A Libra é a moeda do Facebook: será que o mundo precisa de dinheiro sem nenhuma fricção na sua circulação. Por Michael Pettis

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

A Libra é a moeda do Facebook: será que o mundo precisa de dinheiro sem nenhuma fricção na sua circulação

michael pettis Por Michael Pettis

Publicado por Carnegie Michael Pettis em 27 de junho de 2019 (ver aqui)

As vantagens e as desvantagens das moedas digitais
A balança de capital determina a evolução da balança corrente
O fluxo de capital sem atritos é uma coisa boa?
Precisamos de pensar cuidadosamente sobre as moedas digitais globais

O Facebook parece pensar que a sua nova moeda digital Libra será usada principalmente para a compra de bens e serviços e para transações de conta corrente. Mas esta moeda provavelmente será usada principalmente para transações de conta de capital. Queremos realmente eliminar os custos friccionais na conta de capital?

As pessoas tipicamente pensam no dinheiro como algo que existe principalmente para facilitar a compra e venda de bens e serviços, ou para as transações na balança corrente. Mas, na verdade, um dos principais usos, se não o principal, é facilitar a dívida, o investimento e outros fluxos de capital, nomeadamente através das fronteiras nacionais. Por outras palavras, dinheiro digital como a Libra não será usado apenas para comprar xícaras de café. A menos que seja estritamente regulado, o seu principal uso provavelmente será para facilitar os fluxos de capital. Isto tem implicações realmente importantes – tanto boas como más – que não foram abordadas no Livro Branco da Libra. A mais importante é que, como a moeda digital está agora estruturada, quanto mais bem-sucedida for a Libra, mais ela poderá facilitar os fluxos de capital desestabilizadores.

Eu nunca fui terrivelmente conhecedor de moedas digitais e criptográficas (embora, como a maioria das pessoas que vivem na China, eu pague por muitas coisas com a minha aplicação WeChat), mas eu bebi um copo em minha casa no início desta semana com o muito inteligente Cristian Gil. Ele é um velho amigo que na viragem da década começou com uma empresa que negociava moeda digital chamada GSR como um hobby, para ver a empresa a transformar-se num negócio sério. Depois de nossa interessante discussão sobre moedas eletrónicas, decidi ler sobre a nova moeda digital do Facebook e tentar descobrir como é que ela poderia funcionar. Aqui está o que diz o Livro Branco:

O mundo precisa verdadeiramente de uma moeda e de uma infra-estrutura digitais fiáveis que, em conjunto, possam cumprir a promessa de “a Internet do dinheiro”. Proteger os seus ativos financeiros no seu dispositivo móvel deve ser simples e intuitivo. Movimentar dinheiro globalmente deve ser tão fácil e económico quanto enviar uma mensagem de texto ou partilhar uma foto, independentemente de onde você more, o que você faz ou quanto você ganha. A inovação em novos produtos e a entrada de novos participantes no ecossistema permitirão a redução das barreiras de acesso e do custo de capital para todos e facilitarão pagamentos sem atritos para mais pessoas.”

Tanto quanto eu entendo, a grande diferença entre Libra e moedas criptográficas como Bitcoin é que a Libra não é diretamente uma moeda fiduciária, cujo valor sobe e desce apenas com base no valor que os investidores escolherem atribuir-lhe. Pelo contrário, a Libra é apoiada, de acordo com um rácio específico, por cinco moedas fiduciárias credíveis (dólares americanos, euros, ienes, libras esterlinas e francos suíços). O utilizador pode pagar ou resgatar a Libra nessas moedas ou em qualquer outra moeda que escolher, seja em pesos mexicanos ou em wons sul-coreanos (desde que essa moeda seja totalmente convertível). Mas o valor de Libra será sempre determinado pelo valor ponderado das cinco moedas acima mencionadas.

O agente emitente da Libra é basicamente um comité monetário, que “emite” ou “queima” Libras (nas suas próprias palavras) em proporção direta ao valor nominal do acervo de moedas detido pelo comité. O valor total da Libra em circulação é sempre exatamente igual ao valor total das moedas que o comité monetário detém, e esse valor é imposto pela capacidade dos detentores de resgatar a sua Libra a qualquer momento que desejarem. Enquanto essas moedas são investidas em notas, CDs e títulos remunerados, o comité retém os juros, e a própria Libra não distribui nenhum cupão de juros (mais sobre isto veja-se mais adiante).

As vantagens e as desvantagens das moedas digitais

Há pelo menos quatro grandes e bastante óbvios benefícios que um sistema como o Libra pode trazer para os seus utilizadores:

  • Pagamentos mais simples: Como com qualquer moeda digital, ela tornará os pagamentos de bens e serviços mais simples, à semelhança de como estão as coisas a funcionar na China com WeChat e Alipay. Ao eliminar os custos de transação e a necessidade de transportar dinheiro em espécie, torna-se muito mais fácil fazer tudo, desde pedir comida, comprar por impulso ou reembolsar a entrega de um pacote ou até pedir um táxi ou pagar um aluguer. Por si só, esse fenómeno não é nada de novo – afinal, mesmo um dinossauro como eu utiliza cada vez mais o seu telefone para pagar as coisas que compro – mas a vantagem potencial que a Libra pode ter sobre muitos outros sistemas semelhantes é a sua dimensão e alcance que pretende atingir. Se a Libra for adotada por uma parcela significativa dos 4 mil milhões de utilizadores ativos mensais do Facebook, eles não terão mais de perguntar aos outros se aceitam o pagamento feito em Libra.
  • Menor volatilidade da moeda: A maioria dos outros sistemas de pagamento digital amplamente utilizados são denominados numa única moeda, geralmente a moeda nacional predominante – o renminbi, no caso da Alipay na China – e, portanto, estão sujeitos à volatilidade de uma moeda única. Embora possa ser comprada ou resgatada em qualquer moeda conversível, o valor da Libra é suportado pela fórmula de cinco moedas mencionada anteriormente, o que significa que os detentores da Libra correm menos risco de inflação ou de liquidez do que os detentores de qualquer uma das moedas individuais. Obviamente, antes da Libra, qualquer pessoa seriamente preocupada com esse risco poder-se-ia proteger comprando um cabaz equivalente de moedas, mas, dados os custos de transação para o fazer, isso só faz sentido para pessoas que possuem grandes quantidades de moeda.
  • Pagamentos transfronteiras sem descontinuidades: Como a Libra pode presumivelmente existir onde quer que o Facebook exista, o sistema de pagamentos Libra facilitará os pagamentos transfronteiriços, um empreendimento incrivelmente complicado e muito caro. Sob o sistema Libra, parece-me que não faz nenhuma diferença se eu quero pagar ao meu vizinho do lado $3 por me dar uma chávena de café ou se eu quero convidar o meu irmão na Espanha a tomar uma chávena de café de $3, algo que eu nunca pensaria em fazer sob o atual sistema de transferências de dinheiro. Levaria várias horas e dez vezes mais dinheiro para completar a transação (supondo que eu possa convencer os dois bancos de que nem eu nem o meu irmão somos traficantes de drogas, evasores fiscais ou terroristas, o que é muito mais difícil do que você poderia pensar).
  • Ganhar utilizadores que se sentem mal servidos pelo sistema atual: Este sistema pode ser especialmente importante para as pessoas que são mal servidas pelo sistema financeiro, embora isso seria verdade apenas se elas são também mal servidas pelas redes sociais, o que não é obviamente o caso. Assim como quase todo mundo na China usa WeChat ou Alipay (até mesmo, segundo ouvi dizer, os pedintes de rua), assim também toda a gente no mundo com acesso ao Facebook pode usar Libra para ter um lugar para guardar o seu dinheiro e fazer transferências de pagamento mesmo se eles não podem pagar contas bancárias e/ou taxas enormes.

Contra os benefícios óbvios, existem pelo menos três custos e riscos igualmente óbvios associados à estrutura do sistema Libra:

  • Um défice de confiança: Um custo é simplesmente a questão da confiança, que está bem coberta num artigo recente do Atlântico que começa assim: “O Facebook, uma das empresas de menos confiança do mundo, quer que confiemos na sua nova moeda eletrónica Libra“. A Libra não será controlada pelo Facebook, mas sim por um conselho de administração convidado pela empresa e composto por algumas ONGs e muitas entidades com fins lucrativos. Contudo, aparentemente não há nenhum mecanismo que imponha responsabilidade ou obrigações sociais a esse conselho, além do que Albert Hirschman poderia ter chamado de saída, ou a capacidade dos utilizadores abandonarem o sistema Libra, uma vez que deixem de confiar nos seus gerentes. Mas, embora essa tática possa funcionar em teoria, uma vez que a Libra é amplamente utilizada e os efeitos de rede entram em cena, pode ser muito caro para os utilizadores saírem, exceto nos casos mais extremos de abuso. Nesse caso, estaremos felizes por ter um grande sistema de pagamentos global controlado por um grupo que não podemos controlar? Será que o conselho da Libra poderia ficar tão isolado e imune a críticas como o COI ou a FIFA?
  • A necessidade de algumas regulamentações sobre transferências: A grande vantagem de Libra parece ser que ela permitirá transferências digitais de baixo custo dentro de um país e, mais importante, entre quaisquer dois países que tenham acesso aberto à internet (portanto, não a China). Mas porque é que essas transferências são tão difíceis e caras, não apenas em termos de taxas de transação, mas também em termos de tempo e fornecimento de informações necessárias? Isso deve-se, em parte, ao facto de um pequeno grupo de instituições financeiras controlarem as transferências transfronteiriças e terem mantido os custos das transferências elevados e também, em parte, devido à enorme quantidade de requisitos regulatórios destinados a controlar o fluxo de dinheiro de drogas, evasão fiscal e terrorismo através das fronteiras.

Todos nós aplaudiríamos o potencial impacto da Libra para minar a primeira, mas para beneficiar da segunda temos de assumir que os reguladores nacionais nas principais economias concordarão em impor requisitos onerosos às transferências internacionais de dinheiro fora do sistema Libra, permitindo simultaneamente que a própria Libra fique isenta. Isso não parece muito provável, mesmo supondo que o Facebook tenha inventado uma moeda digital em vez de simplesmente usar as moedas individuais, principalmente porque isso permitiria que elas escapem legalmente, pelo menos temporariamente, aos tipos de regulamentação que regem as transferências em moedas nacionais. Numa entrevista recente com a Bloomberg, David Marcus, do Facebook, argumenta que isso não será um problema.

  • Uma tentação de jogar com o sistema: O comité monetário que cunhar ou queimar Libra goza dos lucros de transferência. Isso significa que quando um utilizador compra Libra, o dinheiro que ele ou ela entrega ao comité é convertido em notas sujeitas ao pagamento de juros, CDs ou Títulos do Tesouro, mas os utilizadores não recebem juros sobre a Libra nas suas carteiras de títulos. Como diz o seu Livro Branco: “Os juros sobre os ativos de reserva serão usados para cobrir os custos do sistema, garantir as baixas taxas de transação, pagar dividendos aos investidores que forneceram capital para impulsionar o ecossistema e apoiar um maior crescimento e adoção…. Os utilizadores da Libra não recebem um retorno pela reserva criada.

Embora este arranjo possa ser bastante rentável para os “investidores”, em si mesmo não há nada de ultrajante nisso – é assim que todos os comités monetários funcionam – mas este arranjo pode levar a um problema que não ocorre com os comités monetários. Embora as taxas de juro sejam baixas, pode não ser muito importante saber como se escolhe a combinação de moedas (para uma estabilidade máxima, é o que nos dizem). Mas se no futuro mudarmos  para um período de inflação alta e valores instáveis da moeda em algumas ou todas as economias relevantes, os lucros gerados pelo comité podem ser substanciais, dependendo de como as reservas são indexadas e que quantidade de Libra é emitida: as receitas aumentarão em proporção ao volume da emissão e ao nível das taxas de juros, mas os custos dificilmente se deslocarão. (1)

Isso significa que não só será do melhor interesse do comité dificultar aos utilizadores a retirada de dinheiro em excesso de detenção de Libra, mas também será do melhor interesse do comité manter a fórmula de reservas e os tipos de instrumentos mantidos ponderados em relação às moedas e instrumentos de juros mais altos. Este problema não é intransponível (por exemplo, Libra pode incorporar um esquema de pagamento de juros pendentes em Libra que reduz drasticamente a tentação de jogar a distribuição de reservas), mas é inútil fingir que jogar nunca se pode tornar um problema sério para os utilizadores.

A balança de capital determina a evolução da balança corrente

Além destes custos óbvios, no entanto, preocupo-me com o impacto da Libra principalmente enquanto mecanismo que facilita as transações de fluxo de capital, algo que não parece ser um problema para os criadores da moeda. Tanto quanto posso dizer, não há nenhuma referência no livro branco ao papel de Libra no lado do capital da balança de pagamentos global. Aqui está o que diz o livro branco:

A associação prevê um ecossistema vibrante de desenvolvedores criando aplicações e serviços para estimular a utilização global da Libra. A associação define o sucesso como permitindo que qualquer pessoa ou empresa global tenha acesso justo, acessível e imediato ao seu dinheiro. Por exemplo, o sucesso significa que uma pessoa que trabalha no exterior tem uma maneira rápida e simples de enviar dinheiro para a família em casa, e um estudante universitário pode pagar o seu aluguer tão facilmente quanto comprar um café.

A suposição implícita é que o comércio de bens e serviços equilibra os fluxos de capital, o que implica que o principal uso de Libra seria facilitar transações legítimas em conta corrente para uma série de utilizadores : um estudante universitário brasileiro que precisa pagar o seu aluguer em Michigan, por exemplo, um trabalhador venezuelano em Madrid que quer enviar 100 euros à avó em Caracas, ou talvez convidar o meu irmão em Málaga, Espanha, para um cappuccino Starbucks.

Mas não é assim, na verdade, que funciona a balança de pagamentos. Desde há muito tempo que as operações de fluxos de capital não têm pura e simplesmente equilibrado as transações da balança corrente (que consistem principalmente em financiamento do comércio externo). Vivemos num ambiente de excesso de poupanças globais em que o principal motor quotidiano da balança de capital não é a balança corrente, mas sim as dezenas de milhares de decisões independentes para transferir dinheiro de um país para outro. A balança corrente ajusta-se tipicamente aos desequilíbrios da balança de capital.

Não há razão para supor que esta dinâmica não venha a ser exacerbada pela utilização da Libra. Nesse caso, precisamos considerar outras questões e problemas potenciais com um sistema global de pagamentos digitais:

  • Complicando a política monetária do banco central: Em primeiro lugar, na medida em que for bem sucedida na redução dos custos friccionais associados às transações da conta de capital, a Libra reduzirá a capacidade dos bancos centrais para organizarem a política monetária nacional. Qualquer pessoa que entenda a trindade impossível na economia, expressa pela verificação das três condições indicadas no triangulo abaixo, dito triângulo de Mundell,

11 A Libra é a moeda do Facebook

também entende que quanto mais fácil for transferir capital através das fronteiras, e quanto menores forem os custos friccionais, mais difícil será para as autoridades monetárias administrar tanto a estabilidade da moeda quanto a política monetária independente. Na medida em que a Libra for bem-sucedida, por outras palavras, a moeda digital tornará o trabalho dos bancos centrais mais difícil do que nunca. Como um aparte, isso cria um interessante efeito de reação: a Libra pode minar a capacidade dos bancos centrais para gerirem as moedas subjacentes à Libra.

Alguns analistas podem argumentar que isso é realmente uma força, não uma fraqueza, da Libra. Eles podem afirmar que uma moeda global que age como uma espécie de ouro digital imporá a disciplina monetária tão necessária aos bancos centrais nacionais e limitará severamente a sua capacidade de manipularem o valor das suas moedas por razões políticas. Embora eu tenha alguma simpatia por este argumento, o meu principal argumento aqui não é concordar ou discordar, mas simplesmente salientar que esta é uma questão importante que será levada muito a sério pelos bancos centrais, especialmente pelos bancos centrais de países pequenos ou em desenvolvimento com sistemas bancários vulneráveis.

  • Uma moeda digital pró-cíclica: Segundo, embora a Libra possa ser descrita em certo sentido como uma espécie de “ouro digital”, ela é muito diferente do ouro num aspeto importante. Apesar de todos os seus defeitos, o sistema do ouro impôs um tipo brutal de disciplina sobre a capacidade dos bancos centrais de emitir dinheiro, porque, em última análise, não havia maneira de expandir ou contrair o fornecimento subjacente de ouro em conformidade com os seus objetivos políticos ou de mercado. A oferta global de ouro é basicamente estável (sujeita a choques de “descoberta” aleatórios) ou mesmo ligeiramente anticíclica, na medida em que os preços crescentes e em queda incentivam ou desencorajam a exploração do ouro e a sua mineração, o que coloca pressão descendente sobre os preços crescentes e vice-versa. Quando se trata de oferta de dinheiro, criação de crédito e balanços, a contraciclicidade é sempre uma coisa boa, e a prociclicidade é uma coisa terrível.

Mas enquanto o ouro é estável ou ligeiramente contracíclico, Libra é provavelmente pró-cíclica, talvez até altamente pró-cíclica, porque é tão fácil converter as detenções de moedas pequenas e ilíquidas em detenções da moeda Libra que é uma moeda de muito maior importância e muito mais líquida, especialmente quando esta última pode ser utilizada para participar na bolha do dia. Estou certo de que qualquer bom engenheiro do Facebook rejeitará esta afirmação, salientando que a exploração mineira de Libra é perfeitamente acompanhada pela retirada da moeda utilizada para comprar Libra, pelo que não há um impacto líquido na oferta de moeda, mas isso está errado em dois aspetos.

Por um lado, o dinheiro utilizado para comprar Libra não é retirado: é utilizado para apoiar a liquidez das notas, CDs e títulos detidos pelo comité, pelo que tem um impacto monetário expansionista ao aumentar a liquidez e os preços dos ativos que o comité detém. Além disso, como qualquer bom Mundelliano saberia, a conversão de detenções de moedas de pequena importância no sistema e ilíquidas em detenções de uma moeda muito mais importante e muito mais líquida é suscetível de aumentar a massa monetária total da oferta monetária mundial, o que, mais uma vez, tem um impacto monetário expansionista. (Veja, por exemplo, este artigo de 1976, que discute o impacto monetário da criação de unidades monetárias artificiais.)  A Libra nem sequer permite um banco central anticíclico. Teríamos que pensar mais cuidadosamente sobre isso, mas a sua potencial prociclicidade poderia tornar-se um risco substancial para as economias sujeitas à Libra.

  • Menos riscos financeiros compartimentados localmente: Em terceiro lugar, não só a pro-ciclicidade é potencialmente um problema, mas, como qualquer pessoa com um sólido conhecimento em história das finanças pode prever, na medida em que a Libra seja amplamente utilizada, é provável que as modas auto-reforçadoras se desenvolvam inevitavelmente em termos da direção dos fluxos de dinheiro, até mesmo na medida em que se torna possível criar bolhas globais e esquemas Ponzi mais eficientemente do que nunca. Como um bom seguidor de Minsky, não tenho problemas com a ideia de que os sistemas financeiros são inerentemente instáveis, mas, como Minsky, prefiro muitas crises pequenas e localizadas a algumas crises maiores e unificadas numa variedade maior de sistemas e balanços patrimoniais. Na medida em que a Libra se torne uma importante moeda transfronteiriça que liga os setores dos agregados familiares, ela pode dificultar a segregação dos riscos financeiros.

O fluxo de capital sem atritos é uma coisa boa?

Isto leva ao aspeto mais preocupante de uma Libra bem sucedida, que também é, sem surpresa, o seu melhor argumento de venda: ela torna os fluxos internacionais de capital mais eficientes, eliminando quase todos os custos friccionais associados às transferências de capital. A utilização da Libra não é totalmente sem fricção: segundo Josh Costine, da TechCrunch: “As transações não são totalmente livres. Elas incorrem numa pequena fração de uma taxa de centavos para pagar o “gás” que cobre o custo do processamento da transferência de fundos semelhante ao do Ethereum. Essa taxa será insignificante para a maioria dos consumidores, mas quando eles se somarem, as cobranças de gás impedirão que os maus atores criem milhões de transações para alimentar ataques tipo spam e outros para perturbar o serviço”.

Este custo de transação, no entanto, é pequeno, especialmente quando aplicado a grandes transações. Nós tendemos a pensar em fluxos de capital fáceis, baixos custos friccionais e redução de barreiras de capital que é, como sempre, uma coisa boa mas na maioria dos casos, fazemos isso por razões ideológicas. De facto, os fluxos livres de capital podem ser uma coisa boa ou uma coisa má, dependendo dos pressupostos que fazemos sobre as condições económicas subjacentes. Num mundo em que existem necessidades de investimento substanciais não satisfeitas, principalmente devido à escassez de poupanças (um pressuposto fundamental mas obsoleto na maioria dos modelos económicos), aos elevados custos do capital e às barreiras aos fluxos de investimento, é óbvio que a distribuição da poupança no investimento está provavelmente longe de ser ótima. As poupanças fluirão para onde podem fluir, ou para onde as penalizações são mais baixas, e não para onde são mais produtivas.

Se esse ainda fosse o caso, haveria um forte argumento a favor da eliminação das restrições de capital e da redução dos custos de transação. Isso melhoraria automaticamente a capacidade dos investidores de redirecionar a poupança de investimentos menos produtivos para investimentos mais produtivos. Mas, embora este possa ter sido o caso durante grande parte da história, ao longo das últimas décadas houve duas condições que minaram esta hipótese:

  • O aumento dos fluxos da carteira de capital: em primeiro lugar, embora alguma parte do fluxo de capital internacional continue a representar investimento direto em instalações produtivas, a maioria dos fluxos de capital hoje consiste em fluxos de carteira, e estes são muitas vezes impulsionados pela especulação, investimento de moda, procura de rendimento ou segurança e fuga de capitais. Durante as negociações de Bretton-Woods, John Maynard Keynes e Harry Dexter White discordaram de muitas coisas, mas ambos concordaram que, embora os fluxos comerciais devam ser livres, a balança de capital deve ser rigorosamente controlada de modo a evitar que os fluxos e saídas especulativos se sobreponham aos fundamentos económicos, levando as contas comerciais ao desequilíbrio, esmagando os sistemas bancários frágeis ou pequenos e forçando ajustamentos  adversos nos sistemas financeiros domésticos que levam ao aumento da dívida, entre outras coisas. A Libra faz exatamente o contrário.
  • Grandes desequilíbrios de capital devido ao excesso de poupança: segundo, grande parte do mundo – quase todas as economias avançadas e algumas economias em desenvolvimento, incluindo a China, o Vietname, os Tigres Asiáticos e as nações árabes da OPEP – não sofrem de escassez de poupança, mas sim de excesso de poupança e de fraca procura interna. Assim, em vez de ver o fluxo de capital das economias avançadas para as economias em desenvolvimento que precisam de capital, a balança de pagamentos global é dominada pelos fluxos de capital das nações avançadas e em desenvolvimento para as economias avançadas que não precisam de capital, mas que têm sistemas financeiros profundos e flexíveis e excelente governança – os Estados Unidos e o Reino Unido, na nua maioria. Estes enormes desequilíbrios de capital são o que, por sua vez, impulsionam os enormes desequilíbrios comerciais do mundo.

Eu tenho argumentado desde há muito tempo que o mundo precisa repensar seriamente as suas atitudes em relação aos fluxos livres de capital. É bastante evidente – e até mesmo o FMI agora aceita esta posição – que fluxos de capital livres podem ser arriscados para os países em desenvolvimento e para economias mais pequenas cujos sistemas financeiros não são suficientemente profundos, robustos e flexíveis para absorverem os massivos fluxos de entrada e saída de capital que caracterizam a economia global. Mas os fluxos livres de capital também têm prejudicado o conjunto oposto de países: grandes economias avançadas como os Estados Unidos, o Reino Unido e outras economias anglo-saxónicas com sistemas financeiros profundos, robustos e flexíveis. Não vou aqui repetir os meus argumentos sobre porque razão é que isso acontece (já discuti isso muitas vezes antes, nomeadamente aqui e aqui), mas lentamente – embora muito mais rápido do que eu esperava – estamos a ver uma grande mudança na forma como os americanos, inclusive os formuladores de políticas dos EUA, entendem os riscos do estatuto do dólar enquanto principal moeda de reserva e do sistema financeiro dos EUA enquanto porto seguro global para o excesso de poupança.

O mundo, mesmo os Estados Unidos, precisa de menos mobilidade de capital, não de mais mobilidade. Isso significa que os impactos mais importantes da Libra para a economia global – assumindo que ela alcança qualquer coisa perto da importância que o Facebook afirma que pode alcançar – são precisamente os impactos que têm sido menos discutidos pelo Facebook, pela Libra e pelos seus proponentes:

  • Democratizar o investimento especulativo: a utilização generalizada da Libra pode reduzir drasticamente os custos de transação nos fluxos de capital internacionais, incluindo precisamente os tipos mais especulativos, caprichosos e desestabilizadores de fluxos de capital. Já não fará sentido participar na última moda das moedas dos mercados emergentes se você tiver pelo menos US$ 500.000, porque agora você poderá fazê-lo com facilidade e rapidez mesmo que tenha apenas US$ 5.000. Imagine o quanto mais graves e terríveis teriam sido a crise financeira mexicana de 1994, a crise asiática de 1997 ou a crise turca mais recente, se os custos de transação associados à especulação cambial e à fuga de capitais tivessem sido reduzidos a quase zero, mesmo para transações minúsculas.

E o outro lado é que, em tempos instáveis, os Estados Unidos não só serão forçados a absorver os enormes influxos de capital – com os seus correspondentes défices comerciais maciços – de estrangeiros ricos a fugirem para a segurança, mas também de estrangeiros de classe média a fazerem o mesmo. O já alto custo para os Estados Unidos da estabilização da procura global e dos desequilíbrios de poupança aumentará acentuadamente.

  • Nenhum padrão-ouro para o risco de mercado: Libra é às vezes chamada de uma espécie de “ouro digital”, mas não tem nenhuma das medidas disciplinares que o ouro traz. De facto, a Libra tem o potencial de se tornar um tipo de “ouro” altamente pró-cíclico, pelo qual a oferta global de dinheiro se expande automaticamente quando os mercados estão quentes e se contrai automaticamente quando os mercados começam a esfriar, transformando assim até mesmo ciclos suaves em ciclos mais violentos.

Precisamos de pensar cuidadosamente sobre as moedas digitais globais

O objetivo deste ensaio não é condenar a Libra e exigir o seu encerramento. Vivendo na China, conheço tanto a conveniência como os riscos da utilização cada vez mais generalizada das moedas digitais e, dada a sua enorme conveniência, não tenho dúvidas de que o futuro está na maior adoção da Libra ou de qualquer outra forma de moeda digital. Há dois meses atrás, eu assisti a um festival de rock em Suzhou para receber um prêmio da indústria musical, e enquanto eu vagueava pelo festival, sempre que eu procurava o dinheiro no bolso para comprar uma cerveja, os pobres miúdos que atendiam nas barracas reagiam com total confusão – tudo o que sabiam fazer era escanear telefones. Pela forma como as coisas estão a ocorrer, suspeito que em breve muitos jovens em todos os lugares ficarão tão confusos sobre como usar o dinheiro quanto sobre como usar os velhos telefones rotativos.

Mas – e talvez seja isso o que acontece quando o leitor vê engenheiros a trabalharem sobre o problema da criação de moeda – o Facebook parece pensar que a única utilização do dinheiro é comprar chávenas de café, pagar o aluguer do quer que seja, viajar pelo Egito e pagar por bens e serviços comprados. De facto, o sistema de dinheiro é um componente vital e muito dinâmico de um balanço patrimonial nacional e, no mínimo, devemos alinhar a dinâmica monetária e a dinâmica económica de maneira a que não criem o que eu chamei no meu segundo livro de máquina de volatilidade. Pode facilmente acontecer que a principal utilização da Libra não seja para pagar o café, mas para criar novas formas de dívida oculta, enviar dinheiro para o exterior e participar nos modismos de investimento. Temos mecanismos, por mais pobres que sejam, para lidar com a dinâmica da moeda ancorada no ouro, da moeda internacional ancorada à moeda nacional e da moeda nacional fiduciária. Deveríamos pensar em mecanismos equivalentes para o dinheiro digital internacional.

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NOTAS

(1) Para ser técnico: os detentores da Libra transferem efetivamente para o comité monetário em qualquer período, um valor igual à diferença entre o valor nominal e o valor descontado durante esse período à taxa média de juro. Se a taxa média de juro for de 2% ao ano, por exemplo, quem detiver 1.000 Libras transferirá mensalmente para o comité o equivalente em valor de 1,6 Libra. Se a taxa média de juros for de 10% anualizada, no entanto, quem tiver 1.000 Libras transferirá o equivalente em valor de 7,9 Libra por mês para o comité.

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O autor:

MICHAEL PETTIS

Formação: MBA em Finanças, pela Universidade de Columbia e Master em International Affairs, Desenvolvimento Económico, pela Universidade de Columbia.

Michael Pettis é membro senior não residente do Programa Carnegie Ásia sedeado em Pequim. Especialista em economia da China, Pettis é professor de finanças na Escola de Gestão Guanghua da Universidade de Pequim, onde se especializou em mercados financeiros da China.

Entre 2002 e 2004, lecionou na Escola de Economia e Gestão da Universidade de Tsinghua e, entre 1992 e 2001, na Faculdade de Gestão da Universidade de Columbia.

É membro do Conselho Consultivo do Instituto de Estudos Latino Americanos da Universidade de Columbia, bem como do Conselho Consultivo do Reitor da School of Public and International Affairs.

Pettis trabalhou em Wall Street em investimento financeiro, mercados de capitais e financiamento de empresas desde 1987, quando se juntou à equipa de negociação de dívida soberana do Manufacturers Hanover (agora JPMorgan).

De 1996 a 2001, Pettis trabalhou no Bear Stearns, onde era director executivo das equipas dos mercados de capitais latino americanos e de gestão de passivos. Trabalhou também como sócio de uma loja de banca de negócios que se especializou na securitização de ativos latino americanos e no Credit Suisse First Boston, onde chefiou a equipa de negociação em mercados emergentes.

Além dos mercados de investimento e de capitais, Pettis esteve envolvido em serviços de consultadoria soberana, nomeadamente para o governo mexicano na privatização do seu sistema bancário, para a República da Macedónia na reestruturação da sua dívida bancária internacional, e para o ministro das finanças sul-coreano na reestruturação da dívida da banca comercial do país.

Anteriormente foi membro do Conselho de Diretores de ABC-CA Fund Management Company, uma joint venture sino–francesa sedeada em Xangai.

É autor de vários livros, nomeadamente The Great Rebalancing: Trade, Conflict, and the Perilous Road Ahead for the World Economy (Princeton University Press, 2013); The Volatility Machine: Emerging Economics and the Threat of Financial Collapse (Oxford University Press; 1 edition (Maio 17, 2001).

Fonte: http://carnegieendowment.org/experts/444

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