Memórias do holocausto nazi e o papel de Pio XII no processo – “A controvérsia sobre Pio XII e o holocausto”, por Antonio Fernández García

 

Nota do editor:

Com os textos publicados anteontem (O outro holocausto. O Vaticano e o genocídio na Croácia, ver aqui) e ontem (A esquecida e consentida sepultura em Madrid do genocida fascista Ante Pavelic, ver aqui) e aquele que publicamos hoje (A controvérsia sobre Pio XII e o holocausto) – queremos sublinhar a importância da preservação da memória dos factos históricos, não como lembrança estática do passado ou para nos comprazermos com uma controvérsia que é certamente importante, mas antes porque, para além de trazer à luz factos gravíssimos (totalmente) silenciados por muitas das reportagens sobre o holocausto e a Alemanha nazi e o papel da Igreja católica em todo o processo, a memória destes factos é essencial ao nosso olhar e reflexão sobre o presente e às escolhas que fazemos viradas para o futuro.

São textos longos mas que nos parece que devem ser publicados numa única edição dado a importância de uma leitura seguida dos relatos.

O caso do genocídio sob o regime da Croácia fascista entre 1941 e 1945 não é caso único de entre outras perseguições por motivos religiosos, culturais ou de raça [1]. Mas merece a nossa atenção pelo silêncio que tem rodeado o autêntico holocausto aí ocorrido no período do nazi-fascismo.

O texto de hoje – “A controvérsia sobre Pio XII e o holocausto” –, ajuda-nos a contextualizar as divergências em torno da figura de Pio XII e o seu comportamento durante a Segunda Guerra Mundial, texto este que finaliza destacando a falta de firmeza do Papa na condenação do nazismo e o facto de cada abertura de novos arquivos da época lançarem “sombras cada vez mais densas não só sobre a atitude mas também sobre a ideologia do Papa Pacelli“. 

 

Nota

[1] Desde logo, e sem pretender ser exaustivo, a matança de S. Bartolomeu em França em 1572 (estima-se que 10.000 a 20.000 mortos), as guerras na Europa entre protestantes e católicos, perseguição aos cátaros em França nos séculos 12 e 13, a inquisição, com particular incidência nos judeus ou cristãos-novos, a grande fome na Ucrânia em 1932-33 (3 a 7 milhões de mortos), até aos recentes genocídios na Arménia (entre um milhão e um milhão e meio de perseguidos e assassinados pelo governo otomano entre 1915 e 1923), no Camboja (assassinato de pelo menos 2 milhões de pessoas pelo regime khmer entre 1975 e 1979), a revolução cultural na China de 1966 a 1976 (estimativas variam entre 1 milhão e mais de 20 milhões de mortos), o assédio de Israel à Palestina desde 1948 (estima-se em pelo menos várias dezenas de milhar de mortos palestinianos, incluindo massacres a campos de refugiados como Sabra e Shatila).

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A controvérsia sobre Pio XII e o holocausto

 Por Antonio Fernández García

Publicado por (Universidad Complutense de Madrid), Janeiro de 2000, número 22: 359-374 (ver aqui)

 

Em 1997 deu-se a saída editorial, na sua versão francesa, do livro do jesuíta Pierre Blet sobre “Pio XII e a II guerra mundial nos Arquivos do Vaticano”, no qual se apresenta o Papa como o impulsionador de uma diplomacia que tinha procurado limitar as ondas de choque do holocausto [1]. Blet é o único sobrevivente dos editores das Actas e documentos do Vaticano publicados entre 1965 e 1981 com o objetivo de resolver a controversa questão das posições do chefe da Igreja Católica durante a Segunda Guerra Mundial, uma edição que teve uma influência decisiva na sua inclusão na equipa de teólogos responsáveis pelo processo de beatificação de Pio XII.

Em Outubro de 1999, o livro foi apresentado com notória publicidade na versão italiana. versão italiana; na sua comparência perante os meios de comunicação social, o autor defendeu que se o Papa não condenou o Holocausto, foi porque não era conhecido na sua terrível escala até ao fim da guerra. Diametralmente oposta é a conclusão de outro livro de 1999, o de John Cornwell, Senior Research Fellow no Jesus College, Cambridge, cuja primeira versão em espanhol saiu em Fevereiro de 2000, com tal sucesso editorial que uma segunda edição apareceu em Março de 2000 [2]. Em Março apareceu a segunda edição. Para esta resposta do público pode ter contribuído o seu título escandaloso, “O Papa de Hitler”, mas em qualquer caso surgiu como um livro demolidor, que atribui o silêncio de Pio XII sobre o Holocausto ao facto de professar um anti-semitismo disfarçado mas perceptível na documentação.

Trata-se, de momento, juntamente com a monografia de Phayer [3] do ano 2000, das últimas contribuições para um tema controverso desde o fim da guerra e a descoberta das dimensões genocidas do Shoah. Podem distinguir-se duas linhas na literatura sobre o assunto: a apologética do Pontífice teve as suas contribuições mais notáveis nas obras de Lepide, Gariboldí e Pierre Blet; a crítica, que encontrou os seus autores mais documentados em Friedlánder, Lewy, Katz, Laqueur, Falconi, Papeleaux e Lacroix-Riz [4], culminou na tremenda argumentação de Cornwell, cuja investigação – diz o autor – o levou a um estado de choque moral:

Em meados de 1997, ao aproximar-me do final da minha investigação, encontrava-me num estado que só posso qualificar como de choque moral: o material que eu tinha estado a reunir, que foi a investigação mais extensa da vida de Pacelli, não levava a uma ilibação, mas ao contrário a uma acusação ainda mais grave contra a sua pessoa[5].

 

Referiremos alguns pontos destes estudos, mas o tema tem tido um reportório mais vasto de abordagens e tratamentos, entre os quais devemos mencionar as obras de Nobecourt, Ben Elissar e o importante livro de Chadwick [6], numa série que termina, no momento em que se escreve este Debate, no estudo de Michael Phayer, que se estende no tempo as atitudes de anti-semitismo enraizadas na Igreja Católica até aos decretos do Concílio Vaticano II.

A documentação sobre o assunto é muito vasta e de origens diversas, o que nos leva a crer que existe, em teoria, a possibilidade de um trabalho académico afastado de posições polémicas. O reportório documental poderia ser resumido da seguinte forma:

  • documentação alemã e nazi, arquivada no Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, em particular os relatórios dos embaixadores alemães [7], documentação tratada por Friedlánder, à qual deve ser acrescentada a documentação classificada nos Arquivos Católicos de Munique.
  • documentação judaica, da qual Pinchas E. Lapide fez uso preferencial, pertencente aos arquivos Yad Vashem, Central Sionista e do Arquivo Histórico de Jerusalém
  • documentação diplomática dos países ocidentais, na qual se destaca pela sua importância a documentação britânica do Public Record Office e a documentação francesa do Quai d’Orsay, a base da monografia de Chadwick. De grande interesse para a reconstrução a trama do jogo diplomático são os “Diários” de Osborne, o ministro britânico junto da Santa Sé, e a correspondência com a sua mãe, Mistress Bridget Mc Ewan, assim como os “Diários” e as notas do seu homólogo francês Charles Roux. O estatuto especial do Vaticano tornou possível a permanência em Roma de diplomatas de países ocidentais, durante uma guerra em que a Itália estava do lado do inimigo, tornando-os testemunhas em primeira mão da diplomacia cautelosa do Vaticano. Há que acrescentar a documentação dos países ocupados pela Wehrmacht, especialmente a polaca, e a do Estado satélite croata.
  • documentação do Vaticano. No final da guerra, a reprovação do silêncio da Santa Sé recebeu uma resposta a partir de Roma com a publicação de um branco livro branco, que incluía um breve resumo documental. Quando se estreou em 1963 a peça de teatro “O Vigário” do alemão Rolf Hochhuth, que fazia sérias acusações contra o Papa, o Vaticano decidiu responder com a publicação de onze volumes de documentação sobre o período da Segunda Guerra Mundial, editados por Blet, Graham, Martini e Schneider entre 1965 e 1981 [8]. Para o nosso tema têm interesse mais direto o Volume II, que inclui as cartas de Pio XII aos bispos alemães, e os volumes IX e X, que registam as ações da Santa Sé a favor das vítimas da guerra. Cornwell critica a seleção realizada porque omite alguns documentos, com o que esbate a responsabilidade do Pontífice em casos específicos, e incorpora documentação inédita do Vaticano, incluída em ficheiros não abertos, nunca antes consultados, como o informou Pierre Blet.

 

A documentação do Vaticano desenha a imagem mais favorável de Pio XII [9], comovido pelos sofrimentos do conflito e obcecado por manter uma posição de neutralidade, na qual participaram ativamente Monsenhor Maglione, Secretário de Estado, e os substitutos do Secretário de Estado, Tardini e Montini.

Os 511 documentos do Volume V, que cobrem o período de Julho de 1941, após a invasão alemã da União Soviética, até Novembro de 1942, data do desembarque dos Aliados no Norte de África, abordam o tema da “cruzada anti-Bolchevique”, o rótulo de propaganda nazi para a “Operação Barbarossa”. Tendo em conta a hostilidade de Pio XII em relação ao bolchevismo, uma certa atitude de compreensão em relação à decisão estratégica de Hitler poderia ter entrado na correspondência, mas não há nenhum documento que prove esta posição pró-alemã. Apesar disso, Pio XII não hesitou em colocar obstáculos ao apoio dos católicos americanos para uma aliança com a Rússia. com a Rússia, o que levou Roosevelt a enviar Myron Taylor como seu legatário pessoal para Roma, onde chegou a 9 de Setembro de 1941, poucas semanas antes de Pearl Harbour. Taylor conseguiu que o Vaticano fizesse a distinção entre o povo russo e o regime comunista numa declaração pública feita por Monsenhor Nicholas de Cincinnati. Um pedido do Barão Kallay, presidente do Conselho Húngaro, em 24 de Fevereiro de 1942, implorando ao Sumo Pontífice que denunciasse como Vigário de Cristo a ameaça bolchevique, só foi respondida um ano mais tarde, em 7 de Março de 1943, quando Pio XII declarou pessoalmente ao ministro húngaro Apor que a

Santa Sé não fechava os olhos ao perigo comunista, mas que não podia renovar a condenação pública do bolchevismo sem falar ao mesmo tempo da perseguição em curso feita pelos nazis[10].

 

Esta imagem de neutralidade estrita, mais clara depois de Estalingrado, quando começava a duvidar-se da vitória nazi, apresenta fissuras quando se consulta a documentação inédita do Vaticano, incorporada por Cornwell, muito mais comprometedora para o Pontífice. O autor britânico considera até que parte da documentação reunida para a beatificação de Pio XII é acusatória.

Vamos delinear brevemente alguns marcos do debate, e depois concentrar-nos-emos nos estudos mais representativos.

Os rumores acusatórios sobre o silêncio ou a passividade de Pio XII face ao drama vivido pelo povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial ampliaram-se em 1945, a cuja refutação a edição de uma primeira selecção de documentos do Vaticano encomendada a M. Maccarrone em 1947 foi uma resposta [11]. O assunto permaneceu adormecido até ao aparecimento de “Der Stellvertreter” (“O Vigário”) de Rolf Hochhuth [12] em 1963, obra que foi traduzida em vinte idiomas e foi representada em bastantes países. Baseada numa documentação insuficiente, a deformação que faz da figura do Papa Pacelli, considerado uma das máximas figuras da Igreja neste século, ao menos do ponto de vista intelectual, provocou alguns repúdios académicos mas também uma resposta popular de curiosidade. O êxito literário de Hochhuth teve duas consequências: a edição do livro de Friedländer [13] sobre “Pio XII y el Tercer Reich” (1964), livro apoiado nos relatórios dos embaixadores alemães, que revelam a germanofilia do Pontífice, e a publicação da documentação do Vaticano por decisão de Paulo VI.

Os relatórios de Von Weizsäcker, embaixador alemão na Santa Sé, analisados por Friedländer, constituem a primeira comprovação de que foi pedida a intervenção de Roma e o Pontífice calou-se. Ao mesmo tempo que o estudo de Friedländer aparecia o de Guenther Lewy [14], respeitoso em relação ao angustioso dilema do Pontífice, entre uma denúncia que podia piorar a situação de muitos judeus e bastantes católicos ou a opção por uma diplomacia ambígua. Em qualquer caso, concluía de forma reprovadora, “o silêncio tem um limite”.

Em 1965 irrompeu neste assunto Carlo Falconi, com um estudo bastante crítico do Papa, ao qual nos referiremos mais adiante, e dois anos depois apareceu outra apologia, a de Pinchas E. Lapide, cônsul de Israel em Milão, que afirmava que Pio XII tinha feito mais pela defesa dos judeus que qualquer organização humanitária [15]. Em 1969 o norte-americano Robert Katz [16], a partir de uma investigação sobre as Fossas Ardeatinas, insinuava que o silêncio cúmplice de Pio XII procurava que os ocupantes alemães respeitassem a extraterritorialidade do Vaticano. O que em Katz era insinuação de culpabilidade converteu-se, no estudo de Walter Laqueur [17] em 1980, em acusação aberta. Laqueur interpretava a atitude de Pio XII como um exemplo de pusilanimidade mais que de anti-semitismo e denunciava o conhecimento da Solução Final, negado nos meios eclesiásticos, graças aos intrincados recursos da diplomacia do Vaticano. Não menos contundentes foram as conclusões nesse mesmo ano de Léon Papeleaux, bastante críticas em relação às posições do Sumo Pontífice [18].

Em 1986 a monografia de Owen Chadwick incorporava nova documentação e perspetivas para abordar o assunto. Em o “estado da questão” que Cornwell incorpora no final do seu livro, interpreta que Chadwick se identifica com o ponto de vista de Francis d’Arcy Osborne, embaixador do Reino Unido na Santa Sé, que mostrava a sua simpatia pelo terrível dilema que assoberbou Pio XII. A nossa leitura deste importante trabalho de história diplomática é mais crítica, ponto a que regressaremos.

Em 1988 intervinha na controvérsia Giorgio Angelozzi Gariboldi, advogado criminalista que tinha representado a sobrinha de Pacelli no julgamento de injúrias promovido contra Robert Katz. Após a apologia feita por Gariboldi, com um prólogo de Giulio Andreotti que demonstrava a sua sintonia com as posições pró Vaticano da Democracia Cristã italiana, o estudo da professora da Universidade de Toulouse-Le Mirail, Annie Lacroix-Riz, que examina a política do Vaticano desde a primeira guerra mundial até à guerra fria, e os enfoques antagónicos de Blet e Cornwell mostraram que o tema continuava aberto.

O último estudo até ao momento, o de Phayer, reconhece a impossibilidade do Papa de mudar o curso da história, mas distingue diferentes comportamentos de bispos e católicos no tema do holocausto, deixando algumas interrogações sobre as prioridades do Sumo Pontífice numa época sombria.

Com o objetivo de examinar mais de perto os argumentos das duas linhas, elegemos quatro dos estudos citados, os de Lapide e Gariboldi, representativas da posição apologética, e os de Papeleaux e Falconi, da posição crítica.

Na linha da defesa da posição do Papa, o livro de Lapide [19] oferece a particularidade de ter sido escrito por um diplomata judeu que apoiou a sua investigação em documentação judaica. De origem canadiana, o autor figura entre os fundadores do primeiro kibutz. A sua tese de que Pio XII tomou múltiplas medidas a favor dos judeus em Itália é sustentada com algumas intervenções, entre elas protestos pela exclusão dos judeus de algumas profissões, a oferta de um posto de trabalho na biblioteca do Vaticano ao cartógrafo R. Almagiá quando perdeu a sua cátedra, a ajuda pessoal a cerca de 150 a 200 refugiados de elite e a obtenção de passaportes e dinheiro para um número de 4.000 a 6.000 judeus com destino à América do Sul, medidas que se repetiram na Eslováquia, Hungria, Roménia, Bulgária e Grécia. O trabalho de Lapide demonstra que a crédito do Papa durante a guerra haveria que contabilizar ações humanitárias, o que não é negado por nenhum autor, mas parece tratar-se de gestos esporádicos, não de uma política sistemática de ajuda. Relata-se o extermínio na Polónia e afirma-se que o Papa protestou em vão, mas não existe mais do que uma prova documental de uma queixa, realizada pelo arcebispo de Lvov. Se o capítulo dedicado à Polónia – elemento essencial da historiografia crítica – nos parece fraco, mais surpreendente é o silêncio absoluto sobre a Croácia, apesar de esta monografia ser posterior à de Falconi, que centra a sua crítica na inibição do Papa perante a terrível experiência da Croácia ustacha.

A defesa quase processual que Gariboldi faz [20] concentra-se em descrever a maldade de Hitler e do nazismo, mas o mais surpreendente é que não apareça tratado o holocausto em nenhum momento. Argumenta-se que a Concordata que Pacelli negociou enquanto Secretário de Estado do Vaticano [em Julho de 1933] apenas foi útil para Hitler, mas deixa-se sem explicação a motivação do Vaticano para este acordo com o mal. O tratamento do caso polaco é significativo. Quando se produziu a detenção massiva de sacerdotes católicos, que poderiam galvanizar a resistência da população, o protesto de monsenhor Orsenigo, núncio em Berlim, foi rejeitada pelo subsecretário de Assuntos Externos porque a apresentou a título privado [21], o que demonstra, em nossa opinião, a parálise da diplomacia do Vaticano ante o extermínio sistemático da católica população polaca. O primado de Polónia, cardeal Hlond, suplicou em vão uma tomada de posição do Papa (carta a Maglione, 2 de Agosto de 1941). Este silêncio, um dos pontos chave da historiografia crítica, é interpretado de modo pouco convincente pelo autor:

Pio XII estava prisioneiro do seu silencio, pois estava atormentado pela convicção de um protesto solene seu provocaria mais reações cruéis por parte de Hitler. Um eventual protesto seu teria constituído o começo da agonia de tantos reféns inocentes nas mãos dos nazis. Pio XII leu com lágrimas nos olhos a carta do primado da Polónia…[22].

Recordando que um outro protesto tinha acicatado ainda mais a perseguição na Holanda. Para este autor a angústia ante o temor de provocar um mal maiorseria a razão do silêncio pontifício; no entanto, tendo em conta a dimensão genocida que tinha alcançado a política nazi na Polónia nessa altura, resulta como não credível que um protesto papal aumentasse as represálias nazis. De outro ponto de vista o livro de Gariboldi é muito valioso, porque inclui no texto e nos apêndices documentos importantes.

Autor de uma monografia e séries de artigos sobre o tema, Léon Papeleaux [23] merece ser considerado como um dos mais tenazes porta-vozes da corrente crítica. Papeleaux segue de perto os esforços de Pio XII no início do seu pontificado para restabelecer relações normais com o regime nazi após a deterioração que sofreram com a publicação da encíclica “Mit brenneder Sorge” [Com preocupação ardente]. Durante a guerra, no meio de insuportáveis dúvidas, o Pontífice entendeu que o maior perigo para a Europa não estava no nazismo mas antes no bolchevismo, o que explica a escassez de referências sobre os campos e a questão judaica na sua correspondência com os bispos alemães. Significativo foi a tentativa de paz sem responsabilidade; em Fevereiro de 1944, quando já eram conhecidas as atrocidades nazis, pediu uma “paz de compromisso que exclua a exigência de responsabilidades de guerra”. No Outono desse ano temia-se o extermínio de milhares de prisioneiros em Auschwitz e em outros campos; o Núncio de Berlim informou da inutilidade de qualquer tentativa humanitária e a Secretaria de Estado instruiu o “Osservatore Romano” de que não fizesse eco do problema para evitar uma possível irritação dos nazis que provocasse o extermínio dos judeus encarcerados, silêncio que persistia em Janeiro de 1945, em “resposta” às súplicas do Congresso Mundial judaico e da Cruz Vermelha para que intercedesse.

Mais severa e documentada é a crítica de Carlo Falconi [24], que se centra, com o uso de documentação polaca e croata, nos dois casos mais incompreensíveis do silêncio pontifício. Falconi propõe três pontos com três negações [25]: Pio XII não condenou os excessos nazis, não os desconhecia, não reagiu perante as pressões e súplicas para que falasse. Na sua primeira mensagem de rádio natalícia, em 1939, lamentou os sofrimentos que a guerra provocava, mas absteve-se de referir os responsáveis pelo seu início, e em confidências posteriores aludiu a que a verdadeira catástrofe chegaria com a entrada calculada do comunismo no conflito, enquanto guardava silêncio sobre os delitos extrabélicos, ou se limitava a alusões muito genéricas, como na mensagem de rádio natalícia de 1942, na qual, após evocar “os inumeráveis mortos que jazem sepultados nos campos de batalha”, recorda “as centenas de milhares de pessoas que, sem culpa pessoal alguma, por vezes somente por razões de nacionalidade ou de raça, são destinadas a morrer ou a uma progressiva decadência”. Estas frases compactadas, colocadas quase no final de um longuíssimo texto, e que a Gariboldi parecem suficientes para demonstrar a preocupação do Pontífice, são consideradas por Falconi como “escassas e excessivamente cautelosas linhas”, sem continuidade, porque o Pontífice “não se permitiu mais nenhum desabafo sobre os delitos, mais que execráveis, do nazismo e dos seus aliados” [26].

O estudo de Falconi é especialmente contundente na 2ª parte, consagrada ao caso da Polónia. As cartas de Pacelli ao presidente da República e ao primado, cardeal Hlond, demonstram que tinha perfeito conhecimento da situação, conhecimento completado pelo detalhado relatório de Luciana Frassati para monsenhor Montini e para o Papa em Setembro de 1943; não obstante, o Vaticano guardou silêncio, segundo Falconi de palavras e de factos, hermético às petições para que falasse e aos artigos suplicantes que apareciam na imprensa clandestina. De outra índole foi o silêncio no caso da Croácia, porque aqui a pressão moral teria sido feita sobre um regime filonazi de filiação católica que perseguiu cruelmente a população servo-croata ortodoxa. O sadismo atingiu níveis inigualáveis num território onde os gangues Ustachas destruíram centenas de igrejas ortodoxas gregas e mataram centenas de milhares fiéis ortodoxos. Entre os carrascos estavam padres católicos. Representantes do Vaticano minimizaram as denúncias, e monsenhor Maglione, o Secretário de Estado, pressionou monsenhor Stepinac, o primado croata, para que fosse mais complacente com os Utachas. Este capítulo croata, que ocupa além disso a atenção do livro de Cornwell, apoiado em documentação do Vaticano que coincide com a documentação croata consultada por Falconi, leva o autor italiano a uma conclusão determinante, ainda que expressa com cautela, à espera do que pudessem revelar os Arquivos Secretos do Vaticano:

os documentos de que dispomos permitem formular, embora de forma muito cautelosa, algumas suposições que concordam em mostrar Pio XII como um apoiante mais que benevolente da Croácia ustacha[27].

 

Entre a benevolência de advogado de defesa de Gariboldi e a severidade contundente de procurador de Falconi, a monografia de Owen Chadwick aponta para uma terceira via, em certa medida justificadora ou compreensiva com as dificuldades impossíveis que a diplomacia do Vaticano teve de enfrentar, mas de forma alguma apologética quanto ao comportamento do Papa. Embora seja um estudo bem documentado, incorporando as opiniões, notas e relatórios dos diplomatas ocidentais acreditados junto do Vaticano durante a guerra, parece-nos que o autor não é coerente com os testemunhos que inclui, porque muitos deles levam a conclusões mais severas para com o Papa do que as conclusões excessivamente prudentes com os quais ele encerra a monografia.

Vejamos vários exemplos. Charles Roux, representante francês no Vaticano, desejava que o Papa condenasse os culpados da hecatombe bélica durante o primeiro inverno da guerra, em 1940, mas não o conseguiu porque o supremo pastor da Igreja não desejava imiscuir-se em assuntos políticos, embora tenha permitido que outros falassem, como o primado polaco Hlond. Apesar disso, Chadwick interpreta que a alusão à Polónia na “Summi Pontificatus” satisfez os aliados, uma vez que a aviação francesa lançou cópias desse documento sobre a Alemanha. Talvez seja uma conclusão excessiva, uma vez que no momento crítico, Maio de 1940, quando se desencadeia a campanha do Oeste com a invasão da Bélgica e da França, Roux pede que se condenem os crimes nazis e monsenhor Tardini responde-lhe que Sua Santidade já o havia feito. A distinção do diplomata francês ilustra a extrema prudência do Pontífice, apanhado na roda gigante das declarações éticas globais, porque Roux assegura a Tardini que não é a mesma coisa mostrar simpatia pelas vítimas e condenar os crimes. Sobre as deportações de judeus em 1942, no momento em que se definiu a “solução final”, o livro rebate de forma incontestável a tese do desconhecimento da situação por parte do Vaticano [28]. Em Maio de 1942 teve-se notícia da deportação de 80.000 judeus eslovacos para a Polónia, para um destino que equivalia à morte. Osborne comenta a impopularidade do Papa, diferentemente da situação de esperança que Pacelli tinha despertado em 1939. A partir de 25 de Junho o «Daily Telegraph» começou a publicar relatórios sobre o extermínio de judeus que excederia um milhão; em 10 de Julho estimava em 900.000 o número de polacos vítimas do genocídio nazi. Osborne entregou ao Vaticano a informação veiculada pelos meios de comunicação, mas apesar disso o Secretário de Estado Maglione manteve-se na posição de que o Papa já tinha falado e não era necessário novo pronunciamento. Em Setembro foi um embaixador neutral, Accioli do Brasil, quem transmitiu a Pio XII as notícias sobre o holocausto. O Papa, assegurando-lhe que acreditava na veracidade do seu relatório, resumiu a sua posição em quatro pontos: já tinha falado, não pode ser mais claro porque prejudicaria as vítimas, não pode ultrapassar a censura de um país em guerra, presta ajuda em privado aos que sofrem. Osborne, segundo vários documentos recolhidos por Chadwick, fala de atrofia moral do Papa e reitera este juízo quando chegam a Roma notícias do gueto de Varsóvia.

Em Dezembro de 1942 o Papa sai do seu mutismo para evitar o bombardeamento de Roma. No dia 14, em entrevista com Maglione, Osborne observa:

Insisti com ele que o Vaticano, em vez de pensar exclusivamente sobre o bombardeamento de Roma, deveria considerar os seus deveres em relação a um crime sem precedentes contra a humanidade, a campanha de Hitler de extermínio dos judeus[29].

 

Pensamos que citações como esta, que poderíamos multiplicar, não nos permitem deduzir que Osborne aceitou o silêncio pontifício como lógico, por mais que simpatizasse com a sua angústia. Em 17 de Dezembro, Londres, Washington e Moscovo assinam uma declaração sobre a perseguição dos judeus; Osborne sugere que conviria que o Papa a apoie e Maglione responde de forma negativa, argumentando que a Santa Sé não a deveria mencionar atrocidades particulares mas deplorar a crueldade em geral e ajudar as vítimas. Certamente Chadwick não se apoia suficientemente na documentação interessante que cita, mas apesar disso, o seu estudo insiste, com mais respeito do que os autores críticos, no silêncio inexplicável do Santo Padre.

As duas linhas examinadas [a apologética e a crítica] têm os seus dois últimos expoentes nas obras de Blet e Cornwell. O jesuíta Pierre Blet aparece estreitamente ligado à defesa da memória de Pio XII como membro da equipa de teólogos responsáveis pelo processo de beatificação do Papa Pacelli, e é um profundo conhecedor da documentação do Vaticano enquanto editor das Actas e documentos desse período. O seu estudo centra-se nas ações humanitárias e nos esforços do Pontífice a favor da paz, mais que no tema do holocausto, tema ao qual, como no livro de Gariboldi, dá a impressão de esquivar-se. Sem espaço para analizar a fundo esta monografia, limitamo-nos a assinalar que todas as ações que são citadas se referem às vias diplomáticas, poucas vezes às vias públicas. É o caso da Polónia. Há cartas atribuídas ao núncio de Berlim, Orsenigo [30], que as tramitava ante Von Ribbentrop, mas pensamos que estas atuações secretas não desmontam a acusação do silêncio pontifício, porque o que se pedia ao Papa era uma declaração pública e categórica. O capítulo 8 consagra-se ao estudo da deportação dos judeus na Eslováquia e na Croácia. Até mesmo numa narrativa apologética como esta a diplomacia do Vaticano aparece excessivamente timorata.

Em 9 de Setembro de 1941 as autoridades eslovacas, controladas pelos nazis, emitiram o Código antissemita; em 12 de Novembro a Santa Sé remeteu uma nota de protesto, e esperou seis meses pela resposta. Mais chamativo parece-nos o tratamento da Croácia. Assinalámos que Gariboldi contornava o assunto; Blet dedica-lhe 3 páginas e meia [31] num texto de 326, um assunto que Falconi tinha tratado com tanta contundência. É tudo o que o Vaticano pode replicar aos seus críticos? Por outro lado, citam-se algumas ações a favor dos judeus mas não é feita qualquer menção aos ortodoxos sérvios, tão cruelmente perseguidos pelos católicos. Não pensamos que com estas posições, de quase silêncio sobre o holocausto e de andar na ponta dos pés pelos assuntos mais sensíveis, os advogados de Pio XII possam desmontar os argumentos da historiografia crítica.

Há várias razões pelas quais nos devemos concentrar na contribuição da monografia de John Cornwell, uma vez que completa a linha crítica, tem em conta todos os estudos anteriores de diferente sinal, incorpora documentação inédita do Vaticano e atingiu um amplo raio de eco na opinião pública, ultrapassando as fronteiras dos cenáculos académicos em que o debate estava recluído.

Após um meticuloso percurso pela biografia de Pacelli, o autor chega ao momento-chave em que, como Secretário de Estado de Pio XI, o brilhante Cardeal italiano se tornou o mentor da Concordata com Hitler. Apesar do sólido apoio na documentação com que ele sustenta cada passo, na nossa opinião é excessiva a sua tese de que Pacelli contribuiu para a ascensão de Hitler ao poder, argumentando que, com a sua concepção piramidal da Igreja, ele refreou a autonomia dos bispos alemães e enfraqueceu o partido do Centro, o que facilitou a rápida ascensão dos nazis [32]. Após a conversão de Hitler em chanceler e führer, a assinatura da Concordata resultou, na prática, no assédio aos católicos, na dissolução das suas associações e na perseguição dos judeus convertidos. Os protestos de vários bispos alemães de atitudes diferentes perante o regime nazi, entre outros Bertram (Breslau) e Faulhaber (Munique), foram silenciados por Pacelli, silêncio que se manteve em incidentes tão graves como a “noite das facas longas”, um assassinato massivo dirigido desde o poder na luta pela hegemonia dentro dos grupos nazis.

No que diz respeito ao atroz regime católico na Croácia, as conclusões de Cornwell são tão categóricas como as de Falconi. As conclusões de Cornwell são tão categóricas como as de Falconi. As “medidas racistas e anti-semitas eram, portanto, também conhecidas da Santa Sé e de Pacelli quando ele quando felicitou Pavelic no Vaticano” [33], anota o autor. O arcebispo de Zagreb, Alojzije Stepinac, concordou com os objetivos gerais do novo estado croata. do novo estado croata. Em Março de 1942, pouco depois da Conferência de Wandsee, o Congresso Mundial Judaico e a comunidade israelita suíça pediram à Santa Sé que interviesse para pôr fim à perseguição dos judeus em vários países, entre eles a Eslováquia, a Hungria e a Croácia, os três países onde a diplomacia pontifícia poderia ter uma influência decisiva. O documento, cujo manuscrito é guardado no Arquivo Sionista em Jerusalém, foi publicado por Friedländer, mas excluído dos volumes sobre a guerra publicados pelo Vaticano. Nessa altura o Cardeal Tisserant, um homem de confiança de Pio XII, reconheceu que os franciscanos tinham participado na perseguição da população ortodoxa e na queima das suas igrejas em Banja Luka, o que lamentou, apesar de Pacelli nunca ter retirado a sua benevolência para com os líderes do regime de Pavelic, porque acima destas convulsões ele colocava a ameaça bolchevique, “ninguém quer reconhecer o único, real e verdadeiro inimigo da Europa; não se iniciou uma verdadeira cruzada militar comum contra o bolchevismo”, diz ele numa das suas cartas [34].

Para demonstrar o silêncio de Pacelli perante o holocausto Cornwell insiste no que já é conhecido, as notícias (Osborne, “Daily Telegraph”, Myron Taylor, Myron Taylor, Myron Taylor). sobre o que já é conhecido, as notícias (Osborne, “Daily Telegraph”, Myron Taylor), mas as suas conclusões são mais duras do que as de Falconi, porque atribui a posição papal a um anti-semitismo partilhado:

Desse ponto de vista era o Papa ideal para o indizível plano de Hitler. Era o peão de Hitler. Era o Papa de Hitler[35].

Na controvérsia que temos vindo a comentar nenhum autor tinha ousado chegar tão longe. Este professar de anti-semitismo completou-se com a política adotada em relação aos judeus de Roma. Quando os nazis iniciaram a deportação, Von Weizsácker pediu ao Vaticano para intervir, mas esbarrou com a relutância de Maglione. Do comboio que saiu da estação Tiburtina de Roma a 18 de Outubro de 1943, apinhado de judeus, foram recebidas notícias em todas as etapas da viagem, que falavam da situação lamentável dos prisioneiros superlotados. Naquele momento a mente de Pacelli estava preocupada sobretudo com a possibilidade de uma revolta comunista em Roma.

O trabalho de Cornwell, tão bem documentado e tão discutível ao mesmo tempo, irá previsivelmente aumentar a temperatura do debate. Embora reconhecendo a importância da sua contribuição para a controvérsia em torno de Pio XII, somos obrigados a registar várias observações críticas. O alegado anti-semitismo de Pacelli talvez não correspondesse a um critério pessoal mas sim ao ponto de vista secular da Igreja, até ao Concílio Vaticano II, sobre os judeus. Que a concepção de Pacelli de uma Igreja piramidal, autoritária e hierárquica, estava em sintonia com as ditaduras e totalitarismos que atingiram a Europa nas décadas de 1930 e 1940, exigiria um estudo de modelos comparados de que o autor católico britânico não se ocupa. As responsabilidades de Pacelli na ascensão de Hitler não aparecem citadas na historiografia sobre o nazismo, por exemplo, no meticuloso estudo de Kershaw [36]. Que os católicos pudessem ter travado Hitler se o Vaticano não tivesse mantido as rédeas curtas figura nos estudos que têm sido dedicados às Igrejas e ao nazismo [37], porque em princípio as Igrejas protestantes tinham um maior peso social e não receberam quaisquer acusações diretas desta natureza. Embora este livro com o seu título escandaloso seja arrastado pela vertigem da documentação comprometedora, que exige extrema cautela na leitura, as suas contribuições menos convulsivas reforçam as teses da historiografia crítica em relação ao Papa Pacelli. Os silêncios poderiam responder à prudência ou a critérios ideológicos, mas o que é indiscutível é que eles existiram, e não contribuem para dignificar a memória do Papa as afirmações, inspiradas por uma apologética que roça a propaganda, de que ele falou e fez gestos heróicos. A ambiguidade dos documentos do Vaticano fornece munições a todos; é o que acontece com a mensagem de Natal de 1942, para Blet uma prova de que o Pontífice denunciou os crimes, para Cornwell um texto que comprova o seu silêncio, dissimulado com alusões crípticas.

Em qualquer caso, é perceptível a assimetria com que Pio XII contemplou o mundo conturbado da década de 1940. Porque depois de ter travado os bispos alemães na sua posição de resistência a Hitler e ter encorajado a posição de colaboração de Stepinac com os ustachas croatas, esperava de Mindszenty o martírio para enfrentar o avanço do comunismo na Hungria. Para Annie Lacroix-Riz, esta assimetria correspondeu a uma constante da política externa do Vaticano, que mostrou as suas simpatias pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial e que se agudizaram quando o germanófilo Pacelli se tornou Secretário de Estado e mais tarde ao trono papal. A sua conclusão antecipa pela sua severidade a de Cornwell:

Duvidamos que Pacelli tenha sentido compaixão pelos judeus. Há demasiadas provas de anti-semitismo que balizam a sua carreira (…) partilhava com os seus amigos alemães um ódio visceral aos judeus sempre assimilados ao judaico-bolchevismo[38].

 

O assunto está aberto, no entanto alguns postulados sobre ele mostram alguma solidez. A germanofilia de Pacelli pode ter influenciado as suas atitudes. Rita Ihalman falou sobre “a tragédia não só de um homem, mas de um catolicismo prisioneiro de uma ideologia conservadora, ao ponto de esquecer os princípios do Evangelho e capitular ante o fascismo”. Mais ativa e humanitária foi a posição da Igreja naquelas nações onde os Núncios agiram sem seguir instruções do Vaticano, como aconteceu com Bernardini na Suíça, Rotta na Hungria e o muito humano Roncalli, o futuro João XXIII, na Turquia. O silêncio e a assimetria forjaram uma combinação explosiva. Porque Pio XII, recusando-se a condenar o nazismo por medo de aumentar os horrores da guerra, mobilizou-se no final da guerra para impedir que os soldados alemães fossem deportados para a Rússia. Era lógica a queixa de Osborne a Montini em Novembro de 1944 quando ele expressou a sua surpresa por o Santo Padre deplorar os saques dos soldados soviéticos quando nunca tinha comentado em público os crimes da Wehrmacht nazi.

Ao examinar o comportamento de Pio XII em relação ao regime genocida croata, Falconi, baseando-se unicamente na documentação de origem croata, e com particular atenção aos relatórios transmitidos a Zagreb pelos seus dois representantes não oficiais, o Dr. Rosinovic e dois representantes não oficiais, o Dr. Rosinovic e o Príncipe Lobkowicz, afirmava:

Naturalmente, também neste caso a única resposta conclusiva e decisiva podem-na dar somente os Arquivos secretos do Vaticano[39]

 

Esta previsão foi cumprida por Cornwell. Se as suas conclusões forem desequilibradas, só pode ser provado por uma política aberta por parte do Vaticano, que ponha à disposição dos investigadores toda a documentação relativa a Pio XII, sem receio de que os meandros da investigação possam afetar o processo de beatificação desta figura emblemática, porque as instituições agarram-se aos seus ícones, mas acima desta tradição de interesse próprio, a verdade reivindica o seu lugar entre os valores que informam a comunidade humana. Alguns homens da Igreja assim o pediram. Em 8 de Março de 1964, na Igreja de São Miguel em Munique 8 de Março de 1964, na igreja de São Miguel em Munique, a partir do mesmo púlpito onde o Cardeal Faulhaber denunciara a ideologia nazi, o seu sucessor, o Cardeal Julius Döpfner, coordenador e figura destacada do Concílio Vaticano II, num sermão comemorativo de Pio XII reconheceu:

O juízo retrospetivo da História autoriza perfeitamente a opinião de que Pio XII devia ter protestado com maior firmeza”.

Um Pontífice eminente em muitas áreas, que falou incansavelmente sobre todos os temas, guardou silêncio perante o maior drama da sua época. É um enigma sobre o qual talvez não se tenha escrito ainda a última palavra, mas os arquivos que cada investigador desvenda lançam sombras cada vez mais densas não só sobre a atitude mas também sobre a ideologia do Papa Pacelli.

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NOTAS

[1] Blet, Pierre: “Pie XII et la Seconde Guerre Mondiale d’aprés les Archives de Vatican”. Paris, Perrin, 1997. Ao mesmo tempo, Lacroix-Riz publicou: “Le Vatican, l’Europe et le Reich. De la Premiére Guerre Mondiale a la Guerre Proide”. Paris, Colin, 1997.

[2] Cornwell, John: «El Papa de Hitler». La verdadera historia de Pío XII. Barcelona, Planeta, 2000.

[3] Phayer, Michael: “The Catholic Church and the Holocaust, 1930-1965”. Indiana University press, 2000.

[4] Vid. infra.

[5] Cornwell, op. Cit., p. 10.

[6] Nobecourt, Jacques: “The Catholic Church and Nazi Germany>. Nueva York 1964. Ben Elissar, Eliahu: “La Diplomatie du IIIe. Reich et les Juifs” (1933-1939). Paris, Julliard, 1969. Chadwick,Owen: “Britain and the Vatican during the Second World War”. Oxford, University Press, 1988.

[7] São de grande interesse os relatórios e notas, bastante críticas com a política externa de Hitler, de Ernst Von Weizsäcker, enviado como representante ante o Vaticano precisamente para o colocar num posto marginal da política diária alemã.

[8] Blet, P.; Graham, R.; Martini, A. y Schneider, B.: “Actes et documents du Saint Siège relatifs à la Seconde Guerre Mondiale”. Ciudad del Vaticano, 1965-1981. 11 vols.

[9] “Le Saint Siège et la deuxième guerre mondiale, deuz éditions de source, em «Revue d’histoire de la deuxiéme guerre mondiale», nº 128 (1982), pp. 71 y ss.

[10] “Acte set documents du Saint Siège…”, vol. VII, doc. nº 137.

[11] M. Maccarone, M.: “Il nationalsocialismo e la Santa Sede2. Roma, 1947. Os rumores acusatórios contra o Pontífice começaram antes do final da guerra. O primeiro, anterior ao conflito, talvez tenha sido o artigo de Emmanuel Mounier, “En interrogeant les silences de Pio XII”, em “Le Voltigeur”, 5 de Maio de 1939. Durante a guerra Bernanos publicou vários artigos acusatórios, recolhidos em “Le chemin de la Croix-des-Ames”, Paris, 1948, e Giovanni Papini em “Las cartas del Papa Celestino VI” substituiu as cartas do Papa real pelas de um Papa imaginário.

[12] Hochhuth, Rolf: “El Vicario”. Barcelona, Grijalho, 1977. Um dos personagens, um padre Riccardo, ousa repreender o Papa e veste a Estrela de David: “Usarei esta estrela na minha batina durante o tempo que Vossa Santidade Usarei esta estrela na minha batina enquanto Vossa Santidade demorar a amaldiçoar o homem que assassina os judeus de toda a Europa como se fossem bestas raivosas…” (p. 277).

[13] Friedländer, Saúl: «Píe XII et le IIIe. Reich». Paris, du Seuil, 1964.

[14] Lewy, Guenther: “The Catholic Church and Nazy Germany”, Nova Iorque, 1964.

[15] Vid. infra, notas 24 e 19.

[16] Katz, Robert: “Black Sabath: A Journey through a Crime against Humanity”. Londres, 1969.

[17] Laqueur, W.: “The terrible Secret”, An investigation into the supression of information about Hitler’s “Final Solution”, Londres, 1980.

[18] Papeleaux, Léon: “Les silences de Pio XII”, Bruxelas, ed. Vokaer, 1980.

[19] Lapide, P.E.: “Rome et les juifs”, Paris, du Seuil, 1967.

[20] Gariboldi, Giogio Angelozzi: “Pio XII, Hitler e Mussolini”, Pólogo de Giulio Andreotti. Barcelona, Acervo, 1988.

[21] Ibidem, pp. 151-152.

[22] Ibidem, p. 158.

[23] Papeleaux, op. cit.; e o artigo «Le Vatican et le probléme juif» (1944-1945), em «Revue d’histoire de la deuxiéme guerre mondiale», nº 124 (Outubro de 1981), ponto central de uma serie de artigos nos números 98, 107 e 115.

[24] Falconi, Carlos: “O silêncio de Pio XII”. Barcelona, Plaza y Janés, 1970.

[25] Ibidem, pp. 36 e sgs.

[26] Ibidem, p. 49. O autor resume a sua interpretação no parágrafo seguinte: “Em suma, porque é que Pio XII não falou? Por uma série de razões, que não são sem dúvida as de um carácter temperamental ou utilitarista como foi aduzido por Hochhuth, mas antes o juízo pessimista que tinha feito sobre a situação em que tinha de atuar (o falta de preparação psicológica dos católicos, especialmente alemães); o julgamento pessimista católicos, especialmente alemães); a convicção de que o comunismo poderia tirar partido do enfraquecimento do nazismo, sobretudo tendo em conta a confiança cega depositada nos seus líderes [comunistas] pelos líderes Aliados; mas, especialmente, a preocupação de assegurar à Igreja, em toda a Europa, a possibilidade de sobreviver e com uma energia tal que possa influenciar, no período pós-guerra, de forma decisiva, o futuro do continente e do mundo inteiro” (p. 99).

[27] Ibidem, p. 362. Mais contundente é a documentação recolhida por Annie Lacroix-Riz, que inclui instruções da Santa Sé ao episcopado polaco exortando-os a colaborar com o ocupante. Lacroix-Riz, A.: “Le Vatican, LÉurope et le Reich de la Premiére Guerre mondiale à la guerre froide”. Paris, Colin, 1996, p. 394.

[28] Chadwick, op. cit. Cap. 9, pp. 198 e sgs.

[29] Ibidem, p. 216.

[30] Blet, op. cit., pp. 95-96.

[31] Ibidem, pp. 203-206.

[32] Cornwell, op. cit., p. 168 e sgs.

[33] Ibidem, p. 281.

[34] Ibidem, pp. 290-291.

[35] Ibidem, p. 330.

[36] Kershaw, lan : “Hitler”. 1889-1936. Barcelone, Península, 1999; e “Hitler”. Madrid, Biblioteca Nueva, 2000. A mesma ausência de referências ao fator papal, na excelente análise dos processos que contribuíram para a tomada do poder pelos nazis, em Bracher, K. L. : “La dictatura alemana”. Génese, estrutura e consequências do nacional-socialismo. Madrid, Alianza Universidad, 1973. 2 volumes.

[37] Vd. número monográfico «Sur les églises pendant la guerre», «Revue d’histoire de la deuxième guerre mondiale», nº 128 (outubro de 1982). E «Eglises et chrétiens dans la deuxième guerre mondiale: la France» (Dir. Montelos, X. de; Louirard, M.; Delpech, E; Bolle, E). Actas do Colóquio de Lyon (Janeiro de 1978). Presses Universitaires de Lyon, 1982.

[38] Lacroix-Riz, op. cit., p. 509.

[39] Falconi, op. cit., p.362.

 

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O autor: Antonio Fernández García [1936 -] é um historiador espanhol. Estudou História na Universidade de Madrid, onde recebeu o seu doutoramento com prémio extraordinário. Começou a sua carreira docente como professor do ensino secundário em Barcelona e Madrid. Depois de leccionar na Universidade de Albano (Estados Unidos) e na Universidade de Valladolid, obteve a cadeira de história contemporânea na Universidade Complutense de Madrid, onde é actualmente professor emérito. É vice-presidente do Instituto de Estudios Madrileños, parte do CSIC. Dirigiu a revista Cuadernos de História Contemporánea. Entre outros cargos, é membro do Comité Espanhol de Ciências Históricas e perito do Conselho de Coordenação Universitária. Publicou numerosos livros de história para o ensino secundário e universitário, assim como mais de uma centena de artigos e vinte livros. A sua especialidade é a história de Madrid na Era Contemporânea.

 

 

 

 

 

2 Comments

  1. Pena tenho que o autor, a quem por aqui vou reconhecendo qualidades de estudioso da coisa, não seja capaz de distinguir “igreja católica” de Cúria Romana. Parece coisa pouca, mas basta-me para ter o artigo como opinião mais do que História. Pese embora tudo, sempre uma coisa será uma coisa, outra coisa coisa outra.

  2. Parece-me uma ligeireza, para dizer o mínimo, afirmar, a propósito deste artigo, que o professor doutor Antonio Fernandéz García é “um estudioso da coisa”. Este artigo é um muito bem fundamentado estudo sobre as análises à atuação de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial. Em nenhum momento do texto se regista qualquer confusão entre os católicos e a igreja católica, e sobretudo o seu dirigente máximo da altura, Pio XII. Houve milhares e milhares de católicos perseguidos e assassinados pelo regime nazi. Mas, tal como nos dois textos anteriores que publicámos sobre o assunto, a igreja católica, e em particular os seus dirigentes, conheciam sobejamente o que se estava a passar na Alemanha nazi e na Polónia. E também na Croácia. Onde a igreja católica e os frades franciscanos foram ativos partícipes no holocausto que aí se produziu no regime Ustacha da Croácia independente entre 1941 e 1945.

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