DIÁRIO DO MÊS DA PESTE. O CONTÁGIO DAS HISTÓRIAS – por MARCELLO SACCO

 

 

 

 

Diario del mese della peste – 13 Il contagio delle storie – 13, por Marcelo Sacco

Q Code Magazine, 21 de Março de 2020

Selecção e tradução de Manuel Simões

(por gentileza do Autor e da revista on line italiana “Q Code Magazine”: www.qcodemag.it)

 

21 de Fevereiro. Aproveitando alguns dias de férias (no país que levou o Carnaval para o Brasil, as férias de “Terça-feira gorda” oferecem sempre uma simpática ponte), faço com a minha filha uma pequena viagem a Roma, precisamente nos dias em que, entre a Lombardia e o Véneto, explode a epidemia de covid-19.

25 de Fevereiro. Férias significa libertar-se. As notícias da epidemia tocam-nos só à noite, diante da TV, mas durante o dia passeia-se pela grande beleza. Ruas e museus estão ainda cheios, nas salas de Rafael estão juntos uns dos outros, na Capela Sixtina sentimo-nos já como trapos, como a pele rugosa de S. Bartolomeu no “Juízo Universal”. A minha filha reparte hoje para Lisboa, eu fico ainda por mais dois dias.

27 de Fevereiro. Apenas aterro em Lisboa, cidade onde vivo há 25 anos, não sei se ir para casa ou entregar-me às autoridades. Ainda que Roma seja distante da região atacada pelo vírus como a capital portuguesa o é de Madrid, o ser italiano agora poderia constituir um crime como o ser chinês quando o vírus atacava furioso numa única região da China. É um daqueles casos em que a existência de um confim político estabelece a diferença: lisboetas e madrilenos são duas entidades diferentes, romanos e milaneses (com o beneplácito dos leguistas dos primeiros tempos) são o mesmo corpo infecto.

1 de Março. Portugal, país que não tem ainda nem um único caso positivo, é já apontado como réu de ter feito adoecer uma das mais famosas vítimas do coronavírus, Luis Sepúlveda. O escritor chileno, agora internado num hospital espanhol em condições muito sérias, tinha participado num festival literário em Portugal. Um colega da imprensa estrangeira, que tinha jantado com ele naqueles dias, quando leu a notícia ia caindo da cadeira. Chamou o “Número Verde” e disseram-lhe: «não se preocupe, espere que lhe venha a febre e então falamos». Não satisfeito, telefonou para um amigo médico, na Alemanha, que lhe disse para se auto-isolar imediatamente.

2 de Março. Dos portugueses sempre me agradou, entre outras coisas, o modo de cumprimentar: dois beijinhos às mulheres, um vigoroso aperto de mão aos homens. Em Itália beijamo-nos menos, mas se existe uma relação de longa data beijamo-nos até entre os homens. Quando comecei a ter, também eu, relações de longa data no meu novo país, ingenuamente veio-me o hábito de beijar alguns amigos, mas fui repelido com educada recusa. Hoje há um primeiro caso positivo também aqui, e é um português que voltava de Itália. Jornais e TV sublinham o facto: ‘Da Itália’. Ou será que só a mim me parece sublinhada a que é uma notícia objectiva, como quando se recordava que Sepúlveda, antes de adoecer, tinha estado em Portugal? Porém, assentemos nisto: o vírus vem sempre de fora, é importado às escondidas como o bicho-da-seda noutros tempos. E não sabes se as pessoas, que antes te beijavam e te estendiam a mão, agora já não o fazem porque se aperceberam do risco global ou porque temem o último italiano com o bicho escondido. Esqueçamos isso. Adeus.

4 de Março. Hoje, um respeitável jornal português publica uma entrevista com um categorizado infecciologista, o qual diz com autoridade: «os italianos são muito bons na pintura mas não na organização eficaz de políticas de saúde pública». Para além do fundamento real ou presumido de tal crítica, que está todavia a desencadear um circunscrito problema diplomático, pergunto-me que respeitável jornal teria alguma vez publicado, em plena tragédia num longínquo país da África, um autorizado parecer segundo o qual os africanos são melhores a tocar  tambores. Anos e anos de debates sobre a correcção política relativamente às minorias: diz-se preto ou negro? Afro-descendente ou afro-não sei quê?… E, depois, que vida é esta se nos tiram o prazer do insulto entre maiorias europeias? O facto é que na Europa depressa se constrói uma minoria, basta meter o nariz fora de casa.

6 de Março. Aqui, os casos positivos aumentam e o drama italiano está à vista de todos, porém o governo não tomou ainda qualquer medida. Lembro-me que no aeroporto de Ciampino, no início das nossas breves férias romanas, eu e a minha filha passámos pelo “screening” térmico. No aeroporto de Lisboa, regressando de Itália, controle zero. Há a forte suspeição que pelo menos uma parte dos números actuais depende do rigor de certas análises e de como é declarada uma morte no hospital. Em compensação, em presença da absoluta falta de indicações nacionais, algumas instituições tomam medidas separadas, e até exageradas. Há escolas que fecham por uma constipação, outras consideram uma febre alta como indigestão ou amigdalite. Entretanto, chega-me a notícia que nas universidades, para além de alguma e inevitável manifestação de baixo, estariam a proibir, por decisão do alto, a frequência das aulas aos “erasmus” italianos. Se a notícia fosse confirmada seria gravíssimo: no país que, mesmo quando era fascista, recusou as leis raciais, teríamos uma mistura de profilaxia inspirada não no gráfico do contágio mas na base étnica.

8 de Março. É o aniversário da minha filha e aqui, por agora, come-se ainda nos restaurantes em grupos numerosos. Nem se pode deixar de convidar, eu e ela.

9 de Março. Seguindo a pista dos hipotéticos estudantes italianos excluídos das aulas universitárias, pedi a inscrição num grupo facebook de erasmus em Lisboa. Coloquei há alguns dias uma mensagem mas nenhum directo interessado se apresentou. Responderam, porém, alguns amigos (o que faziam naquele grupo dos “vinte anos”?) e todos me repetiram, com variantes mínimas, a mesma cantiga que os outros me dizem e redizem pelo telefone: «Esquece isso, assim são as coisas. No fundo, também nós italianos nos portámos mal com os chineses e com os emigrados em geral». É a versão laica e de certa esquerda da teoria segundo a qual o vírus nos é mandado pela “Madonna” para punir os nossos pecados. Agora sei que, se num futuro distópico fosse atirado para um campo de concentração para italianos, segundo os melhores dos meus compatriotas (a parte mais sensível e politicamente consciente da Nação), seria o justo bode espiatório pelo encerramento dos portos aos refugiados, decretado muitos anos antes por um par de políticos populares e populistas.

11 de Março. Hoje esperava-se que a ministra da Saúde, em conferência de imprensa, fechasse as portas ao país, como em Itália. Mas os especialistas do Ministério disseram “não”, continuamos em frente. Entretanto os casos positivos aumentam e a psicose difunde-se. Há dias que começou o assalto aos supermercados e o primeiro bem de consumo a desaparecer das prateleiras foi o papel higiénico. Será só um pormenor (que já gerou uma quantidade de anedotas digitais) mas, para mim, isto já se insere nesta cadeia viral de reflexões sobre os beijos entre os homens e sobre o politicamente correcto, em fases alternas. Em suma, anos e anos de debates sobre a liberdade sexual e as novas identidades de género, com a esquerda “movimentista” no governo e todas as recentes extensões dos direitos civis a novos sujeitos, mas depois, ao primeiro sinal de crise verdadeira, a primeira coisa que passa pela cabeça do cidadão médio é proteger (ou limpar) o cu?

12 de Março. O primeiro-ministro, António Costa, acabou de fechar as escolas, convidando os portugueses a ficar em casa. Fê-lo, não obstante as declarações de ontem dos técnicos do Ministério, poucos minutos depois do mesmo anúncio feito por Macron. Perguntarei ao meu amigo Gianluca, lusitanista de raça, onde se encontra exactamente aquela frase de Eça de Queiroz, que diz: «Portugal é um país traduzido do francês». Desta vez tivemos uma tradução simultânea.

14 de Março. Ainda antes do decreto, tinha-se iniciado, para muitos de nós, uma espécie de clausura moderada e voluntária. A polícia não te manda parar na rua mas diversas lojas tomaram a iniciativa de fechar e para nós, que trabalhamos na Escola, o ministro disse, com o dedo apontado: «não pensem que vão de férias!». O Ministro da Educação é o professor dos professores e os exames, já se sabe, nunca acabam. Entretanto, enquanto alguns cafés fecham, outros estão abertos e apostam no encerramento dos concorrentes. Reproduzem, à escala, as diferenças entre Estados. Os ingleses, de facto, já avisaram que adoecerão mas nada mudará. Perfilam-se duas Europas e uma quantidade de possíveis “terceiras vias”: por um lado, os filhos-de-papá italianos, que se unem para defender os seus velhos, ainda que se possa paralisar um continente; por outro lado os malthusianos cínicos, para os quais o vírus fará um pouco de doloroso ordenamento demográfico, sorry.

15 de Março. A propósito de ingleses, agora que deixaram a UE, ajudam-nos a conservar o tratado de Schegen, ameaçado pelo vírus. Alguns amigos meus regressaram de Itália nos últimos dias, passando por Londres e Paris, contrariando o cancelamento dos voos directos. Traziam o dossiê dos auto-certificados para mostrar às autoridades locais mas ninguém pediu nada. Uma reportagem do telejornal mostra um português que voltava de Turim, via Munique. Passou tranquilamente e ele estava indignado. Garantia que os seus colegas romenos foram postos em quarentena, logo que desembarcaram. Ah!, o sentido dos povos do Leste pelas fronteiras…

16 de Março. Os intelectuais que consideram esta pandemia como um truque do Poder para nos controlarem melhor –  são os nossos Don Ferrante, um que atribuía as causas da peste ao influxo dos astros e «meteu-se na cama para morrer – diz Manzoni – como um herói de Metastásio, atribuindo as culpas às estrelas» – deveriam ter compreendido há muito que o Poder (o que quer que isso seja) deseja que vamos beber um copo na rua. E no fim de tudo isto (sabe-se lá quando), uma das coisas que nos escapará da mão será o discurso sobre a saúde do planeta. Neste mês não se eclipsaram só Salvini e os não-vax, mas também Greta. Os claros sinais de desintoxicação do ar na China e das águas de Veneza demonstram que o planeta se salva só se, como em Chernobyl, morrermos nós. Poderíamos aprender com as religiões do jejum ou do pão ázimo, um período de quarentena ritual em cada ano. Uma quaresma verdadeira como esta, com as ruas desertas e espectrais, não com o sushi em lugar da carne. Mas entretanto o espectro do consumismo, embora amolgado, corre pela Europa, em “business” e em “economy”. Um dos amigos recém-chegados de Itália diz ter viajado em aviões semi-vazios, enquanto outros vão e vêm literalmente e obrigatoriamente vazios. Parece que as companhias aéreas, para não perderem o direito aos “slot” nos vários aeroportos, fazem voos de ida-e-volta sem ninguém, como me sucedia quando às vezes pegava no carro e ia olhar o mar ao pôr-do-sol. Belos tempos.

17 de Março. Ontem faleceu o primeiro português, mas talvez já estivesse morto. Dois dias antes, o popularíssimo treinador Jorge Jesus, que agora treina o Flamengo, tinha anunciado do Brasil o falecimento, por covid-19, de um seu caro amigo, um antigo massagista do Estrela da Amadora. A seguir desmentiu. 48 depois, a ministra anunciou a morte do massagista já considerado morto. Uma hora mais tarde resultava positivo al covid-19 também Jorge Jesus.. Não para alimentar teorias da conspiração mas só para matar o tempo durante a quarentena, voltou-me à memória aquela entrevista em que Benazir Bhutto, em 2007, dizia: «a mim quer-me matar o mesmo tipo que já matou Bin Laden». Uma explicação para aquela frase misteriosa consistiu em que Bhutto não dominava perfeitamente o inglês. Também J.Jesus, e os portugueses sabem-no, domina a língua de Camões como Sebastião Lazzaroni dominava a língua de Dante. Licenças poéticas de matar e ressuscitar.

18 de Março. Declararam o estado de emergência, não acontecia desde os tempos da Revolução dos cravos. No seu discurso à Nação o Presidente da República fechou com uma frase que vai repescar a costumada retórica da “nação mais antiga da Europa”, mas com uma estocada inqualificável às outras, presumivelmente mais jovens: «Nascemos antes de muitos outros, existiremos ainda quando eles deixarem de ser o que eram e como eram». No dia em que a Itália registou 475 mortos, o mínimo que se pode dizer é que é um disparate com veios de involuntário sadismo. Ontem, alguns jornais, dando notícia do adiamento para 2021 do Europeu de Futebol, intitularam: «Portugal fica campeão por mais um ano». Lá está, alguém está a considerar seriamente que esta pandemia é um grupo eliminatório de campeonato.

19 de Março. Falou-se também do contágio dos italianos que cantam o hino nacional das janelas e varandas. (…) Tempos duros para os filhos e pais da pátria. E hoje celebra-se até a festa do pai. Passá-la-ei seguramente em família.

20 de Março. Nestas semanas os italianos, com uma boa dose de ironia, foram profetas da desgraça. Agora parece que todos se estão alinhando sobre as nossas medidas de contenção. Aqui, nestes dias, aumentaram os contactos à distância, as mensagens de coragem recíproca, o simples pedido de notícias sobre as condições de saúde dos familiares e amigos. Tinha-o ouvido dizer numa entrevista na TV italiana: chega o momento em que o vírus deixa de ser chinês ou asiático, trazido por este ou aquele, e se torna “alguém de casa”.

(Marcello Sacco é professor de língua italiana no Conservatório de Música de Lisboa)

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Diario del mese della peste – 13

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