Ifo Institute for Economic Research em Munique).
Essa é precisamente a pergunta correta. Colocamos a mesma pergunta quando Thomas Mayer (antigo economista chefe no Deutsche Bank) faz soar campainhas de alarme no FAZ pretendendo que as reivindicações alemãs contra os outros países do euro estão a ser ignoradas e que tarde ou cedo o contribuinte alemão terá de preencher a lacuna a fim de repor o capital próprio do Bundesbank. Até mesmo numa muito pobre reportagem na televisão pública alemã (“Plus-Minus” na ZDF), todos os truques são usados para transmitir ao espetador alemão a ideia de que a Itália é na verdade a responsável por esta suposta miserável situação.
Economistas alarmistas
O que os economistas alarmistas têm em comum sobre a questão do sistema TARGET é que eles nunca explicam de onde provêm os saldos e que tem a Alemanha que ver com eles. Do ponto de vista técnico da questão, Joachim Nanninga disse repetidamente quase tudo o que é importante e tornou claro também que os saldos divergentes são sinais de evoluções indesejáveis:
“O sistema Target, i.e., a tecnologia processadora de pagamentos transnacionais dentro da zona euro, não na verdade um problema, mas sim um eficiente instrumento técnico de pagamento de transações. Contudo, os saldos divergentes são um sinal de alarme explosivo. Mas qualquer um que conduza o debate de forma a que seja visto que este é um problema “de reivindicações alemãs para reembolso da dívida” e de “cobrança de dívida” que resultaram de uma posição credora injustamente imposta aos alemães, está na verdade a tentar impedir que os sinais de alarme sejam corretamente interpretados.
Estes “saldos divergentes” são exatamente aquilo de que se trata, mas essa não é a questão que os economistas alarmistas na Alemanha abordam. Eles querem muito simplesmente criar um sentimento anti-euro e aumentar as paixões alemãs contra um país como a Itália a fim de desviar a atenção dos problemas reais que surgiram na zona euro.
Não há dúvida que existem dois problemas económicos chave que estão detrás dos saldos TARGET: os crescentes excedentes da conta corrente da Alemanha em relação ao resto da zona euro (só em 2017 foram 80 mil milhões de euros, excedente que foi maior que em 2016 e maior no primeiro trimestre de 2018 do que no primeiro trimestre de 2017) e a incerteza associada daqueles que detêm euros em conta bancária num país como a Itália. No seu último comunicado, o Bundesbank, o banco central alemão, assinala um novo efeito que ocorreu recentemente no decurso das compras do BCE de títulos públicos e a sua distribuição para os vários bancos em diferentes centros bancários, mas suspendamos essa questão de momento.
“Fuga de capitais”
Consideremos um caso muito simples: um cidadão italiano que detém 10.000 euros na sua conta num banco comercial em Itália começa a ter dúvidas quanto a este investimento porque, diz para si mesmo, deixou de ser 100% seguro que a Itália se mantenha na zona euro, vistas as declarações de alguns membros do novo governo. É claro para ele que se a Itália sair, a sua conta em euros em Itália estará em risco de ser convertida para uma nova moeda italiana como resultado de eventuais alterações legislativas. Em virtude da diferença de competitividade entre o seu país e a Alemanha, ele prevê que uma nova moeda italiana se desvalorizaria e que, por conseguinte, seria expectável perder parte da sua poupança que está formalmente expressa em euros.
Que pode o cidadão italiano fazer para proteger as suas poupanças? A medida mais simples é levantar os 10.000 euros em dinheiro. Ele está seguro de que poderá sempre utilizar esses euros para adquirir bens na zona euro, porque é muito improvável que um governo italiano retire dinheiro aos seus cidadãos ou proíba a sua troca. Obviamente, neste caso, economicamente nada acontece na zona euro, apenas é necessário mais dinheiro em dado momento do que anteriormente.
Mas o cidadão italiano pode também transferir os 10.000 euros do seu banco italiano para um banco alemão por força da sua relutância em deter grandes somas de dinheiro em euros em casa. Isto é habitualmente apelidado de “fuga de capitais”. Neste caso, ele muda a jurisdição onde está detido o dinheiro, o que o protege contra uma desvalorização de uma nova moeda italiana na eventualidade de o seu país sair do euro.
Mais uma vez, neste caso, absolutamente nada de importante economicamente acontece na zona euro. Não há alterações nos ativos financeiros, nem nos fluxos de despesa e rendimento na economia real. Todavia, neste caso, os saldos no sistema TARGET 2 alteram-se.
A lógica do sistema TARGET
A transferência feita pelo cidadão italiano leva às seguintes alterações na posição dos respetivos saldos:
1) Débito da sua conta italiana pelo montante da transferência
2) Redução dos ativos da banca comercial italiana vis-a-vis o banco central italiano pelo mesmo montante
3) Diminuição do passivo da banca comercial italiana perante o cidadão italiano pelo mesmo montante (idêntico ao ponto 1)
4) Redução do passivo do banco central italiano em relação à banca comercial italiana pelo mesmo montante (idêntico ao ponto 2)
5) Um novo passivo do banco central italiano perante o Banco Central Europeu pelo mesmo montante
Nada mudou nos ativos financeiros do cidadão italiano. Os seus créditos deixam de ser sobre um banco italiano, mas foram transferidos para um banco comercial alemão. O balanço do banco comercial alemão permanece equilibrado: passivos e ativos diminuíram pelo mesmo montante (contração do balanço). O banco central italiano tem agora um passivo perante o BCE em vez de perante a banca comercial italiana (permuta de passivo). O BCE contabiliza um ativo para o banco central italiano e um passivo para o Bundesbank (extensão do balanço).
Se a esta transação não corresponde uma de igual montante em direção oposta, temos então um aumento dos saldos TARGET2, negativo para a Itália e positivo para a Alemanha nesse mesmo montante, 10.000 euros. No entanto, nada mudou na economia real. Mais do que nunca, os alegados créditos da Alemanha sobre a Itália não se alteraram.
Do lado alemão os registos seriam como segue:
6) Um novo ativo do BCE contra o banco central italiano pelo montante da transferência (idêntico ao ponto 5)
7) Um novo passivo do BCE pelo montante transferido para o Bundesbank
8) Um novo ativo do Bundesbank contra o BCE no mesmo montante (idêntico ao item 7)
9) O novo passivo do Bundesbank com o banco comercial alemão…
10) O novo ativo do banco comercial alemão contra o Bundesbank … (idêntico ao item 9)
11) Um novo passivo do banco comercial alemão para com o cidadão italiano…
12) O crédito italiano é agora sobre o banco comercial alemão em vez de ser sobre o banco comercial italiano.
Quais são as causas?
Este exemplo mostra claramente que uma transação que não tem impacto na economia real não pode levar a uma alteração dos saldos TARGET em qualquer das áreas do euro. A divergência destes saldos e a realidade das transações económicas comprova aquilo que as análises sérias sempre afirmaram: não se pode concluir do ciclo paralelo do sistema de pagamentos que o sistema real (o sistema da despesa e da receita) esteja a correr mal.
A única coisa que podemos e devemos fazer neste caso é perguntarmo-nos de onde vem a insegurança do cidadão italiano, que desencadeia a realocação das suas poupanças. Aqui a resposta é muito simples e já a demos muitas vezes: a União Económica e Monetária Europeia (UEM) foi mal construída desde o início, porque não foram tomadas precauções contra a massiva verdadeira subavaliação e sobre avaliação, i.e., alterações na competitividade das economias nacionais.
E não pode igualmente haver dúvidas que a Alemanha teve uma contribuição considerável para esta situação com uma estratégia de subavaliação desde o início dos anos 2000. A Alemanha violou o princípio da estabilidade acordado por todos os países da UEM ao provocar uma desvalorização dos seus próprios salários, e colocou-se 1,9% abaixo do objetivo fixado pelo BCE para a inflação da União, objetivo este em conformidade com o princípio da estabilidade.
As consequências da apreciação real em Itália, França e outros países e a real desvalorização na Alemanha têm-se refletido em desequilíbrios comerciais (saldos das contas correntes) e alterações na quota parte de mercado no mercado mundial, que não podem ser eliminados sem que ocorram graves consequências económicas e políticas se não houver a possibilidade de desvalorização ou valorização das moedas nacionais. Em consequência, existe uma considerável incerteza quanto à continuação da existência da UEM, o que está a causar inquietude entre os aforradores nos países que tiveram apreciação em termos reais, i.e., que perderam competitividade.
Atirando achas para a fogueira
Com a recusa da maioria dos seus políticos e economistas em darem ouvidos a este fenómeno, quanto mais tomarem medidas para o eliminar, a Alemanha aumentou dramaticamente a incerteza nessas nações que perderam terreno quanto à competitividade, o que contribuiu para um aumento dos saldos TARGET. E isto não se aplica somente aos políticos. O Bundesbank, que é parte do sistema euro e parece estar a tentar suavizar as ondas sobre o público alemão, está ele próprio a deitar achas para a fogueira.
No final do artigo acima citado o Bundesbank reivindica:
“O Bundesbank assume que o sistema do euro continuará a existir na sua atual forma. A questão de um país sair é puramente hipotética. Em geral, os saldos TARGET2 são um sintoma, as causas do seu desenvolvimento situam-se fora do TARGET2.
Tais medidas incluem em particular a redução da dívida pública, reformas estruturais e fortalecimento da confiança na solvência e resiliência dos bancos. No médio/longo prazo – em certa medida como efeito colateral – devem então contribuir para a redução dos saldos TARGET2 aumentando a confiança na política económica da zona euro”.
O primeiro parágrafo está correto, mas o segundo está fundamentalmente errado. Não são medidas unilaterais nacionais – tais como a redução da dívida pública ou as “reformas estruturais” sem sentido – que podem resolver o problema subjacente; terá que haver sempre medidas dos dois lados dos desequilíbrios. Na Alemanha isto significa uma clara renúncia de competitividade (i.e. apreciação real) a favor daqueles países que tiveram que desvalorizar em termos reais em virtude de terem previamente valorizado em termos reais. Aqueles que não falam sobre as divergências que surgiram e não nomeiam os responsáveis (de ambos os lados) fazem o jogo dos que, com as suas estranhas discussões sobre o TARGET – ininteligíveis para os leigos – reforçam os preconceitos contra outros países, desviam a atenção dos seus próprios erros e, em última instância, destroem qualquer possibilidade de cooperação europeia.
Texto original em https://braveneweurope.com/heiner-flassbeck-and-joachim-nanninga-target-2-or-how-to-stir-up-the-people
Heiner Flassbeck é economista,bem como autor e editor de “Makroskop” e “flassbeck economics international”
Joachim Nanninga estudou filosofia em Erlangen e Hamburgo e trabalhou em educação de adultos e como consultor de gestão.
Artigo original publicado em alemão em Makroskop