REFLEXÕES EM TORNO DO QUE SE PASSA EM VILA NOVA DE MILFONTES E DE UM TEXTO DE ORLANDO MAÇARICO

A minha mulher chamou-me a atenção para uma reportagem sobre Vila Nova de Milfontes. Descreve-me o que viu. Não quis acreditar. Revimos a reportagem em conjunto. Um pesadelo, é o que se pode dizer sobre as imagens que foram visionadas de Vila Nova de Milfontes. Mas um pesadelo que desde há anos tem vindo a acontecer e a agravar-se nesta vila, a princesa do Alentejo. Curiosamente no concelho de Odemira, concelho emblemático de muitas gente na manutenção da nova escravatura do século XXI: os imigrantes ilegais sem direito a quase nada mas a produzirem para um país que do outro lado tem a sua juventude, as suas futuras elites,  a embebedarem-se de dia e de noite. Os extremos tocam-se de uma maneira ou de outra, de um lado a pobreza de quem quer sobreviver e do outro a arrogância de quem não sabe ou não quer saber o que é a dignidade de viver.

Do ponto de vista das autoridades pelos vistos pouco ou nada há a fazer, para além de estar a militarizar a vila com guardas a cavalo, a cortarem o silêncio de quem dadas as agruras da vida precisa de descansar, precisa de se deitar enquanto com os cavalos pela noite dentro andam a abafar o ruído de quem dispõe de todo o tempo para da vida se gozar. A vida é uma festa, pensam estas hordas de jovens maioritariamente dos 14 aos 18 anos.

Questionei um amigo meu, L.B., sobre isto e ele diz-me que a culpa é do governo, porque é próprio da juventude fazer coisas erradas. É próprio do governo impedir que as façam! Fiquei abismado com a resposta. Quanto a esta resposta direi pura e simplesmente que o tempo de juventude é tempo de grande crescimento mas crescimento intelectual, diremos com Hegel, é tempo de sofrimento e neste caso é o tempo em que os jovens têm de aprender sobretudo a dominar as suas pulsões, sobretudo a perceber e a endogeneizar que nem tudo lhes pode ser permitido e que muita coisa lhes pode e deve ser exigido. No fundo, conhecimento é sinónimo de maturidade e de disciplina intelectual e emocional.

Sobre esta questão da consciência do que se faz e não faz tomemos por analogia o que nos diz Marx. Diz-nos deste que o capitalismo é o sistema mais evoluído de que há memória, porque a sua dinâmica assenta no desenvolvimento das forças produtivas e entre estas está o desenvolvimento das capacidades de trabalho dos trabalhadores, e através dela a sua capacidade de ter uma consciência de classe – a sua disciplina no trabalho e a sua consciência de classe: a consciência em si e para si da classe operária. Fora desta lógica está o lúmpen proletariado O mesmo deve ser transposto para a ideia de juventude: um tempo de crescimento e em que se ganha consciência e maturidade pela obtenção de direitos e de cumprimento de deveres. Sem estas duas características estamos também apenas a criar lúmpen estudantes. E o lúmpen estudante está para o estudante que o país precisa como o lumpemproletariado está para a classe operária. Esta, parafraseando Hegel e Luckacs,  é tanto uma classe em si,  no que profissionalmente ela é, como nas suas condições de vida efetivas, e uma classe operária em ação, uma classe politicamente consciente dos seus direitos, da sua força enquanto classe, uma classe para si. Muitos dos estudantes de hoje são maioritariamente lúmpen-estudantes, não são um grupo em si, profissionalmente não há obrigações, e muito menos são um grupo social para si, por falta de uma situação em si, por incapacidade criada de serem coletivamente outra coisa que não lúmpen. Lamento dizê-lo. Os exemplos estão à vista com, por exemplo, as praxes académicas ao nível dos estudantes universitários e Milfontes ao nível dos estudantes do secundário e isto para não me perder em exemplos..

De onde vêm estes bandos, a que grupos sociais estas hordas meio selvagens pertencem? A passarem férias burguesas no mês de Julho em Vila Nova de Milfontes antes de no mês de Agosto irem para paragens ainda mais finas, da classe operária não vêm certamente e a gente polida pelo dinheiro e de estatuto social considerada educada não se porta assim. Trata-se, ao que nos dizem, de filhos de gente da média e alta burguesia, trata-se de filhos da elite da sociedade portuguesa de Lisboa, Cascais e Oeiras.. Num país onde o elevador social, próprio de uma democracia efetiva, está desde há décadas avariado, por ação intencional dos mecânicos do PS, PSD e CDS, os filhos das elites de hoje são seguramente as elites de amanhã e por aqui, pela amostra de Vila Nova de Milfontes ou pela fraude das avaliações na Universidades, ficamos a perceber a muito maior falta de classe dos nossos governantes de amanhã e a temer o que deles se pode esperar para dirigir o país. .

Quanto à resposta do meu amigo, seja então, por hipótese dele, a culpa do governo, mas esta é uma hipótese sem consistência, porque por detrás do governo está um povo que o elege, e cada povo tem o governo que merece. No caso em questão, sendo estes jovens gente que ainda não vota, são maioritariamente os seus pais e avós que o elegem… E a pergunta a fazer então é pois onde andam os pais e os avós destes jovens que se vagueiam noites inteiras pelas ruelas de Milfontes, destruindo o que encontram pela frente? Onde está a responsabilização do que acontece?

Dir-me-ão em defesa da ausência dos pais na formação destes jovens que estes últimos ocupam demasiado tempo nas escolas, Bom, esta é uma das vias de explicação mas mesmo aqui… isto é, o estudante de hoje caracteriza-se por uma falta sistemática de disciplina mental, por incapacidade em estar horas a estudar, por incapacidade em compreender e expor raciocínios formais longos, incapaz de exposições articuladas mas capazes de uma forte exigência de facilitismo em exames. Este tipo de estudante é o que maioritariamente temos estado a criar. Por culpa dos estudantes? Não, eles são o produto social daquilo que a sociedade lhes faz ou exige e exiges-lhes pouco e cada vez menos. Dos professores? Não, esses são obrigados pelo sistema e se quiserem sobreviver, a tomarem enquanto professores o papel de ensino como uma função secundária: a principal é publicar, é criar o seu rating para não correrem o perigo ou de não renovação de contrato ou de não ascenderem na carreira.

O que temos assistido é ao desmantelamento das escolas públicas e vamos acelerar esse processo no ensino secundário com a reforma que irá entrar em vigor no próximo dia 1 de Setembro em que o ensino se irá reduzir às “aprendizagens essenciais”. Quanto ao Ensino Superior o seu desmantelamento está em curso, desencadeado a partir da institucionalização das Universidades privadas, no tempo de Cavaco Silva em que era mais fácil abrir uma Universidade privada do que abrir uma tasca, desmantelamento este depois acelerado com a reforma de Bolonha e a finalizar agora sob a égide do PS com a digitalização do Ensino Superior, que está a ser promovida pelo ministro Manuel Heitor e muito defendida pelos nossos reitores.

Dito de forma mais simples: o que acontece em Vila Nova de Milfontes deve-se a uma dupla demissão dos pais, demissão como educadores-formadores, e demissão como eleitores.

Somos levados a concordar com Orlando Maçarico quando este nos diz no texto seu intitulado

Um “pot-pourri”ou o “estado da nação “”:

“Agrava tudo isto, naturalmente, o acontecer em um Portugal socialmente letárgico, de “não inscrição “.

Realmente, “somos um povo em que a opinião pública, na sua forma prática, na sua forma democrática, na sua forma política, não existe” e para quem “a própria ideia de educação moral perdeu valor “.

“O crescimento da apatia política, a perda do interesse e do compromisso político e uma ampla retirada da população no que se refere a participar na política institucionalizada, são testemunhos do desmoronamento dos alicerces remanescentes do poder do Estado “(” já não há salvação através da sociedade “).

Socialmente assistimos, ainda entre nós, ao enfraquecimento dos controlos sociais e culturais estabelecidos pelas famílias, escolas, clubes sociais, colectividades recreativas, igrejas (observa-se um claro declínio no papel desempenhado pelos sistemas religiosos formais, pelas igrejas, na sociedade ocidental- Steiner- a dramática apostasia da sociedade ocidental).” Fim de citação.

Boa leitura do texto de Orlando Maçarico e vejam a reportagem sobre Vila Nova de Milfontes, disponível aqui.

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