A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ? – Texto 39. Emmanuel Macron diz que é tempo de pensar o impensável. Entrevista ao Financial Times

Berlim encontro refazer o muro

Um mês de Março intenso em reuniões, em tragédias, em desacordos afirmados, em acordos adiados, em ameaças feitas e desfeitas ou adiadas, tudo isto se passou na União Europeia que se mostra claramente impotente face à tragédia Covid 19 e à crise financeira que nos bate à porta com uma enorme violência. E as notícias que nos chegam de Abril e Maio não parece que alterem esta perceção de uma União Europeia impotente.

Um relato destes dias que mais parecem dias de loucura é o que aqui vos queremos deixar nesta série de textos intitulada A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ?

23/05/2020

JM

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Seleção e tradução de Francisco Tavares

 

Texto 39. Emmanuel Macron diz que é tempo de pensar o impensável. Entrevista ao Financial Times

O presidente da França acredita que a pandemia do coronavírus transformará o capitalismo – mas os líderes têm de agir com humildade

 

Por Victor Mallet em Paris e Roula Khalaf em Londres

FTimes em 16 de abril de 2020 (ver aqui)

Texto 39. Emmanuel Macron diz que é tempo de pensar o impensável 1

 

“Estamos todos a embarcar no impensável”, diz Emmanuel Macron, inclinado para a sua secretária no Palácio do Eliseu, em Paris, depois de um assistente ter limpo a superfície e os braços da sua cadeira com um toalhete desinfectante.

Até agora, o senhor Macron tinha tido sempre um grande plano para o futuro.

Depois de ter ganho o poder numa surpreendente vitória eleitoral em 2017, o hiperativo Presidente francês anunciou uma montanha de propostas ambiciosas de reforma da UE que deixaram perplexos os seus parceiros europeus mais cautelosos. No ano passado, quando presidiu ao grupo das grandes economias do G7, tentou reconciliar os EUA e o Irão e fazer a paz entre a Rússia e a Ucrânia. O seu governo legislou furiosamente para modernizar a França.

A pandemia do coronavírus, porém, deixou até o Sr. Macron à procura de soluções para uma crise de saúde global que matou quase 140 000 pessoas e perguntando-se como salvar a economia francesa e mundial de uma depressão comparável à do crash de 1929.

“Todos nós enfrentamos a profunda necessidade de inventar algo novo, porque é tudo o que podemos fazer”, diz.

Macron sobre a… China

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Pessoal médico avisa espectadores em Wuhan em Janeiro, quando o coronavírus ainda não tinha sido identificado © Getty

 

“Não sejamos tão ingénuos a ponto de dizer que ela [China] tem sido muito melhor a lidar com isto. Há claramente coisas que aconteceram que desconhecemos.”

 

 

 

 

Ele ainda tem planos, como é óbvio. Ele quer que a UE lance um fundo de investimento de emergência de centenas de milhares de milhões de euros, através do qual os membros relutantes do Norte teriam de apoiar a Itália e a Espanha, onde muitos milhares de pessoas morreram de Covid-19. E quer que as nações mais ricas ajudem África com uma moratória imediata sobre os pagamentos bilaterais e multilaterais da dívida.

Mas talvez pela primeira vez, um senhor Macron incaracteristicamente hesitante parece inseguro sobre se ou quando é que as suas propostas darão frutos. “Não sei se estamos no início ou no meio desta crise – ninguém sabe”, diz ele. “Há muita incerteza e isso deve tornar-nos muito humildes”.

É um sinal de “distanciamento social” e perturbação das viagens em tempos de pandemia extraordinária que o normalmente ocupado Eliseu tem agora apenas um esqueleto de pessoal no local e que o editor do FT assiste à entrevista através do link de vídeo. O normalmente táctil Sr. Macron, – de quem foi dito que “podia seduzir uma cadeira” -, é obrigado a cumprimentar os seus convidados de longe, no salon doré, a sala dourada que dá para os relvados do palácio em direção aos Campos Elísios.

Esta sala foi utilizada pela primeira vez como gabinete do Presidente francês pelo General Charles de Gaulle. Em dois discursos à nação, há um mês, Macron adotou deliberadamente o tom do seu modelo presidencial, declarando guerra total ao vírus, impondo alguns dos controlos mais rigorosos da Europa à liberdade de circulação das pessoas para retardar a propagação da doença e declarando que o seu governo pouparia empregos e empresas “custe o que custar”. Atrás da sua secretária está um exemplo emoldurado de um título anglo-francês de primeira guerra mundial de 1915, no valor de 500 dólares.

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Emmanuel Macron: “Todos nós enfrentamos a profunda necessidade de inventar algo novo, porque é isso que nos resta fazer” © Magali Delporte/FT

No entanto, nas últimas semanas, a retórica belicosa deu lugar a uma visão mais refletida sobre a forma de lidar com a pandemia, acompanhada de admissões de falhas logísticas que deixaram os médicos, enfermeiros e trabalhadores essenciais franceses desesperadamente sem máscaras de proteção e de testes para medir a propagação do vírus.

Ao contrário de outros líderes mundiais, desde Donald Trump, nos EUA, até Xi Jinping, na China, que estão a fazer regressar aos seus países ao ponto onde estavam antes da pandemia, o senhor Macron, de 42 anos, diz ver a crise como um acontecimento existencial para a humanidade que irá mudar a natureza da globalização e a estrutura do capitalismo internacional.

Enquanto líder europeu liberal num mundo de nacionalistas estridentes, o Sr. Macron diz esperar que o trauma da pandemia junte os países em ações multilaterais para ajudar os mais fracos durante a crise. E quer utilizar um cataclismo que levou os governos a dar prioridade às vidas humanas em detrimento do crescimento económico como uma abertura para enfrentar catástrofes ambientais e desigualdades sociais que, segundo ele, já ameaçavam a estabilidade da ordem mundial.

Mas não esconde a sua preocupação de que o contrário possa acontecer, e que os encerramentos de fronteiras, as perturbações económicas e a perda de confiança na democracia reforcem a mão de autoritários e populistas que tentaram explorar a crise, desde a Hungria ao Brasil.

 

Macron sobre… o ambiente

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Enchentes fortes em Moçambique após um ciclone no ano passado © Emidio Josine/AFP/Getty

 

“O risco climático parece muito distante, porque afecta a África e o Pacífico. Mas quando chega a si, é hora de acordar.”

 

 

 

 

“Penso que é um choque antropológico profundo”, diz ele. “Parámos metade do planeta para salvar vidas, não há precedentes para isso na nossa história”.

“Mas isso vai mudar a natureza da globalização, com a qual temos vivido nos últimos 40 anos…. Tivemos a impressão de que já não existiam fronteiras. Era tudo uma questão de circulação e acumulação cada vez mais rápidas”, diz ele. “Houve verdadeiros êxitos. Livrou-se dos totalitários, houve a queda do Muro de Berlim há 30 anos e, com altos e baixos, tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza. Mas, sobretudo nos últimos anos, aumentou as desigualdades nos países desenvolvidos. E era evidente que este tipo de globalização estava a chegar ao fim do seu ciclo, estava a minar a democracia”.

O senhor Macron ficou nervoso quando perguntado se os esforços erráticos para travar a pandemia de Covid-19 não tinham exposto as fraquezas das democracias ocidentais e salientado as vantagens de governos autoritários como a China.

Não há comparação, diz ele, entre países onde a informação flui livremente e onde os cidadãos podem criticar os seus governos e aqueles onde a verdade foi suprimida. “Dadas estas diferenças, as escolhas feitas e o que é hoje a China, que eu respeito, não sejamos tão ingénuos a ponto de dizer que ela tem sido muito melhor a lidar com isto”, diz ele. “Não sabemos. Há claramente coisas que aconteceram e que desconhecemos”.

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Manifestantes contra a reforma das pensões marcham em Paris. Emmanuel Macron passou dois anos a liberalizar o mercado de trabalho, a reduzir a carga fiscal sobre os trabalhadores e os empresários e a tentar simplificar os caros sistemas de pensões franceses © Kiran Ridley/Getty

O Presidente francês insiste em que o abandono das liberdades para combater a doença constituiria uma ameaça para as democracias ocidentais. “Alguns países estão a fazer essa escolha na Europa”, afirma, numa aparente alusão à Hungria e à decisão de Viktor Orban de governar por decreto. “Não podemos aceitar isso. Não podemos abandonar o nosso ADN fundamental com base na existência de uma crise de saúde”.

O senhor Macron está especialmente preocupado com a UE e o euro. Batendo repetidamente com as mãos na secretária para sublinhar os seus pontos, diz que tanto a União como a moeda única serão ameaçadas se os membros mais ricos, como a Alemanha e os Países Baixos, não mostrarem mais solidariedade para com as nações afectadas pela pandemia do sul da Europa.

Essa solidariedade deveria assumir a forma de ajuda financeira financiada por dívidas mutualizadas – anátema para os decisores políticos neerlandeses e alemães, que rejeitam a ideia de os seus contribuintes reembolsarem empréstimos a gregos ou italianos.

O senhor Macron adverte que a incapacidade de apoiar os membros da UE mais duramente atingidos pela pandemia ajudará os populistas a vencer em Itália, Espanha e talvez em França e noutros lugares.

Macron sobre… as ameaças à democracia

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Viktor Orban utilizou a crise para reivindicar poderes de emergência na Hungria © Tamas Kovacs/AP

 

“Não podemos aceitar isso. Não podemos abandonar o nosso ADN fundamental com base na existência de uma crise de saúde.”

 

 

 

 

“É óbvio porque as pessoas vão dizer: ‘Que grande viagem é esta que vocês [a UE] estão a oferecer? Estas pessoas não te protegerão numa crise, nem nas suas consequências, não têm solidariedade para contigo”, diz, parafraseando argumentos populistas que os políticos usarão sobre a UE e os países do Norte da Europa. “Quando os imigrantes chegam ao teu país, dizem-te para os manter. Quando se tem uma epidemia, dizem-nos para lidar com ela. Eles são muito simpáticos. São a favor da Europa quando isso significa exportar para ti os bens que produzem. São a favor da Europa quando isso significa mandar vir a vossa mão-de-obra e produzir as peças de automóvel que já não fabricamos em casa. Mas não são a favor da Europa quando isso significa ‘partilhar o fardo’ “.

Para o senhor Macron, os membros mais ricos da UE têm uma responsabilidade especial na forma como lidam com esta crise. “Estamos num momento de verdade, que consiste em decidir se a União Europeia é um projeto político ou apenas um projeto de mercado. Eu penso que se trata de um projeto político… Precisamos de transferências financeiras e de solidariedade, quanto mais não seja para que a Europa se mantenha”, afirma.

Em todo o caso, argumenta Macron, a atual crise económica desencadeada pelo Covid-19 é tão grave que muitos membros da UE e da zona euro já estão de facto a desrespeitar as injunções previstas nos tratados europeus contra os auxílios estatais às empresas.

A capacidade dos governos de abrir as torneiras orçamentais e monetárias para evitar falências em massa e salvar postos de trabalho será pertinente para o próprio futuro político incerto do Sr. Macron em França.

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Emmanuel Macron sobre a pandemia do coronavírus: “Parámos metade do planeta para salvar vidas, não há precedentes para isso na nossa história”.

Com a economia nacional a diminuir 8% este ano e com milhões de trabalhadores temporariamente despedidos ainda a serem pagos graças a um esquema oficial de “desemprego parcial” de 24 mil milhões de euros, o Governo espera um défice orçamental para 2020 de 9% do produto interno bruto, o mais elevado desde a segunda guerra mundial.

Embora muitas vezes aclamado no estrangeiro pelo seu enérgico internacionalismo liberal, Macron foi recentemente tratado pelos opositores nacionais, da extrema-esquerda à extrema-direita – nomeadamente os manifestantes coletes amarelos anti-establishment – como um presidente dos ricos, um antigo banqueiro de investimentos Rothschild que quer impor o capitalismo de mercado livre aos seus cidadãos relutantes.

Na realidade, o senhor Macron já tinha começado a abrandar o seu esforço de reforma antes da pandemia, face à forte oposição de uma esquerda ressurgente e aos vestígios do movimento coletes amarelos. Após dois anos ocupados a liberalizar o mercado de trabalho, a reduzir a carga fiscal sobre os trabalhadores e os empresários e a tentar simplificar os dispendiosos sistemas de pensões do país, voltou atrás no ano passado na redução da dimensão da função pública e depois, no mês passado, suspendeu totalmente as reformas durante o tempo da crise do coronavírus.

Tentou adotar causas ambientais e suavizar a sua imagem para cortejar a esquerda e os Verdes antes das eleições de 2022, que espera sejam mais um segundo turno eleitoral contra Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Rassemblement National.

O Covid-19 pode oferecer uma oportunidade para defender que está a tentar humanizar o capitalismo. Isso inclui, na sua opinião, pôr fim a um mundo “hiper-financializado”, maiores esforços para salvar o planeta da devastação do aquecimento global e reforçar a “soberania económica” francesa e europeia, investindo em casa em setores industriais como o das baterias para veículos elétricos, e agora em equipamento médico e medicamentos, nos quais a UE se tornou demasiado dependente da China.

Macron sobre… a Europa

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Emmanuel Macron com a chanceler alemã Angela Merkel © Philippe Wojazer/Reuters

 

 

“Estamos num momento de verdade, que consiste em decidir se a União Europeia é um projeto político ou apenas um projeto de mercado.”

 

 

Há uma constatação, diz o Sr. Macron, de que, se as pessoas pudessem fazer o impensável para as suas economias para abrandar uma pandemia, poderiam fazer o mesmo para travar as alterações climáticas catastróficas. As pessoas compreenderam “que ninguém hesita em fazer escolhas muito profundas e brutais quando se trata de salvar vidas”. É o mesmo para o risco climático”, diz. “Grandes pandemias de síndromes de problemas respiratórios como as que estamos a viver agora costumavam parecer muito distantes, porque pararam sempre na Ásia. Bem, o risco climático parece muito distante porque afeta a África e o Pacífico”. Mas quando chega a si, é hora de acordar”.

O Sr. Macron comparou o medo de sufocar que vem com o Covid-19 aos efeitos da poluição atmosférica. “Quando sairmos desta crise, as pessoas deixarão de aceitar respirar ar sujo”, diz. “As pessoas vão dizer … ”Não concordo com as escolhas das sociedades onde vou respirar esse ar, onde o meu bebé vai ter bronquite por causa disso. E lembrem-se que pararam tudo por causa desta coisa do Covid, mas agora querem fazer-me respirar ar poluído!””.

Tal como alguns dos seus antecessores – e ao contrário de alguns dos seus homólogos de outras democracias ocidentais – o Sr. Macron é abertamente intelectual, sempre repleto de ideias e projetos que, por vezes, irritam os seus homólogos europeus mais sóbrios.

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Chega a Dresden, Alemanha, um doente com coronavírus de França. O Presidente francês diz que a UE será ameaçada se os membros mais ricos do Norte não mostrarem mais solidariedade para com as nações afectadas pela pandemia do Sul da Europa © Robert Michael/dpa

Entre os livros empilhados ao acaso – ou talvez com arte – atrás da sua secretária estão obras do falecido presidente socialista François Mitterrand e do Papa Francisco, as cartas trocadas por Flaubert e Turgenev e alguns exemplares da autobiografia de Macron, Revolução: Reconciliar a França, preparada para a campanha eleitoral de 2017.

No entanto, quando lhe perguntam o que aprendeu sobre liderança, admite francamente que é demasiado cedo para dizer onde é que esta crise global vai levar. Macron diz ter convicções profundas sobre o seu país, sobre a Europa e o mundo, sobre a liberdade e a democracia, mas, no final, as qualidades que são necessárias face à marcha implacável dos acontecimentos são a humildade e a determinação.

“Nunca imaginei nada porque sempre me coloquei nas mãos do destino”, diz ele. “Tens de estar disponível para o teu destino… por isso é aí que me encontro, pronto para lutar e promover aquilo em que acredito, mantendo-me disponível para tentar compreender o que parecia impensável”.

 

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