CARTA DE BRAGA – “das singelas explicações da cultura” por António Oliveira

 

Uma das consequências, talvez a mais marcante da contemporaneidade, esta, a que vivemos pela imposição das regras materializadoras do capitalismo global, é a diluição da noção de fronteira, a que não lhes interessa pela liberalização e homogeneização de consumo e consumidores.

Outra, aparentemente distinta e talvez paradoxal, é a conflitualidade, pelo acentuar da ‘ruptura’ que não conseguiram ultrapassar, pois ‘A descontinuidade que caracteriza a fronteira além da territorial, ser também linguística, cultural e até religiosa’ afirma Gilberto Giménez, um pioneiro da investigação em assuntos culturais.

Na verdade a complexidade da cultura dá uma dimensão à fronteira que nada interessa às ‘fábricas do consumo’, por ela ser ‘a base e o molde da nossas crenças e nos levar a entender a versão da realidade que ela mesma comunica’ afirmou a americana Gloria Andalzúa, também investigadora cultural.

Os problemas e alguns bem dramáticos com que nos vamos confrontando cada dia e, no caso da Europa, a transformarem o Mediterrâneo num enorme e dantesco cemitério e que, hoje também, transformam as linhas imaginárias das fronteiras em tremendas realidades, pelos processos impostos dolorosamente e onde, quase sempre, se omite ou se olvida a condição humana!

E nem será necessário voltar a citar todos os salvinisorbans e outros integrantes da legião de capatazes que tenta assumir a liderança do mundo ocidental, aquele mesmo onde já falharam as tentativas para realizar um império universal, ousadas pelos sinistros heróis de tais capatazes.

Aliás e à maneira de Cioran em ‘História e Utopia’, ‘é precisamente no momento que o Ocidente se retrai sobre si próprio, que as suas fórmulas triunfam e se expandem’, mesmo apesar de falhadas.

E por cá, neste pedaço bem pequeno do Ocidente, o grande público tem apenas a ‘janela do ecrã’ a fabricar-lhe a visão do mundo, pois também só ali tem as explicações, as emoções e os modelos para uma qualquer identificação mas, ‘quando todos padrões irrompem sem decência, alcançam-se profundidades homéricas’ avisou Umberto Eco na ‘Viagem na Irrealidade quotidiana

E estas novas formas de uma interpretação individualista da realidade assim transmitida, transformaram toda a cultura original, socializadora e identificadora, por a terem submetido às regras do consumo e do mercado, arrastando a original para o lugar das curiosidades, limitando-a um modesto fait-divers.

E nada melhor para explicar esta ‘realidade’ do que contar um episódio que testemunhei no lugar onde costumo comprar fruta; a cliente à minha frente, explicava à senhora do pequeno comércio, que vivia num lugar dividido entre dois concelhos e, de tal maneira, que ‘até a Santa está dividida! Pelo sítio e pelo modo como está a estátua, o rabo é do meu concelho e as mamas do concelho ao lado!

Perdoar-me-ão a ‘real’ vulgaridade da explicação, mas essa vulgaridade também é uma inconsciente e singela forma de protesto contra a actual expropriação tecnológica da cultura e ao risco de desaparecer a ‘linguagem’ e a singularidade única e própria de cada lugar!

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

6 Comments

  1. As tentativas de realizar um império universal já falharam? Na realidade, o que será a doutrina do “Destino Manifesto”?
    Que tal regressar-se à Primeira Europa de que falou Yann Fouéré na sua “LÉurope aux cent drapeaux” (Presse D´Éurope)..A dimensão cultural que fundamenta a noção de cultura deve abandonar-se ao sabor dos interesses perversos da contemporaneidade?Mau grado já vivermos da “janela do ecrã”, apesar de tudo, somos – ao que parece – dos raros, senão, o único Estado europeu em que, depois do 25 de Abril, só há uma Nacionalidade.

  2. Falharam aquelas tentativas, mas não se nega que apareçam outras, seguindo ou não os lemas que elas defenderam!
    É verdade, quando refere uma só nacionalidade mas, temo também vir a ter de concordar com Agostinho da Silva “As Aproximações” – “E nós, porque medrosos, não só vagamos mutilados e tristes, como ainda, cautelosamente, por meio de um ensino mais ou menos obrigatório e mais ou menos gratuito, preparamos novas gerações de gente apagada e melancólica”
    Apanhando quantas dezenas delas? E não se deverá ter isto em conta?
    E todo o anterior processo de crescimento do país?

  3. Mau grado “gente apagada e melancólica” não deixou de ter um falar espalhado pelos cinco Continentes e que que tanto entusiasmou o sábio Agostinho da Silva.. Dirigentes apagados, esses nunca faltaram – nem faltam – mas, reconheça-se que, apesar de tudo, algo há – muito diminuto – mas que tem conseguido salvar uma Nacionalidade – medrosos ?- quando tantas por toda essa Europa – valentes ? – são pasto dum expansionismo que nunca desiste de ir mais longe embora, bem sabido, com outro figurino. CLV

  4. Recordando Pavese, atrevo-me a dizer que quem tem convicções deve viver com elas pois, se as trair, fica com quê? Encostar-se no pessimismo e no cepticismo? Mais uma vez ganharão os que vivem só para si!
    Será esse, creio eu, um dos ‘mistérios’ deste povo, mas muitos mais haverá! António Telmo também o explica à sua maneira!

  5. Só para si, ou, só por si? Um dos grandes méritos de Agostinho da Silva foi o de apelar – e insistentemente – que fossem os da lusofonia a saberem contar consigo próprios. CLV

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