Episódios da crise do Covid em Espanha: da ignorância da uma certa grande imprensa à incompetência da gestão autonómica de Madrid – alguns textos de análise. 8. Quando a pandemia e a guerra civil terminarem. Por Juan Antonio Molina

Seleção e tradução de Francisco Tavares

 

8. Quando a pandemia e a guerra civil terminarem

 Por Juan Antonio Molina

Publicado por  em 05/10/2020 (ver aqui)

 

Javier Otega Smith, dirigente de Vox.

 

Desde o início, o regime de Franco, embora não inspirado pela metafísica futurista, mas pelo autoritarismo casposo e carpetovetónico de Fernando VII, operou sob mecanismos de funcionamento fascista, manipulação e exclusão da realidade. Esta abordagem elevou o genocídio a uma categoria ideológica onde o adversário político não era reconhecido como pertencente à nação, mas pelo contrário era o antipatriota, o destruidor de Espanha, e por isso tinha de ser exterminado para a sobrevivência do país, do país irascível e dos sepulcros branqueados dos fascistas. Os slogans neste sentido eram claros, o mestre fantoche da rebelião, General Emilio Mola, ordenou que, uma vez declarada a revolta militar, havia que “eliminar sem escrúpulos ou hesitações todos aqueles que não pensam como nós”. E se alguém duvidava de se juntar ao golpe ou não, a instrução do líder golpista Mola foi também contundente: “Aquele que não está connosco está contra nós e será tratado como um inimigo”.

Muito pelo contrário, Manuel Azaña apelou: “não é aceitável ter uma política cujo objetivo seja o extermínio do adversário… por muito que os espanhóis se matem uns aos outros, ainda haveria muitos que teriam de se resignar, se é essa a palavra, para continuarem a viver juntos se a nação quiser continuar a viver”. Mas para os fascistas, viver juntos era o que eles combatiam, só eles eram espanhóis e só eles podiam pastorear a nação. Quando Franco morreu na cama, as convicções e os devotos do Estado franquista estavam intactos e com eles foi construído o regime de 78, que não surgiu de um processo de reconciliação mas sim de uma prévia auto-purificação ideológica e da submissão das chamadas forças de esquerda. O Partido Popular, Vox e C’s, como devotos e destinatários do franquismo sem Franco, votaram em Madrid, distorcendo a norma e a história, para retirar a rua que recorda os socialistas históricos Francisco Largo Caballero (Presidente da II República durante a Guerra Civil) em Ciudad Lineal e Indalecio Prieto (Ministro da II República) em Vicálvaro.

A esta retirada juntar-se-á também uma placa colocada em sua honra no distrito de Chamberí e duas estátuas erigidas em Nuevos Ministerios. A proposta de Vox foi aprovada na Sessão Plenária Municipal pelas duas forças do Governo de Madrid, Cs e PP. O conselheiro Javier Otega Smith [Vox] defendeu a proposta contra alguns socialistas que considera “personagens sinistras”, “criminosos” e “antidemocráticos”. Os argumentos insultuosos e falsos de Ortega, tão em sintonia com o franquismo mais poderoso, demonstram mais uma vez a necessidade urgente de uma verdadeira reconversão democrática do regime da Transição.

Será inútil recordar à direita carpetovetónica que sofremos com a realidade histórica. Basta conhecer, apesar das diferenças ideológicas, a defesa que em momentos comprometedores e dramáticos para José António Primo de Rivera, criador da Falange, fez o socialista Indalecio Prieto. Como o mesmo ministro republicano explica: “Só tinha cruzado a palavra com José António Primo de Rivera numa ocasião – seria na bronca anterior -. Foi no Congresso, quando me levantei para contestar o pedido para o processar. Tinha acabado de defender o meu colega, o deputado Juan Lozano, contra idêntica acusação de ter uma arma. Pareceu-me que o padrão deveria ser o mesmo para amigos e adversários, e defendi o fundador da Falange com igual veemência. Este atravessou as bancadas dos deputados da CEDA [Confederação Espanhola das Direitas Autónomas, de Gil Robles], dirigindo duras frases aos que votaram contra, e quando chegou ao meu lugar, estendeu-me a mão e agradeceu-me com grande emoção“. Mais tarde, o líder socialista insistiu: “Primo de Rivera, não satisfeito com as palavras amáveis que tinha usado no seu discurso – cujo texto estenográfico aparece nas suas obras completas -, após o debate e a votação, que foi tão adversa para ele como para Juan Lozano, veio ao meu lugar, onde me apertou a mão, reiterou a sua gratidão e pronunciou em voz alta vituperações duras aos deputados de direita que, contra ele, tinham unido os seus votos com os do Lerrouxismo” [N.T. referência a Lerroux, várias vezes presidente de governo no período da Segunda República].

É verdade que, após a prisão de Primo de Rivera, a simpatia de Prieto por ele se intensificou. O Presidente Manuel Azaña estava interessado em salvar a vida de Primo de Rivera e o Ministro da Defesa, Indalecio Prieto, estava apostado em mantê-lo vivo e depois trocá-lo por um prisioneiro republicano. O próprio Indalecio Prieto deu um parecer premonitório desta forma, no seu “Convulsiones de España”, por ocasião da transferência dos restos mortais do mosteiro do Escorial para o Valle de los Caídos, em 30 de Março de 1959: “Era um homem de coração, ao contrário do homem que será seu companheiro no tumulo de Cuelgamuros. José António foi condenado a uma companhia desonrosa, que certamente não merece, no Valle de los Caídos. Ele é desonrado por estar associado às ferocidades e corrupções de outros”.

A direita continua a manter uns perversos parâmetros ideológicos sobre a sua conceção de Espanha, de cidadania estratificada em bons e maus espanhóis e a criminalização daqueles que não partilham a sua mercadoria doutrinal. Isto implica transformar a vida pública num pântano de ódio, mentiras e formas políticas pré-democráticas. O conservadorismo espanhol, nos seus vários ramos, respira a visceralidade dos vencedores da guerra civil à qual, aparentemente, não era suficiente que o Exército Vermelho fosse mantido cativo e desarmado. O próprio nada exemplar rei emérito, referindo-se a Franco, tinha dito: “O General Franco é verdadeiramente uma figura histórica e politicamente decisiva para a Espanha. Ele soube como nos tirar daqui e resolver a nossa crise de 1936“.

Tudo isto se baseia na banalidade que, como argamassa da tendência oligárquica da vida pública, produz uma abolição radical do pensamento como motor da ação política que deixou de ser, como Azaña descreveu, um movimento defensivo da inteligência, opondo-se ao domínio do erro. Esta banalização da política, o derrube da criação orientada para o bem público, as tendências oligárquicas como parte de um sistema fechado e o seu consequente descrédito aos olhos dos cidadãos, constituem um profundo vazio na racionalidade do diagnóstico e solução dos problemas colocados pela crise institucional e política que o país está a sofrer. O cansaço territorial do Estado das autonomias é um reflexo antagónico dos desvios de umas instituições nascidas de um regime de poder pré-democrático que sofreu um processo de adaptação, mas não um processo de mudança. Os grandes projetos nacionais não são os frutos do passado, do que foi, mas do futuro, do que se aspira a ser. Não é uma intuição de algo real mas sim um ideal, um esquema de algo realizável, um projeto que incita vontades, um amanhã imaginário capaz de disciplinar o presente. E a Transição não tem sido o caso.

_________________

O autor: Juan Antonio Molina [1956-] é jornalista e escritor, colunista de vários jornais nacionais e colaborador de revistas literárias na América e Espanha. É o autor dos livros de poemas Penélope y las horas sin retorno, Todos los días sin tu nombre, Vivir en el Leteo, e os livros de prosa, entre outros, El origen mitológico de Andalucía, Breve historia de la gastronomía andaluza, Dios mío, ¿qué es España?, Socialismo en tiempos difíciles, La cocina sevillana. Recebeu o prémio internacional de poesia “Desiderio Macías Silva” (México), o prémio internacional de poesia “Videncia” (Cuba), o prémio de poesia “Dunas y sal” (Espanha) e o prémio de poesia “Noches del Baratillo” (Espanha).

 

 

 

 

 

 

 

 

Leave a Reply