A Universidade em Declínio a Alta Frequência – Miséria das Universidades e Universidades de miséria (2ª parte). Por Olivier Le Cour Grandmaison

Espuma dos dias 2 UNIVERSIDADE 2

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Miséria das Universidades e Universidades de miséria (2ª parte)

Olivier Le Cour Grandmaison Por Olivier Le Cour Grandmaison

Publicado por Mediapart em 20/05/2020 (ver aqui)

 

Se Macron persistir em negar as reivindicações de professores, investigadores e estudantes, que repetidamente fizeram numerosos apelos, apelos em vários fóruns e ações, a ação coletiva tornar-se-á uma necessidade urgente e muitos dos envolvidos, como o pessoal hospitalar, ontem e hoje, considerar-se-ão em situação de legítima defesa.

 

23 de janeiro de 2004. O jornal Le Monde intitulava: “La grande misère des universités françaises” (A grande miséria das universidades francesas) num contexto de mobilização dos estudantes, do pessoal administrativo e docente. Além disso, muitos conselhos de administração ameaçaram não votar os seus orçamentos para protestar contra a insuficiência dos recursos atribuídos pelo Estado. Já sabíamos que as universidades estavam condenadas a “terem de poupar a todo o custo mesmo que insignificâncias”, reduzindo os custos de aquecimento, reduzindo as deslocações profissionais dos professores-investigadores e, devido à falta de recrutamento suficiente, aumentando o número de horas extraordinárias, correndo o risco de colocar ainda mais pressão sobre as suas finanças. Dinâmica perversa da política de austeridade imposta às instituições de ensino superior. Em lugar de uma política onde todos ficam a ganhar como pregavam os defensores da suposta modernização, fez-se uma política onde todos ficam a perder e a empobrecer, conscientemente organizado pela maioria.

Na comitiva do esquecido Luc Ferry, então Ministro da Juventude, Educação Nacional e Investigação, apenas os especialistas se lembram que ele exerceu tais responsabilidades, e foi reconhecido que “a França favorecia as escolas primárias e secundárias. As faculdades e o ensino superior foram subfinanciados”.

É isso mesmo. Com efeito, neste belo país cujos sucessivos dirigentes, tanto da direita como da esquerda, têm o hábito de enfiar pérolas retóricas sobre a importância das universidades e da investigação, elogiando a antiguidade, a excelência e o prestígio das “nossas instituições”, como o testemunha a gloriosa Sorbonne, a despesa por estudante foi 11% inferior à média dos países da OCDE. Miséria e desigualdades notáveis também desde que o Estado concedeu 6840 euros por aluno matriculado na universidade e 11450 euros aos alunos das classes preparatórias (após a conclusão do bacharelado, classes de 1 a 3 anos para admissão nas Grandes Écoles [1]). “Elitismo republicano”? Este último adjetivo, utilizado por aqueles que justificam estas orientações afirmando ser fiéis aos princípios da República, é aqui perfeitamente supérfluo. Depois de muitas outras possibilidades, estes números revelam uma política que não foi assumida publicamente, mas que é muito clara: dar mais àqueles que já são os melhores dotados social, cultural e academicamente.

15 de Outubro de 2015. A meio do mandato de cinco anos de François Hollande, este líder extraordinário que conseguiu dois feitos que permanecerão nos anais da Quinta República e nos da formação socialista que o apoiou: ser forçado a renunciar ao direito de se candidatar à reeleição nas eleições presidenciais e transformar um partido de governo num grupo marginal que tenta agora sobreviver. Notável. No Ministério da Educação Nacional, do Ensino Superior e da Investigação, está a dócil Najat Vallaud-Belkacem, que serviu todos os governos desse glorioso período, dando assim o seu reiterado contributo para o desastre que conhecemos. Foi então acompanhada por um Secretário de Estado transparente e dispensável, responsável pelo mundo universitário, Thierry Mandon. Por caridade, não mencionaremos aqui as suas façanhas posteriores como editor de L’Ebdo; essa formidável aventura intelectual e editorial que devia revolucionar a imprensa. A longa e triunfante marcha prometida transformou-se numa lamentável peregrinação que começou em janeiro de 2018 e terminou três meses mais tarde. Que talento!

Assim, em 15 de março de 2015, o Le Monde publicou um artigo: “Universidades nas ruas para gritar contra a miséria”. Este título e as informações fornecidas provam o seguinte: a política implementada inscreve-se na continuidade da que foi aplicada pela direita antes. Isto é evidenciado pelos seguintes factos: 44% das instituições universitárias estão obsoletas, 13% estão muito degradadas, de acordo com um relatório elaborado pelo Tribunal de Contas, e a despesa pública e privada com o ensino superior – 1,5% do PIB – continua a ser inferior à média dos países da OCDE e mesmo inferior à média dos países do Norte da Europa – 2%. Quanto às desigualdades acima referidas, elas subsistem. Em 2015, o custo de um aluno de uma classe preparatória às grandes escolas (CPGE) ascende a 14850 euros, ou seja, mais 40% do que o seu “homólogo” nos primeiros ciclos do ensino universitário (10850 euros). Os melhores dotados são os estudantes das escolas de engenharia (16.000 euros). Entre 2008 e 2018, o aumento dos orçamentos universitários foi inferior a 10%, o recrutamento de professores-investigadores diminuiu 40% e, ao mesmo tempo, o número de estudantes aumentou de 20% a 26%.

“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”? “Destino, Desigualdade e Luta pelos Lugares” é de facto o lema daqueles que, durante anos, teimaram em tratar o ensino superior como um cão moribundo em nome daquilo a que chamam “orçamentação séria” e “adaptação indispensável à concorrência internacional”. Crise das universidades? Certamente, desde que acrescentemos que esta é estrutural e que é a consequência direta das políticas públicas implementadas pelas maiorias tanto de direita como de esquerda que se sucederam no poder. Muitos dos criadores e executores destas políticas riem-se das análises de Pierre Bourdieu – ver Les Héritiers (com J.-C. Passeron, 1964) e La Reproduction (com J.-C. Passeron, 1970) – enquanto que as validam no essencial favorecendo os piores mecanismos de seleção social e de segregação que afetam os mais desfavorecidos. Quanto aos mais dotados, beneficiam de condições privilegiadas – cf. as classes preparatórias de acesso às Grandes Écoles, entre outras – e/ou conseguem contrariar as numerosas armadilhas da seleção universitária, tendo acesso à formação e aos diplomas valorizados e valorizando as suas próprias escolhas. São precisamente estas que lhes permitirão maximizar as suas hipóteses de encontrarem um emprego bem remunerado. Organização, permanência e triunfo do darwinismo social caro a Antoine Petit (26 de novembro de 2019) presidente diretor-geral do CNRS,

Maio de 2020. Um espectro muito perigoso continua a assombrar as universidades: o da ministra Frédérique Vidal, que é para o seu campo de “competência” o que Franck Riester é para a cultura: uma catástrofe. Não devido às suas iniciativas, é difícil encontrar iniciativas significativas, mas devido à sua absoluta submissão àquele que pensava ser Júpiter, ou seja, Macron que se autointitulou de Jupiter Há pouco tempo atrás, entorpecido pelos elementos linguísticos sem dúvida fornecidos pelo seu serviço de comunicação, esta ministra saudou “a mobilização excepcional de toda a comunidade do ensino superior (…) que permitiu a muitos estudantes beneficiar, para além das medidas tomadas, de numerosas iniciativas de solidariedade em todo o território“. Para além destas fórmulas vazias, que são perfeitamente permutáveis e não se comprometem com nada, existem realidades sociais ocultas que falam muito sobre a situação de um grande número de estudantes. 10% deles perderam os seus empregos em consequência do confinamento e 20% encontram-se agora numa situação muito precária [2].

Quando sabemos que mais de metade das pessoas inscritas na universidade têm um emprego remunerado durante o ano e que um quarto delas trabalha durante o Verão, não é necessária muita experiência administrativa para estimar que as consequências financeiras do confinamento e da próxima crise económica serão catastróficas para as pessoas em causa. Ainda mais para os estrangeiros. Com efeito, para beneficiarem da ajuda, devem fornecer ao Centro Regional de Obras Universitárias e Escolares [Crous] 15 documentos comprovativos, incluindo os pareceres fiscais dos seus pais que permaneceram no país. Documentos que ou não existem ou são muito difíceis de obter. Como consequência prática destas exigências exorbitantes, para escapar à fome, estes estudantes recorrem a pacotes da Secours populaire e da Restos du Coeur (Le Monde, 15 de abril de 2020). Solidariedade, como afirma Frédérique Vidal? Incompetência escandalosa e reiterada das autoridades públicas que se remetem às iniciativas das associações para colmatar a crónica falta de meios atribuídos à vida estudantil.

Em vez de fazer visitas de fachada, cuidadosamente encenadas para alimentar a propaganda governamental, a ministra deveria, por exemplo, visitar os alojamentos universitários de Villeneuve-d’Ascq, onde, por 169 euros por mês, os estudantes ficam alojados em quartos de 9 m2, incluindo baratas e percevejos. Quanto aos chuveiros e casas de banho comuns, também eles estão num estado deplorável; pouca ou nenhuma água quente (Le Monde, 21 de abril de 2020). Recordemos-lhe também que, em 2013, segundo um relatório do Tribunal de Contas, apenas 7% dos estudantes viviam em residências geridas pelo Crous. Isto compara-se com a taxa de 35% em 1960! Uma regressão formidável que obriga estas novas gerações a permanecerem com os pais ou a alugarem o seu alojamento no mercado a preços exorbitantes para eles. Mais especificamente, e como está bem documentado [3], a ministra poderia também descobrir o conforto de algumas bibliotecas universitárias forçadas a reduzir as suas horas de abertura no Inverno devido à falta de aquecimento suficiente, as instalações sanitárias nauseabundas e de facto impróprias para serem utilizadas em muitas instituições, salas de aula e salas de conferência parcialmente inundadas em caso de chuvas fortes, instalações elétricas por vezes tão deficientes que não cumprem quaisquer normas de segurança e instalações frequentemente tão sobrecarregadas como degradadas. Anedotas ? Verdades estabelecidas. Prova disso é o supracitado relatório do Tribunal de Contas sobre a má situação e qualidade dos edifícios do ensino superior.

Não há muito tempo, a mesma ministra anunciava orgulhosamente que as universidades iriam oferecer “aulas magistrais (…) à distância” para o início do ano letivo de 2020-2021, a fim de ter em conta os imperativos da saúde. E prosseguiu contando aos jornalistas a substância da sua extraordinária descoberta, que sem dúvida revolucionará as ciências da educação: “não aprendemos apenas com livros ou computadores, é preciso interagir com os professores”. É de facto uma experiência muito comovente. De momento, ninguém sabe que recursos materiais, financeiros e humanos permitirão às universidades acolher os novos estudantes. Se governar significa planear com antecedência, a incapacidade de Vidal para planear com antecedência é espantosa, fazendo lembrar a do seu chefe, Macron, dias antes da decisão do confinamento ter sido tomada à pressa. Na altura em que este artigo foi escrito, “não existem quaisquer instruções claras do ministério“, nota Aurore Chaigneau, reitora da Faculdade de Direito de Nanterre, onde se esperam mais de 1000 estudantes.

Oferecer aos novos bacharéis, que foram obrigados a interromper os seus estudos durante várias semanas devido à pandemia, a oportunidade de frequentar cursos universitários por videoconferência significa sacrificar os mais frágeis no altar da impreparação e da austeridade. Significa também criar as condições para o insucesso dos já sobrecarregados cursos de licenciatura em Direito, Ciências Sociais e Humanidades, e prosseguir incansavelmente o empreendimento de empobrecer e destruir as universidades, numa altura em que faltam quase 60 000 postos de professores-investigadores e em que o número de vagas – 20% – está a crescer de ano para ano. Aos ideólogos que afirmam que aqueles que exercem a sua atividade profissional na universidade gozam de privilégios indevidos, especifiquemos que, no dia 1 de janeiro de 2020, a remuneração dos trabalhos dirigidos era de 9,86 euros, ou seja menos do que o salário mínimo horário bruto – 10,15 euros -, enquanto as pessoas que os fornecem são, na sua maioria, estudantes em fase de conclusão de tese de doutoramento, pessoas já doutorados ou pessoal altamente qualificado. Além disso, esta precariedade afeta também o pessoal administrativo essencial ao bom funcionamento dos estabelecimentos. Finalmente, de acordo com as previsões governamentais, o número de inscrições deverá aumentar em 20.000 em 2020 e continuar a crescer nos próximos anos.

Durante meses, o Chefe de Estado e a Ministra Frédérique Vidal têm sido regularmente informados e alertados para a situação cada vez mais catastrófica do ensino superior e da investigação – em 10 anos, o CNRS [Centro Nacional de Investigação Científica] perdeu 50% do seu pessoal. Com efeito, professores, investigadores e estudantes multiplicaram os apelos, fóruns e ações diversas. Recentemente, mais uma vez [4]. Em vão, porque Júpiter só é sensível ao equilíbrio de poder e ainda mais ao medo de rejeição que a sua pessoa e a sua política provocam. Que saiba que, se persistir obstinadamente nesta forma, não acedendo rapidamente às exigências de uns e de outros, a ação coletiva tornar-se-á uma necessidade imperiosa e muitas das pessoas envolvidas, como o pessoal dos hospitais de ontem e de hoje, considerar-se-ão numa situação de legítima defesa. Não para preservar benefícios, mas para salvar as universidades e as instituições de investigação do desastre e para proporcionar condições ótimas de educação e formação ao maior número de pessoas.

 

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Notas

[1]. N.T. As classes préparatoires aux grandes écoles (CPGE) (Aulas Preparatórias para o Ensino Superior), vulgarmente designadas por classes prépas ou prépas, fazem parte do sistema francês de ensino pós-secundário. Consistem em dois anos de estudo (extensível a três ou excecionalmente quatro anos) que funcionam como um curso preparatório (ou escola de ensino superior) com o objetivo principal de formar os alunos para a matrícula numa das Grandes Écoles. A carga de trabalho é uma das mais elevadas da Europa (29 a 45 horas de contacto por semana, com um máximo de 10 horas de tutorias guiadas e sessões de exame oral). Ao contrário da maioria dos estudantes em França que se inscrevem em universidades públicas directamente após a obtenção do diploma do ensino secundário, os alunos do CPGE têm de fazer competitivos exames nacionais para serem autorizados a inscrever-se numa das Grandes Écoles. Estas Grandes Écoles são estabelecimentos de ensino superior (escolas de pós-graduação) que ministram mestrados e/ou doutoramentos. Incluem escolas de ciências e engenharia, escolas de gestão, as quatro faculdades de veterinária e as quatro écoles normales supérieures, mas não incluem escolas de medicina ou direito, nem escolas de arquitectura. Os seus competitivos exames de admissão fazem com que ter frequentado uma das grandes écoles seja frequentemente considerado como um símbolo de estatuto, uma vez que, tradicionalmente, produziram a maioria dos cientistas, executivos e intelectuais franceses. (vd. Wikipedia, consultado em 01/06/2020).

[2]. Acrescentemos estes números: 20% dos estudantes e jovens entre os 18 e os 24 anos vivem abaixo do limiar de pobreza, ou seja, mais 3,6% do que em 2002, 30.000 deles são assim obrigados a recorrer aos Restos du Coeur  por falta de meios financeiros suficientes e 13,5% dos estudantes desistem dos cuidados médicos para não sobrecarregar ainda mais o seu orçamento.

[3]. Veja-se Une page Tumblr pointe du doigt l’insalubrité des universités

[4]. Veja-se o texto seguinte publicado a 16 de maio de 2020 no jornal  Le Monde e assinado por mais de 1100 pessoas: Pour la rentrée 2020, les universités et les laboratoires de …

 

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O autor: Olivier Le Cour Grandmaison [1960 -] é um político e autor francês cujo trabalho se centra principalmente no colonialismo. É mais conhecido pelo seu livro “Coloniser, Exterminer – Sur la guerre et l’Etat colonial”. Le Cour Grandmaison é professor de ciências políticas na Universidade Évry-Val d’Essonne e professor no Collège International de Philosophie. É presidente da Associação Contra o Esquecimento, de 17 de Outubro de 1961, que defende o reconhecimento oficial dos crimes cometidos pela Quinta República durante o massacre de Paris em 1961.

 

 

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