UMA REBELDE DO ESTADO NOVO – A homenagem de Inês Patrício à sua mãe, que foi casada com Rui Patrício, o último ministro dos Negócios Estrangeiros nomeado por Marcello Caetano

 

Obrigado ao Expresso

” Para variar, este é o dia de falar da minha mãe. O tempo dela era o Estado Novo, a ditadura dos homens de suspensórios. Quis trabalhar e não autorizaram. Quis divorciar e não podia, pela lei. Tomou a pílula e disseram que não podia comungar. Esteve a lixar-se para isso. Perguntou porque é que as mulheres de ministros ( ela era) não ganhavam nada mas tinham de comprar vestidos, ir a chazinhos de embaixatrizes, a jantares e viagens de trabalho. Não responderam. Porque sim. Ela foi a Conselho de ministros e de lá de cima ( acho que era um lugar onde os homens ficavam em baixo) gritou: ninguém me contratou mas eu demito-me! ( hoje já há ajuda de custo para mulheres dos caras publicos). Ela ligava para os caras que mandavam e reclamava da falta de direitos das empregadas. Chateava. Ligava para o Veiga Simão que era da educação e reclamava dos lavores para as mulheres. Queria música e carpintaria. Acho que conseguiu música. Tirou-me do colégio de freiras e pôs-nos a mim e minha irmã no liceu. Não acordava de manhã para nos dar bom dia nem nada. Eu reclamei. Disse: tira o curso e trabalha para não ficares sem sono de noite, como eu. Quando prenderam uma moça chamada Dalia passou-se. Foi o fim dos dias lá em casa. Passava o almoço e jantar sem comer, de braços e pernas abertos a simular um tipo de tortura. Emagreceu e ficou doente. Teve sífilis. Pediu ao médico atestado para se divorciar. O médico teve medo e não deu. O medo dos homens era de outros homens. Das mulheres não teriam medo! Foi a Caxias com o senhor Matos chauffeur( um homem bom que chorava) e uma cadeira. Sentou. Esperou. Disse que tinha as mesmas ideias dos presos. Mandou um livro á moça em que a dedicatória era Aqui em Portugal nem as moscas mudam!. O Silva pais, chefe da polícia, ligou a meu pai. A mulher do meu pai incomodava. Não a podiam prender. Deem-lhe uns safanões, disse alguém. O primeiro ministro ligou e disse Tortura não é assunto para mulheres. São o sexo frágil. E ela: pensam nisso quando se deitam em cima de nós com o vosso peso? O homem era púdico, conservador e cristão. Não gostou da rudeza. Não gostavam dela. Nem ele nem a pide.

Como não a podiam prender tacavam-lhe curas de sono. Fez várias. Numa delas, antes de a levarem, disse-me Tira o curso e trabalha! Não dependas de homem nem de família. Assim fiz!

Santo conselho!

Quando foi a revolução ficou contente. Mas foi solidária. Não se bate em cachorro morto! Nem saiu de casa como lhe pediram. Saímos todos, menos ela. Riu-se de nós porque a nossa fuga foi dois prédios da infante santo. Passamos do número 61 para o 57. Para casa de primos. A família morava toda na mesma rua Rsss.

Ela gostava do Otelo e do Vasco Lourenço. Dizia que o Galvão de Melo e o Cunhal eram nossos primos. Quando as brigadas entraram lá em casa a ver se estávamos recebeu-os com cafezinho e batepapo. Foi ao nosso quarto onde dormíamos e disse Não sejam caguinchas. Estes senhores estão a trabalhar.

Quando entrei para o partido comunista, no Brasil, fez -me um bolo para levar aos camaradas. Quando fui chamada pelo diretor para explicar as reuniões “clandestinas” debaixo de uma árvore na praia vermelha foi comigo e gritou Se disseres uma palavra que for, deserdo-te! Depois pensou e disse: deserdar não posso mais pois lá em Portugal já houve reforma agrária mas dou-te um par de estalos e deixas de ser minha filha.

Cá estou até hoje, filiada à minha mãe!

( agora vou publicar e emendar, mãe mãe! Como sabes sofro de ansiedade )”

2 Comments

  1. Que linda mensagem Inês e que bela homenagem a tua Mãe. Ainda por cima tens um bonito nome, que também é o de uma das minhas netas e que é, como tu, uma maravilhosa “rebelde”!

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