Nota de editor:
Publicamos hoje o segundo de dois textos sobre o que espera a França caso Emmanuel Macron obtenha um segundo mandato presidencial.
O primeiro texto (publicado ontem, ver aqui), de Marc Vignaud, apresenta, de forma um pouco inócua, a política orçamental para os próximos anos, conforme consta do “plano de estabilidade” anual a enviar pelo governo francês à Comissão Europeia até final de Abril. Trata-se do regresso às políticas de austeridade, com a nuance de que o governo francês defenderá um retoque, afinal cosmético, nas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento da zona euro: Orçamental: “uma revisão da regra da dívida, que teoricamente impõe uma redução de 1/20 por ano da diferença entre a taxa real e o limiar de 60% do PIB”. Mas como o autor deste texto reconhece pela boca de um especialista (François Ecalle): “É um programa para retificar as finanças públicas através da despesa (…) um programa agradável para Bruxelas que terá o mesmo sucesso que todos os outros. No atual contexto económico e social, não vejo realmente como é que vamos manter esta trajetória de despesas. Chegámos dolorosamente a um crescimento de cerca de 1% das despesas na década de 2010, à custa do que alguns consideram ser uma política terrivelmente austera (…). Será que podemos continuar? “
Neste segundo texto, de Romaric Godin, o autor assinala que a “agenda do governo é institucionalizar a austeridade e utilizar a gestão do seguro-saúde como exemplo para todo o orçamento do Estado”. E acrescenta: “É interessante notar que a única lição que os inquilinos de Bercy aprenderam com a crise sanitária é que o mesmo regime que tem sido aplicado aos cuidados de saúde nos últimos dez anos deve ser aplicado ao Estado como um todo…(…) Neste contexto, parece inevitável uma reforma das pensões destinada a reduzir rapidamente as despesas, bem como a continuação da austeridade salarial dos funcionários públicos, a redução do número de agentes e a poupança no sistema de saúde. Não é, portanto, surpreendente que com uma tal política o crescimento não regresse”.
Como diz Godin, a posição do governo francês é “a [posição] dominante de há dez anos atrás, a famosa “austeridade expansiva” que encostou a Grécia, Espanha e Portugal à parede. Ela é ideológica e baseia-se sobretudo na preservação dos interesses de classe: os mais ricos e os detentores de capital são protegidos”.
Eu acrescentaria que é a posição dominante desde há muitos anos dentro da União Europeia, em particular na zona euro, comandada pela Alemanha e seus aliados mais próximos (vg. Holanda e outros), mas sempre secundada pela França. Aliás, poderíamos retroceder a Mitterrand nos anos de 1980, e ao seu ministro das Finanças, Jacques Delors, e alguns poderiam ficar surpreendidos por encontrarmos aí o berço das políticas de austeridade, com a exigência dos orçamentos equilibrados.
O que deveria surpreender nos dias de hoje, e após as experiências de austeridade com os países do Sul da Europa, a que poderíamos acrescentar o Reino Unido com David Cameron, é verificar que os principais dirigentes políticos europeus parece nada terem aprendido com as desastrosas consequências dessas políticas. Consequências que a atual crise pandémica pôs ainda mais a nu. E digo parece, porque mais provavelmente do que se trata é de posições puramente ideológicas destinadas a defender os mais ricos e os detentores de capital.
FT
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Seleção e tradução de Francisco Tavares
Para o seu segundo mandato Macron promete austeridade
O programa de estabilidade que será enviado a Bruxelas na próxima semana prevê uma compressão da despesa pública e a inscrição desta compressão na Constituição. Sinal de uma radicalização do macronismo.
Publicado por em 09/04/2021 (ver aqui)
Discretamente, e com uma indiferença bastante marcada, Emmanuel Macron acaba de anunciar um dos elementos mais importantes do seu programa para 2022. É certo que isto não tomou a forma de um encontro ou de um documento de campanha, mas o programa de estabilidade que o governo enviará para Bruxelas na próxima semana dá claramente o tom. E esse tom é claro: é um tom de austeridade.
Neste documento, revelado por Les Echos em 9 de Abril, o governo prevê reconduzir o défice público para um nível inferior a 3% do produto interno bruto (PIB) em 2027, ou seja, no final do próximo período de cinco anos. Este será, portanto, o objetivo de um possível segundo mandato do atual presidente.
Deve recordar-se que, devido à pandemia, este défice situou-se em 9,2% do PIB em 2020 e deverá estar próximo deste nível em 2021, tendo em conta as despesas ainda efetuadas para a segunda e terceira vagas. O esforço será portanto considerável, mesmo que as medidas de apoio devam desaparecer na hipótese (ainda incerta) de que a pandemia irá diminuir.
Resta saber como será repartido este esforço. Até agora, o discurso do Ministro da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, foi que “a dívida seria paga pelo crescimento“. Em teoria, este discurso poderia justificar reformas estruturais desastrosas para as desigualdades e o mundo do trabalho, a fim de impulsionar o crescimento numa perspectiva neo-schumpeteriana visando favorecer a mobilidade e a inovação. Mas este discurso devia também afastar a opção de ajustamento através da despesa pública. Ora, o programa de estabilidade francês exclui claramente esta opção.

Visto em detalhe, o governo não prevê realmente que o crescimento acelere. De acordo com as suas expectativas, o PIB estará 2,55% acima do seu nível de 2019 até ao final de 2023. Contudo, se o PIB da França tivesse continuado a crescer entre 2019 e 2023 ao nível (baixo) de 2019 (1,5% por ano), estaria 4,6% acima do nível de 2019 em 2023.
Por outras palavras: a perda do PIB continuará a ser significativa e o crescimento não permitirá “pagar a dívida”, para usar as palavras sem sentido de Bruno Le Maire (o Estado faz rolar permanentemente a sua dívida).
A partir de 2024, o crescimento previsto pelo governo é muito fraco: 1,5% para 2024 e 1,4% entre 2025 e 2027. Isto significa que a perda do PIB acima descrita será permanente e que o governo renunciou recuperar dessa perda. Significa também que as políticas económicas promovidas desde 2017, que deveriam permitir um aumento do crescimento potencial francês, falharam, e Bercy não pode senão reconhecer isso. Recordemos que, quando o primeiro orçamento foi apresentado no final de 2017, o executivo esperava, com todas as suas “reformas estruturais”, manter um nível de crescimento de 1,8% por ano. O fracasso da sua política é, por conseguinte, esmagador e o reconhecimento deste fracasso é total.
Então, como reduzir o défice sem uma real dinâmica de crescimento? A sabedoria keynesiana faria com que esquecêssemos o défice a fim de o reduzir. Se o crescimento for fraco, o governo deve intervir para reforçar a procura, acelerar o crescimento e assim aumentar as receitas fiscais. A isto chama-se o multiplicador fiscal. Um euro gasto pelo Estado deverá trazer mais receitas e, no final, o seu défice reduzir-se-á.
Esta é a posição que até os neo-keynesianos mais moderados defendem para a era atual. Alguns deles, como Olivier Blanchard, tinham em 2017 apoiado Emmanuel Macron. Mas esta não é a escolha do executivo para os próximos cinco anos.
Outra opção poderia ser a de aumentar a progressividade do imposto. Isto reduziria a carga fiscal sobre os mais pobres e aumentá-la-ia sobre os mais ricos. Como os menos afortunados tendem a utilizar mais do dinheiro que lhes é disponibilizado para o consumo, esta política estimularia o crescimento através de rendimentos mais elevados. Claramente, esta também não é a escolha do governo.

A taxa de cobrança de impostos será estável entre 2019 e 2027, e Bruno Le Maire insistiu sempre que estava fora de questão aumentar os impostos. Melhor ainda, o governo aumentou a não progressividade dos impostos, abolindo a maior parte do imposto sobre a riqueza, reduzindo o imposto sobre os rendimentos de capital, abolindo o imposto sobre a habitação, baixando o imposto sobre o rendimento e aumentando a contribuição social generalizada, um imposto proporcional.
Para além do facto de os efeitos económicos destas reduções serem inexistentes, como o demonstra o enfraquecimento estrutural do crescimento, elas aumentam as desigualdades e pesam sobre o défice. A política, fundamentalmente de classe, do executivo impede-o de utilizar a alavanca fiscal.
O que resta, portanto, e este é o cerne deste programa de estabilidade, é o ajustamento através da despesa pública. E este é o caminho claramente escolhido. Durante todo o período, o crescimento em volume, ou seja, ajustado à inflação, da despesa pública deve ser de 0,7%. No entanto, este crescimento será severamente reduzido durante o período 2023-2026, quando será de 0,4% e 0,5%, e mesmo zero em 2023. Em 2022, a queda de 3,3% é pesada, mesmo que seja suposto ter em conta o fim das ajudas excecionais ligadas à pandemia.
Os cortes de despesas não são, portanto, insignificantes. Nos últimos trinta anos, o crescimento em volume só foi reduzido para menos de 0,7% anualmente duas vezes, em 2011 – o último do mandato de Sarkozy -, e em 2018, aquele que deu origem ao movimento dos “coletes amarelos”. Isto quer dizer o quão complexo é o exercício. Durante o período 2011-2019, o crescimento em volume foi reduzido para 0,9% por ano e, já podemos medir os efeitos no investimento público, nos salários dos funcionários públicos, na qualidade do serviço público e, mais especificamente, no sistema de saúde.
Esta compressão de despesas tem sido de facto levada a cabo principalmente no sector da saúde. Ao respeitar os objetivos nacionais de despesas com seguros de saúde (ONDAM [1]) que são muito baixos em relação às necessidades conseguiu-se a redução do crescimento da despesa pública. No entanto, precisamente estes crescimentos “autorizados” foram inferiores ao crescimento das necessidades. Era portanto necessário fazer economias, cujas consequências nefastas se podem ver hoje em dia.
E este é um facto central a ter em conta: a austeridade não começa com a redução da despesa pública, mas sim com a sua desconexão da realidade das necessidades. É a gestão puramente contabilística destas despesas que cria austeridade, por outras palavras, a renúncia a certos serviços por razões financeiras.
Os defensores da austeridade são constantemente surpreendidos pelo facto de a França não conseguir reduzir a sua despesa pública, mas se for esse o caso, poderá ser porque o crescimento das necessidades é muito maior. Neste caso, significa que a gestão contabilística destas necessidades conduz a uma alternativa: a privatização da sua satisfação, ou o seu abandono. Visto desta forma, a questão da despesa pública adquire um significado mais social.
Uma aposta política ousada
Mas o governo não quer ouvir falar sobre isto. Pelo contrário, para alcançar o seu objetivo, pretende alargar o sistema ONDAM a toda a esfera pública, estabelecendo uma norma para a despesa pública, ou seja, uma taxa fixa de crescimento da despesa. Bercy afirma mesmo querer “constitucionalizar” esta norma, ou seja, retirá-la do domínio da discussão democrática, tal como proposto pela Comissão Arthuis sobre a dívida pública.
Portanto, sejamos claros: a agenda do governo é institucionalizar a austeridade e utilizar a gestão do seguro-saúde como exemplo para todo o orçamento do Estado. É interessante notar que a única lição que os inquilinos de Bercy aprenderam com a crise sanitária é que o mesmo regime que tem sido aplicado aos cuidados de saúde nos últimos dez anos deve ser aplicado ao Estado como um todo…
Neste contexto, parece inevitável uma reforma das pensões destinada a reduzir rapidamente as despesas, bem como a continuação da austeridade salarial dos funcionários públicos, a redução do número de agentes e a poupança no sistema de saúde. Não é, portanto, surpreendente que com uma tal política o crescimento não regresse. Poder-se-ia até ficar surpreendido por não ter sido sequer mais baixo. Porque com uma norma de despesa fixada no PIB, existe o risco de um círculo desastroso onde a norma enfraquece o crescimento e onde se reduza ainda mais a norma, a fim de respeitar os seus “objetivos”.
Na realidade, este plano só faz sentido numa lógica desligada das realidades e dos desafios do momento. Na realidade, não há nenhuma razão para reduzir o défice tão rapidamente quando as taxas de juro são baixas e quando, precisamente, o problema dos bancos centrais é o de um enfraquecimento estrutural e duradouro do crescimento. Se as taxas são baixas, é para que os empréstimos governamentais possam aumentar para reanimar a máquina sem os riscos associados a esta dívida.
Melhor ainda, se a utilização das poupanças acumuladas durante a crise for a chave para a recuperação, como afirma Bruno Le Maire, então enviar uma mensagem de austeridade é contraproducente e incentiva as pessoas a acumular poupanças de precaução em vez de as gastar.
Mas o executivo recusa-se a ouvir estes argumentos, tal como Bruxelas, uma vez que este programa de estabilidade se destina a Bruxelas. Para eles, a queda do défice cria confiança pela magia da famosa “neutralidade ricardiana”, uma tese neoclássica cuja realidade nunca foi demonstrada e que afirma que qualquer despesa pública provoca uma redução da despesa privada.
A posição do governo é portanto a dominante de há dez anos atrás, a famosa “austeridade expansiva” que encostou a Grécia, Espanha e Portugal à parede. Ela é ideológica e baseia-se sobretudo na preservação dos interesses de classe: os mais ricos e os detentores de capital são protegidos.
Esta posição foi central em 2010, mas no atual debate económico é claramente muito à direita. É uma posição ultraconservadora defendida por economistas neoclássicos ou “austríacos”. Está inteiramente centrada num medo artificial da dívida e ignora totalmente o risco social pós-pandémico identificado pelo FMI, apesar do período de cinco anos de Macron marcado pela tensão social. A viragem assumida pela administração dos EUA esta semana torna este radicalismo ainda mais visível.
Muito claramente, portanto, em matéria orçamental e económica, o governo já não pode pretender ser “centrista”. O seu centro de gravidade está agora claramente para a direita e tende a ficar fechado numa bolha ideológica. Desde há meses, através de “relatórios” e comissões, foi criada uma narrativa conservadora para impor a política descrita neste programa de estabilidade. Está perfeitamente alinhado com os Republicanos. As duas partes estão mesmo a preparar uma lei conjunta apoiada por Bercy que vai no sentido da norma de despesas.
O facto é que, politicamente, esta é uma aposta ousada. Numa altura em que a França ainda está no meio da crise da Covid e existe um risco óbvio de falências e de desemprego crescente. Só pode ser explicado por duas hipóteses.
A primeira seria que a austeridade é agora consensual na opinião francesa, que esta narrativa se impôs à maioria como uma evidência. A segunda seria que o desafio destas eleições presidenciais é convencer os eleitores da direita clássica, apoiantes desta austeridade, a manifestarem-se atrás de Emmanuel Macron. Nada diz que qualquer uma destas duas hipóteses seja verdadeira.
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[1] N.T. ONDAM (Objectif National des Dépenses d’Assurance Maladie) é um mecanismo francês de segurança social que estabelece as autorizações estimadas para determinadas despesas nos ramos “seguro de saúde” e “acidentes de trabalho”. Tem sido votada todos os anos desde 1997 pelo Parlamento como parte da Lei de Financiamento da Segurança Social.
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O autor: Romaric Godin [1973 -] jornalista desde 2000, está na Mediapart desde maio de 2017, segue a macroeconomia, em particular a francesa. Anteriormente esteve em La Tribune em 2002, depois no departamento de mercado. Correspondente em Frankfurt, na Alemanha, entre 2008 e 2011, tornou-se chefe de redacção adjunto no departamento de macroeconomia responsável pela Europa até 2017.