Sobre as razões que estão na base dos focos de tensão entre a China e os Estados Unidos – 1. Olhemos para a realidade atual a partir de Esparta e de Atenas. Excertos de “Lessons for America from the Ancient Greeks”, por Cher Yi

Tensão EUA China 0

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

1. Olhemos para a realidade atual a partir de Esparta e de Atenas

 

“Estuda o passado, se quiseres decifrar o futuro.”

(Confúcio) 24-06-10

“Aqueles que não conseguem estudar a história estão condenados a repeti-la.”

(Churchill)

 

 

Excertos de “Lessons for America from the Ancient Greeks”

Cher Yi Por Cher Yi

Publicado por Medium em 1 de abril de 2018

 

O que nos ensina a queda de um império sobre os políticos divididos de hoje?

A Grécia clássica é famosa de duas maneiras totalmente diferentes. Os gregos eram famosos pela sua idade de ouro, mas também pela curta duração desta mesma idade de ouro.

No seu apogeu, a Grécia vangloriava-se das suas proezas militares — a sociedade guerreira espartana e a marinha ateniense. Os gregos também eram famosos pelas suas artes (a Ilíada e a Odisseia de Homero), a sua governança (a democracia ateniense), as suas esculturas (a Acrópole, o templo de Zeus, etc.), os seus deuses (o Panteão de Zeus, Hades, Posídon), os seus desportos (a maratona e as Olimpíadas), os seus filósofos (Sócrates, Platão e Aristóteles), e ainda a fama das suas Humanidades.

Muitos dos preceitos que hoje damos por adquiridos são parte da herança espiritual da Grécia clássica – razão, matemática, governança, para citar apenas uns poucos. Alguns intelectuais, como Will Durant, têm mesmo chegado ao ponto de afirmar que “não há nada na civilização grega que não ilumine a nossa própria civilização”.

(…)

A Grécia clássica nunca foi formalmente um império até Alexandre, o Grande, assumir o poder. A Grécia clássica era  composta por pequenas cidades-Estados fragmentados que tinham as suas discordâncias. Esta situação é um claro contraste com o Império Persa situado a leste, que era formalmente um império e exerceu a governança de forma centralizada. É também por isso que os autodidatas persas ficaram muito incomodados quando não conseguiram subjugar a Grécia em 490 a.C., mas não nos adiantemos.

O termo “polis” significava literalmente cidade em grego, e havia muitas. Delfos, Tebas, Atenas, Corinto, Olímpia, Esparta etc. Mas as duas mais relevantes eram Atenas e Esparta, porque durante o período da Grécia clássica, estes eram os dois poderes que estavam na vanguarda de todos as polis gregas. Ironicamente, veremos mais tarde que foram também estes dois poderes que foram responsáveis pelo fim da Era Dourada grega.

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A Grécia pode ser pensada como sendo constituída por duas massas terrestres separadas por uma pequena passagem — o Peloponeso e a Grécia continental. Esparta está localizada no Peloponeso, uma terra de solo fértil. Por outro lado, Atenas estava localizado na Ática, a Grécia continental.

Esparta era uma sociedade guerreira fechada. No seu auge, conquistou aldeias vizinhas, condenando os seus moradores à situação de “hilotas” — servos do povo espartano. A sua expansão agressiva permitiu aos espartanos sustentar uma economia vibrante e manter o crescimento da população.

Hoje, os famosos espartanos são conhecidos pelas suas proezas militares, e isso, em parte, não deixa de ser verdade historicamente. Eles eram um grupo de gente temível. O legislador espartano Licurgo é considerado ter sido o pioneiro desta força icónica, falando de “uma parede de homens, em vez de tijolos”.

A hierarquia social tornou-se assim cada vez mais determinada pelos feitos militares mais do que assente numa base educacional. O pináculo da sociedade — os reis – eram líderes guerreiros em vez de táticos diplomatas, que preferiam a espada à caneta. Na verdade, houve dois reis que reinaram simultaneamente em Esparta, um designado para lutar e o outro encarregado de governar na sua ausência. O rei mais famoso foi Leónidas que conduziu Esparta na batalha de Termópilas.

Surpreendentemente para uma tão masculina sociedade, as mulheres de Esparta gozavam de mais direitos que as suas homólogas da época. Podiam ser proprietárias e eram livres de andar pela cidade. Metade das terras de Esparta era de propriedade de mulheres.

Comparada com a Roma patriarcal ou mesmo a democrática Atenas, Esparta era relativamente liberal com as suas mulheres. Em geral os historiadores explicam esta anomalia com o facto de os homens espartanos estarem longe de casa, em lutas na maior parte do tempo. Assim, a cidade era atendida pelas mulheres. (…)

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A coruja de Athena, um símbolo ateniense. Marie-Lan Nguyen/Wikimedia/CC BY 2.5

Do outro lado da península, outro poder estava a crescer — Atenas. Em contraste com o famoso exército de Esparta, Atenas tinha uma marinha que era dominante.

Embora Atenas não tivesse a fortuna de uma terra fértil como Esparta, estendeu-se ao longo da costa do mar Egeu, contando principalmente com o comércio marítimo com outras polis para se desenvolverem. No entanto, a riqueza lentamente foi-se concentrando na aristocracia, forçando muitos à situação de escravos por endividamento e cultivando uma população civil infeliz.

Isso leva-nos ao celebrado nascimento da democracia ateniense. Em 621 a.C., o político Draco estabeleceu leis para enfrentar as iniquidades em Atenas. No entanto, as leis foram consideradas por muitos como sendo demasiado duras para com os ricos (daí o termo moderno “draconiano”).

O legislador Sólon acaba por lhe suceder e levou a cabo mudanças sábias na Constituição ateniense. Ele cancelou a escravidão por dívida, promoveu o sistema legal, estabeleceu e cuidou de rotas comerciais, incentivou a migração de homens de negócios e, mais importante ainda, baixou os requisitos para ocupação de cargos públicos e estabeleceu os fundamentos da democracia.

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Mas foi com o estadista Péricles que Atenas entrou na sua famosa Era Dourada. Durante o período 500 a.C.-425 a.C., sob as reformas de Péricles, a cultura, filosofia, ciência e a democracia floresceram.

(…)

 

 

A Guerra do Peloponeso.

Mas o domínio grego não durou muito tempo.

A armadilha dita de Tucídides tem sido utilizada para descrever muitos conflitos de grande envergadura que assolam a humanidade moderna. A armadilha refere-se à situação de um confronto inevitável entre uma potência emergente que é vista como estando a ameaçar os interesses da potência hegemónica.

Hoje, vemos várias versões da armadilha de Tucídides à nossa volta. Os chineses estão prestes a retaliar, por exemplo, depois de o presidente Donald Trump ter imposto tarifas aduaneiras sobre as importações de aço e alumínio da China.

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História das guerras do Peloponeso documentadas por Tucídides — Domínio público

Na verdade, a versão original deste inevitável choque foi o conflito que eclodiu entre Esparta e Atenas após o fim da segunda invasão persa da Grécia.

“Foi a ascensão de Atenas e o medo que isso levantou em Esparta que tornou a guerra inevitável” – Tucídides

A vitória naval retumbante que Atenas obteve no Estreito de Salamis comparada com a derrota do esforço militar de terra dirigido por Esparta em Termópilas não poderia ter sido mais gritante.

Enquanto os espartanos eram bem conhecidos como uma sociedade manifestamente militarista e disciplinada, a narrativa em torno dos atenienses era a de um povo idealista. Eles experimentaram com a história, a democracia, a ciência, a filosofia, a poesia e a música, enquanto os espartanos se alimentavam em combates implacáveis. Assim, quando os atenienses provaram que eles também eram uma força a ser levada em conta, os espartanos sentiram-se ameaçados na sua cadeira do poder.

Outros desenvolvimentos aumentaram a tensão. Em 478 a.C., os atenienses criaram a liga de Delos, consolidando as marinhas de outros aliados do mar Egeu para se defenderem de um futuro ataque persa. Esparta viu este movimento como uma tentativa ateniense de forjar o seu próprio império. Além disso, os atenienses tinham planeado construir uma série de longas muralhas para se protegerem de qualquer força baseada em terra. Isso não agradou aos espartanos, que viram isso como uma preparação para a guerra.

Em 464 a.C., aproveitando um grande terramoto que devastou as cidades espartanas, os hilotas (servos espartanos) levaram a cabo uma importante rebelião que provocou muitas dores de cabeça a esses grandes guerreiros. A maioria dos soldados tinham perdido as suas casas e terras, e estavam a recuperar as suas perdas. A fraqueza de Esparta, desta maneira, tornou-se exposta, forçando este povo outrora orgulhoso a pedir ajuda de outros Estados gregos para reprimir a rebelião.

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Helot Revolt — History Collection

 

Talvez num gesto de boa vontade, os atenienses decidem ajudar e enviam 4000 dos seus hoplitas (cidadãos-soldados) para Esparta. Escusado será dizer que, sentindo-se como poder militar superior, os espartanos sentiram-se inseguros pedindo ajuda a um dos seus rivais. Eles ainda se questionaram se aos hoplitas foram secretamente dadas ordens de se colocarem ao lado dos hilotas para derrubarem os espartanos de uma vez por todas. Por fim, mandaram embora os hoplitas de volta a Atenas, ofendendo com isso os atenienses.

Este período de desconfiança entre dois grandes ex-aliados que outrora evitaram uma grande invasão persa atingiu o seu máximo em 459 a.C., quando Atenas fez uma aliança com Megara, um aliado espartano até então. Indignada, Esparta declara guerra a Atenas, que dura cerca de 15 anos por meio de múltiplas pequenas escaramuças. Esta foi a primeira guerra do Peloponeso — uma guerra civil grega, mas que felizmente termina num “Tratado de paz de 30 anos” em 445 a.C.

Esta paz, no entanto, não durou muito tempo. Como a liga de Delos (formada pelos atenienses) cresceu e tornou-se bem mais forte, Esparta ficou mais receosa de poder crescente do seu rival e concorrente à hegemonia, levando-a a sentir sinais de confronto quando de facto não havia nenhum. Embora os atenienses tentassem lembrar Esparta do seu registo de sucesso militar aliado contra os persas, após 15 curtos anos, Esparta decidiu declarar que os atenienses tinham quebrado a paz dos trinta anos e declarou-lhes guerra mais uma vez.

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A segunda guerra do Peloponeso mostrou ser muito mais devastadora do que a primeira. Em 431 a.C., o rei de Esparta decide invadir a Ática, onde está Atenas, no que é mais tarde conhecido como a guerra Archidamian. Em resposta, a marinha ateniense invade várias aglomerações costeiras do Peloponeso na costa do mar Egeu como retaliação. No entanto, outro tratado de paz foi negociado (“a paz de Nícias”) em 421 a.C., mas este durou apenas cinco anos.

Em 415 a.C., os atenienses desenvolvem ambições para se tornarem um grande poder grego, e passam a olhar para o Ocidente ao longo do Mediterrâneo. Fixando a sua atenção em Siracusa, na Sicília (Itália), enviam 100 navios para conquistar as terras ricas. Apelidada de “expedição siciliana”, esta foi uma expedição de alto risco, mas com a sua equivalente quota de recompensas.

Mas a ganância ateniense provou ser uma função do seu próprio destino. Ao terem ouvido falar desta expedição ambiciosa, os espartanos imediatamente enviaram ajuda para o povo de Siracusa. Os atenienses enviaram mais reforços, mas sem sucesso. Juntamente com outros aliados do Peloponeso, Esparta decisivamente derrota a famosa marinha ateniense e praticamente força todo o seu exército à escravidão.

 

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The Sicilian Expedition — Wikipedia

 

No final da expedição siciliana, os atenienses estavam completamente falidos. O seu tesouro estava vazio, os seus soldados foram escravizados e os únicos navios que permaneciam nas suas docas eram barcos de pesca. Os atenienses perderam uma aposta arriscada e todos reconheceram que o seu fim estava iminente.

Assim, as cidades conquistadas como parte do “império ateniense” na costa Jónica em todo o Egeu aproveitaram esta oportunidade para se revoltarem contra os seus soberanos. Os espartanos financiaram essas revoltas, e numa estranha reviravolta dos acontecimentos, até mesmo aceitaram a ajuda dos persas em 414 a.C. para combater os atenienses. Irónico, considerando que esses dois poderes se mataram violentamente uns aos outros apenas 70 anos antes. O poder da amnésia histórica para alinhar a realidade com os interesses nacionais nunca deixa de me surpreender.

Os espartanos e os atenienses continuam em guerra, e finalmente, os atenienses enfraquecidos são completamente derrotados na batalha naval em Egospótamo em 405 a.C., pondo assim um termo à guerra de 50 anos a favor do poder hegemónico existente, Esparta.

 

Não se engane, no entanto. Nem os atenienses derrotados nem os espartanos vitoriosos saíram desta guerra sem sofrer enormíssimos danos

Lembremo-nos, foi apenas 70 anos antes que eles alcançaram uma vitória extraordinariamente improvável contra a hegemonia persa. Esse período, incluindo o prelúdio das guerras Greco-persas, foi o auge da civilização grega. Enquanto os espartanos se banhavam em glória militar, os atenienses também estavam na vanguarda da inovação.

A Grécia clássica, afinal, é bem conhecida por esta era dourada de pensadores e estudiosos – Heródoto (pai da história), Hipócrates (pai da medicina), Fídias (escultor famoso), Demócrito (pai do átomo), Pitágoras e Euclides (pais da matemática).

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Pitágoras                                            Hippocrates — Medical Tourism Greece

 

A filosofia também floresceu durante esta era dourada embora estivesse confinada principalmente a Atenas – onde Sócrates, Platão e Aristóteles residiam. Enquanto Sócrates democratizava a filosofia para as massas, Platão e Aristóteles fundaram as suas próprias escolas de pensamento — a Academia e o liceu. Estes 3 grandes homens, relacionados uns com os outros por uma dinâmica professor-aluno, tiveram uma grande influência, até mesmo sobre o discurso moderno. Hoje, nós tomamos a razão, a virtude e a humildade intelectual como bens morais, mas foi realmente Sócrates quem foi pioneiro em tal pensamento, e foi perseguido muito injustamente em consequência disso mesmo.

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Plato and Aristotle. Credit: DEA/G. Cigolini/De Agostini/Getty

 

Os gregos também tinham vivido em regimes com modelos políticos como a democracia sob Péricles e tinham uma grande estrutura comercial em Corinto. Eles foram pioneiros em competições atléticas interestaduais como as Olimpíadas e foram até eles que inventaram a maratona (assim chamada depois da batalha de Maratona). Os gregos também esculpiram estruturas magníficas como a Acrópole ateniense, o Pártenon, o templo de Zeus, o templo de Hera, alguns dos quais ainda estão de pé hoje!

Mas depois de uma vitória heroica contra os persas que mostrou o potencial grego para alcançar a grandeza, eles caíram num sangrento conflito de guerra civil. Isto enfraqueceu as bases para a futura conquista de Filipe, e depois por Alexandre da Macedónia-um estrangeiro.

Podíamo-nos entregar a uma experiência puramente intelectual – e se, em vez disso, Esparta e Atenas se tivessem unido? Teria havido um “Império grego”? Quantos outros Sócrates teria produzido uma sociedade intelectualmente tão fértil?

Claro, isto é apenas um exercício hipotético. Esparta e Atenas estavam prisioneiras na armadilha de Tucídides, e não conseguiram escapar do inevitável conflito. Mas como Churchill disse uma vez: “aqueles que não conseguem estudar a história estão condenados a repeti-la”.

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Photos by Johannes Eisele (left) and Brendan Smialowski (right). (AFP/Getty)

 

Hoje, vemos várias representações da armadilha Tucídides a acontecerem à nossa volta, mais notavelmente entre a China com um poder fortemente crescente contra a Pax Americana. Trump impôs tarifas sobre o aço e o alumínio contra as importações chinesas, e os chineses estão prontos para retaliar.

Embora esta batalha real seja muito mais civilizada; apresentando um cocktail de disparidade política e de barreiras comerciais em vez de combates sangrentos, está, no entanto, sujeita à mesma conclusão inevitável a que os grandes gregos chegaram. Ou seja, o fim de uma era dourada de crescimento político, científico, social e cultural.

As diferenças profundas entre a força dos gregos quando estiveram unidos contra os persas nas guerras Greco-persas versus quando eles teimosamente pegaram em armas uns contra os outros nas guerras do Peloponeso são reveladoras. Revela os valores que tentamos inculcar nos nossos filhos, mas que não conseguimos observar como adultos “maduros”- que trabalhar em conjunto é muito mais produtivo do que trabalhar sozinho; que o mundo não é um jogo de soma zero; e que todos podem dele beneficiar quando abrimos as nossas fronteiras, físicas, mentais ou outras.

 

 

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