Pontos de vista sobre o défice e a teoria monetária moderna – 2. STEPHANIE KELTON: «Para garantir o pleno emprego, abandone-se o mito do défice»

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Nota do editor:

Uma mini-série de três textos sobre o défice e as propostas da teoria monetária moderna:

  1. O mito do défice por Michael Roberts.
  2. Para garantir o pleno emprego, abandone-se o mito do défice, por Stephanie Kelton
  3. Ou garantimos o emprego ou o desemprego, por Pavlina Tcherneva

FT

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2. STEPHANIE KELTON: «Para garantir o pleno emprego, abandone-se o mito do défice»

 

Entrevista publicada por  em 11 de Abril de 2021 (ver aqui)

 

Stéphanie Kelton © Wikimedia

 

Alguns chamam-lhe “a mulher que valia triliões”. Professora de economia na Universidade Stony Brook em Nova Iorque e líder da MMT (Teoria Monetária Moderna), Stephanie Kelton aconselhou os senadores democratas do Comité Federal do Orçamento durante cinco anos, antes de se juntar à equipa criada por Joe Biden para conciliar o seu programa com o de Bernie Sanders. Desde então, tem aconselhado o Líder da Maioria do Senado Chuck Schumer e numerosos legisladores democratas [1]. De acordo com os e-mails que recebe deles, a sua contribuição tem sido essencial para a mudança de mentalidade que parece ter ocorrido em Washington no que diz respeito aos défices públicos e à utilização do instrumento monetário para financiar planos de apoio massivo  à economia. No seu livro The Deficit Myth, traduzido do inglês para Les Liens qui libèrent, ela desconstrói de forma pedagógica e didática os principais mitos económicos relacionados com a moeda, a dívida e os défices. O leitor é convidado a realizar uma “revolução copernicana”, compreendendo que a despesa pública é um excedente para o sector privado; a economia não é limitada pelas finanças, mas pelos fatores de produção; a impressão de dinheiro é uma forma eficaz de garantir o pleno emprego. Perante a crise do coronavírus e a emergência climática, a MMT está a desfrutar de um sucesso crescente no outro lado do Atlântico. Poderiam estas lições ser aplicadas na Europa? Entrevista de Chris (PolticoboyTX) em 19 de Março de 2021.

 

LVSL – Começa o seu livro rejeitando a noção de que o governo deve gerir o seu orçamento como uma família, como um “bom pai”. Pode explicar porque é que isto está errado, porque é que não devemos pensar numa família quando falamos sobre o orçamento do Estado?

Stephanie Kelton – Temos de nos certificar de que estamos a falar de um Estado que tem soberania monetária. Se for esse o caso, então seria errado comparar esse governo a uma família ou imaginar as finanças públicas sujeitas ao mesmo tipo de restrições que as de uma família. A grande diferença é que o governo é o emissor de moeda e o resto de nós somos utilizadores de moeda. Se compreendermos isso, o outro ponto-chave a retificar é a sequência. Nós temos esta conceção errada de que o Estado funciona como uma família. Que para gastar deve primeiro encontrar dinheiro, tributando-nos ou pedindo-nos dinheiro emprestado. E que só pode gastar dinheiro depois de o ter obtido. A MMT pretende colocar esta sequência na ordem correta. Trata-se de explicar o verdadeiro processo. Para que possamos compreender que o governo deve primeiro gastar o seu dinheiro ou torná-lo disponível de alguma outra forma antes que o resto de nós possa utilizá-lo para pagar impostos ou comprar títulos do governo. Por isso, as despesas públicas devem vir primeiro. O emissor estatal não é limitado pelas receitas fiscais ou pela contração de empréstimos. O emissor pode gastar primeiro e depois preocupar-se com quanto dinheiro gastou, quantos dólares ou ienes ou libras tem de devolver, e quanto pode deixar no sistema ou transformá-lo em obrigações do Estado.

 

LVSL – Infelizmente, a França já não tem a sua própria soberania monetária. Ouvimos frequentemente esta referência ao bom pai de família ou à dona de casa por parte dos nossos líderes, principalmente para justificar cortes na despesa pública. No contexto francês, seria sensato comparar o governo com uma família ou ainda tem reservas sobre isso?

Stephanie Kelton – As limitações são claramente diferentes e a margem de manobra política, a capacidade de despesa de um Estado emissor de moeda é maior do que a de um governo que não emite a sua própria moeda. A França assemelha-se mais ao estado da Flórida, que não emite a sua própria moeda. O governo da Flórida pode aumentar os impostos, mas as suas receitas são limitadas. Se gasta mais do que as suas receitas permitem, tem de pedir emprestada a diferença. Dito isto, penso que é importante perceber que na zona Euro, o BCE é o emissor da moeda. E neste momento, o BCE está a apoiar os governos dos estados-membros, como tem feito desde o início da crise Covid-19. De certa forma, de uma forma importante, restaurou a soberania monetária dos países da zona euro. O BCE disse: “Assumam dívidas, não vamos deixar que os rendimentos explodam como em 2010, vamos manter as taxas de juro baixas, vamos fazer programas pandémicos de emergência, vamos comprar os títulos do Estado, vamos permitir que tenham um défice significativo, e não vamos deixar que os mercados financeiros vos castiguem como em 2010“. Por isso, de momento, existe margem de manobra política. Os Estados não devem gritar “Não posso fazer nada“, porque neste momento podem. A questão é quando é que o BCE irá retirar o seu apoio orçamental.

 

Existe uma vantagem muito clara e convincente na anulação da dívida dos Estados europeus detida pelo BCE.

 

LVSL – Tem havido um aceso debate em França sobre o cancelamento da dívida pública dos Estados detida pelo BCE. Alguns economistas, como Thomas Piketty, ou think tanks, como o Instituto Rousseau, apelaram ao cancelamento, argumentando que não terá impacto nos mercados, uma vez que a dívida já é detida pelo BCE, e que libertará espaço para novas despesas, uma vez que o rácio da dívida diminuirá, limitando assim o risco de futuras subidas das taxas de juro e a imposição de novas medidas de austeridade. Alguns economistas de esquerda objetaram que os défices não são um problema, que o nível da dívida é sustentável uma vez que os Estados estão a contrair empréstimos a taxas negativas. Segundo eles, apelar ao alívio da dívida seria politicamente prejudicial porque centraria a atenção na dívida e não nas medidas de estímulo do governo para ajudar à recuperação. Tem uma perspetiva sobre este debate?

Stephanie Kelton – Há dois aspetos. Li o artigo de Paul De Grauwe. Já o leu? Se não, deve lê-lo, porque De Grauwe está envolvido neste debate e ele é uma voz influente. O seu desenvolvimento não tem em conta o aspeto mais óbvio, que é o aspeto político. Ele construiu o seu argumento de um ponto de vista puramente económico. Ele explica que o cancelamento da dívida não faz nenhuma diferença, porque uma vez que o BCE tenha comprado a dívida, é como se o governo nunca a tivesse emitido em primeiro lugar, porque se paga os juros e depois o capital e depois o BCE devolve o dinheiro ao governo. Por isso diz que não faz qualquer diferença, que não há necessidade de cancelar a dívida, que esta já está efetivamente cancelada quando o BCE a compra. Penso que ele, De Grauwe, se está a esquecer de um aspeto muito importante, que é a questão política envolvida em tudo isto.

Pelo contrário, penso que Piketty não esquece o aspeto político. Na mente das pessoas a dívida não desapareceu. A dívida da Itália ainda se aproxima dos 170% do PIB, e enquanto esse número for mencionado na imprensa, as pessoas internalizam a ideia de que a Itália ultrapassou de longe os limiares estabelecidos pelo Tratado de Maastricht e pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. E se o BCE decidir fazer o que foi feito à Grécia antes e disser: “Muito bem, ponha o seu orçamento em ordem, reduza o seu rácio de endividamento para 60%“, então estaria a impor uma pesada austeridade. Assim, é melhor anular a dívida do que deixá-la constar do balanço dos Estados, relatá-la na imprensa e falar sobre ela correndo o risco de se transformar num pretexto para impor a austeridade. Do meu ponto de vista, há uma vantagem muito clara e convincente em anulá-la completamente. Em vez de dizer, como fez Paul De Grauwe, “não temos de a abolir, ela já desapareceu“. Não desapareceu na mente de muitas pessoas que usarão a existência desta dívida como uma arma para exigir o regresso das políticas de austeridade.

 

LVSL – Voltemos aos Estados Unidos e aos aspetos teóricos da MMT. Mencionou na sua primeira resposta que era importante compreender bem o processo de emissão de moeda e de financiamento do Estado. Usando o exemplo do pacote de estímulo Covid de Biden de 1.900 milhares de milhões de dólares, pode explicar os mecanismos de financiamento e de onde vem esse dinheiro?

Stephanie Kelton – O dinheiro vem da votação do Congresso. Os votos financiam as despesas. O Congresso aprovou uma série de planos de apoio desde Março de 2020, quando aprovámos a Lei CARES que disponibilizou 2,2 milhões de milhões de dólares. É a isso que chamamos um ato legislativo “limpo”, um projeto de lei limpo. Sabe que eu trabalhei no Senado. Chamamos-lhe um projeto de lei limpa porque é apenas um conjunto de instruções a dizer: “Vamos gastar 2,2 milhões de milhões de dólares e é assim que vai ser gasto”. Estas instruções são transmitidas ao Banco Central dos EUA (Fed). O Fed, enquanto agente orçamental, é responsável pelo pagamento em nome do Tesouro de todos os pagamentos autorizados pelo Congresso.

Portanto, quando se diz de onde vem o dinheiro, ele vem de uma destas coisas, vem do Fed. Assim, o Fed faz os pagamentos que foram autorizados pelo Congresso em nome do Tesouro, e fá-lo utilizando nada mais do que um teclado de computador para creditar as contas bancárias apropriadas. Se eu tiver direito a um cheque de $1400, recebo os $1400 na minha conta bancária e o meu banco recebe um crédito de $1400 da Reserva Federal. Tudo é digital. Esta é a era moderna: fabricamos moeda com a ajuda de um computador.

 

LVSL – E em que momento entram em jogo os bilhetes do Tesouro, se não financiam a despesa pública?

Stephanie Kelton – O projeto de lei dá um conjunto de instruções. Diz ao Fed: “Preparem-se, estamos a encomendar 2,2 milhões de milhões de dólares “. Mas como o governo gasta mais do que cobra em impostos, essa diferença torna-se o que é comummente chamado o défice. Prefiro chamar-lhe despesa líquida – a diferença entre o que é adicionado e subtraído. Quando o governo tem um défice no orçamento, isso significa que o governo está a colocar dólares na economia, no sistema financeiro. Mas quando se verifica um défice, digamos de 3 milhões de milhões de dólares, que foi o défice de 2020 nos Estados Unidos, o governo compensa o défice através da venda de obrigações. Se houver um défice de 3 milhões de milhões  de dólares, vendemos 3 milhões de milhões  de dólares de novas obrigações do Tesouro. Então o que acontece se o défice governamental injetar 3 milhões de milhões  de dólares no sistema, e o governo retirar 3 milhões  de milhões de dólares e substituí-los por 3 milhões de milhões  de dólares em obrigações do Tesouro? É como se o governo gastasse as obrigações do Estado e fizesse o seu pagamento utilizando uma moeda que rendesse juros chamada títulos do Tesouro americano.

 

LVSL – Há algum risco, talvez não para os EUA, mas digamos para um país como o Reino Unido, se se envolvesse neste tipo de despesas deficitárias em grande escala e emitisse um grande número de obrigações? Isso arriscar-se-ia a um aumento das suas taxas de juro ou a uma depreciação da moeda?

Stephanie Kelton – Antes de mais, o Reino Unido já o está a fazer, tem vindo a produzir pacotes de estímulo Covid um atrás outro, tal como os EUA. Se ler Richard Murphy, que é um antigo conselheiro do governo trabalhista e escreve frequentemente sobre estas questões, ele olha para isto com muito cuidado. Ele escreve e explica que o Banco de Inglaterra (BoE) comprou de volta cerca de 94% de todos os Gilts (títulos do Tesouro britânico, nota ed.) emitidos desde Março de 2020. Por outras palavras, eles já estão no cenário que está a postular. Mas uma das características mais importantes, do ponto de vista da MMT, é que o governo do Reino Unido nunca precisa de pedir libras emprestadas a ninguém para as gastar. Porque deveria? É o emissor da moeda. É apenas contabilidade interna. Ele gasta libras e depois substitui algumas dessas libras por títulos da dívida pública – obrigações com juros – mas o Banco de Inglaterra compra de volta a maioria delas. O objetivo da venda de obrigações não é financiar o governo, uma vez que no momento em que as obrigações são emitidas, as despesas já se realizaram.

 

LVSL – Explica no seu livro que o governo não tem necessariamente de emitir obrigações do Estado para compensar esta criação monetária. Mas se emitir uma grande quantidade delas, poderá isto enviar um mau sinal ao mercado e causar uma desvalorização da moeda, um colapso da taxa de câmbio?

Stephanie Kelton – Eu diria algo diferente. As obrigações são dinheiro. O governo é o emissor de dois instrumentos. No livro falo de notas verdes (dinheiro – papel-moeda, moedas ou dinheiro eletrónico) e notas amarelas (obrigações ou bilhetes do Tesouro). Se eu sou o governo dos EUA, emito notas verdes e notas amarelas, e posso escolher a quantidade de cada que emito. Não preciso de ninguém para comprar o meu papel amarelo, é um presente meu para si se eu escolher oferecê-lo. É apenas um dólar que vence juros. Dou-lhe juros, é um subsídio. Os juros que pago tornam-se os seus rendimentos. Assim, o governo britânico não tem de emitir Gilts, não tem de vender papel amarelo, pode simplesmente gastar e deixar as libras no sistema. Cabe então ao banco central escolher se paga juros sobre os saldos de reserva acumulados, ou seja, é uma decisão de política monetária. O que as obrigações fazem é livrar-se de parte do dinheiro que o défice público criou. Assim, se tiver um défice de 3 milhões de milhões de dólares e vender 3 milhões de milhões de dólares em títulos, está a fazer uma escolha para substituir o papel verde por papel amarelo. Essas obrigações vencem juros, pelo que se está a aumentar o valor desses dólares.

 

“Os títulos do governo são um presente para os ricos.”

 

Agora, chegamos à questão do que acontece com a taxa de câmbio. Irá diminuir por causa de mais despesas governamentais? Talvez. Mas veja-se o Japão. Simplesmente não temos provas fortes de que exista uma relação entre a dimensão do défice e a taxa de câmbio. O Japão tem tido um grande défice governamental nos últimos 30 anos, tem a maior dívida do mundo, o seu rácio da dívida em relação ao PIB é de 250-270%. Estive no Japão no Verão de 2019, falei com legisladores e falei na Dieta (Parlamento do Japão). Todos estavam preocupados com o valor do iene: “O iene está demasiado forte, o iene está demasiado forte”. Três décadas de grandes défices e a sua preocupação é que a sua moeda está demasiado forte! O que estou a dizer é que é preciso ser muito prudente antes de assumir que imprimir dinheiro e aumentar o défice leva a um colapso da moeda ou a uma queda na taxa de câmbio. Isso não funciona dessa forma.

 

LVSL – A Teoria Moderna Monetária (MMT) afirma que o limite não é orçamental, não é o nível da dívida mas sim a inflação, e propõe diferentes ferramentas para controlar a inflação, tais como a taxa de imposto e a garantia de emprego. Pode explicar como funcionaria a garantia de emprego e como é diferente da forma tradicional de utilizar a taxa de desemprego para controlar a inflação, a abordagem NAIRU (Non Accelerating Infaltion Rate of Unemployment) utilizada pelos bancos centrais?

 

 Stephanie Kelton – Claro. Deixem-me dizer uma coisa primeiro, porque penso que há muitos mal-entendidos sobre como a MMT iria combater as pressões inflacionistas. Muita gente diz que a solução preconizada pela MMT é aumentar os impostos. Não é esse o caso. Isto não é correto, absolutamente. Se ler o artigo do Financial Times de Scott Fullwiler e Nathan Tankus, eles explicam como a MMT combate a inflação. E quero que fique registado que, para combater a inflação, é preciso saber de onde ela vem. E neste momento, o que o Fed está a fazer é seguir uma única política que combate qualquer inflação da mesma maneira: aumentando as taxas de juro, assumindo que isso funciona de alguma forma contra todas as pressões inflacionárias. Desde logo, não funciona. Em segundo lugar, taxas de juro mais elevadas poderiam levar a uma inflação mais elevada. Esta é uma das ideias-chave da MMT que ninguém compreende. O pensamento convencional assume que o aumento das taxas de juro combate a inflação, enquanto que a MMT diz que o aumento dos juros pode ser a causa do aumento da inflação. Mencionou a NAIRU. De facto, a forma como o Fed tem funcionado durante décadas é olhar para a taxa oficial de desemprego e dizer: “Bem, imaginamos que existe uma taxa natural de desemprego e se deixarmos a taxa de desemprego cair demasiado baixo, a inflação começa a acelerar”. Esta abordagem ecoa à curva de Phillips e a esse tipo de noções. Os bancos centrais dizem: “Penso que a NAIRU é provavelmente de 5%, por isso, se o desemprego se aproximar dos 5%, começo a preocupar-me, se o vir descer para 4,8% – 4,9%, entro seriamente em pânico porque penso que a inflação está prestes a acelerar. Por isso, aumento a taxa de juro”. A MMT diz que deve haver uma melhor forma de lidar com as pressões inflacionistas, uma forma que não envolva manter milhões de pessoas reféns do desemprego.

Quando se diz: “Há demasiadas pessoas a arranjar emprego: isto é mau, temos de parar com isso”, como é que se pode parar com isso? Tentando aumentar a taxa de juro. A MMT diz, “Vejamos, podia-se usar o pleno emprego como âncora de preço, e fá-lo através desta ideia de emprego no serviço público ou garantia de emprego em que se cria uma opção pública no mercado de trabalho. E ancora-se o preço de um bem na economia, de um serviço, da mão-de-obra. E poderia dizer-se que queremos que esse preço corresponda a um salário decente e que inclua um regime de indemnização, um salário e benefícios sociais. E qualquer pessoa que gostasse de ter esse pacote de medidas poderia tê-lo. Se não gosta do seu trabalho porque o seu chefe está constantemente a mudar os seus horários e nunca sabe o seu horário de um dia para o outro e não pode organizar a sua assistência às crianças… pode demitir-se.

“O desemprego custa caro e todos nós suportamos o custo. Poderíamos eliminá-lo com a garantia de emprego.

 

Se o seu chefe o estiver a assediar sexualmente no escritório, pode demitir-se. Se não conseguir encontrar um emprego no sector privado, ainda terá uma oferta de emprego ao abrigo deste programa. Os benefícios são muitos. O flagelo do desemprego é social e económico. Quer dizer, meu Deus! O desemprego é caro. É preciso muito dinheiro para manter o aparelho institucional que lida com o desemprego, as agências de emprego, todos os programas sociais existentes para compensar os baixos rendimentos e para combater a pobreza. O desemprego é caro, todos nós suportamos o custo. Podemos eliminá-lo.  Tudo o que temos de fazer é disponibilizar emprego público a qualquer pessoa que o solicite. A partir desse ponto, tem um novo e poderoso estabilizador automático em funcionamento, por isso, quando a economia atravessa o seu habitual ciclo de expansão e de quebra, em vez de expulsar milhões de pessoas do trabalho, quando a economia abranda e entra em recessão, essas pessoas podem ser imediatamente absorvidas pelo programa de garantia de emprego. Mantêm um emprego, os seus rendimentos são assumidos ao abrigo do programa, os seus benefícios são mantidos e fazem algo de útil para a sua comunidade.  Não é necessário dizer-lhes: “Oh, não tem emprego, porque não se muda para ali, para aquela cidade? “. Podem ficar onde estão, na sua comunidade com os seus amigos, onde está a sua família. E criou empregos e trabalho para eles. Coloca-se um limite à descida dos seus rendimentos, truncando a recessão, a recuperação começa mais cedo, e à medida que a economia recupera, os trabalhadores podem voltar a ter emprego no sector privado. E a vantagem de o preço ter uma âncora é que os empregadores dispõem de uma reserva de trabalhadores ativos à qual podem recorrer para contratar trabalhadores, ao contrário do que temos agora, que é uma reserva passiva de desempregados. Janet Yellen e Jerome Powel preocupam-se com o efeito do desemprego de longa duração: os empregadores não gostam de contratar os desempregados, preocupam-se com a deterioração dos seus hábitos de trabalho e das suas competências. Com a garantia de emprego, as pessoas podem manter um emprego e preservar as suas competências. E estão prontos e disponíveis para o sector privado quando este começar a contratar novamente.

 

LVSL – Já respondeu parcialmente à minha próxima pergunta. Alguns criticam a garantia de emprego por não ser suficientemente transformadora, por não pôr em causa a relação de forças entre capital e trabalho. Mas salientou o facto de que competiria com o sector privado garantindo empregos de certa qualidade, o que permitiria a um trabalhador recusar ou deixar um mau emprego. No entanto, é de admirar o apoio de alguns do mundo financeiro à MMT. Pessoas como o economista chefe da Goldman Sachs, como o HSBC, ou alguém como o bilionário Ray Dalio (gestor do fundo privado de cobertura Bridgewater Associates) defendem as reivindicações centrais e a lógica da MMT. Isto poderia ser tomado como um sinal de que a MMT não ameaça a estrutura de poder, a estrutura de propriedade dos meios de produção, e não afeta a distribuição do poder entre o capital e o trabalho…

Stephanie Kelton – Espere! Quando digo que a MMT demonstra que o Estado não precisa de empréstimos para financiar o seu défice, quem pensa que está mais em risco? A resposta é claramente Wall Street. Porque estamos a explicar que ao compensar o seu défice com empréstimos, com a venda de títulos do Tesouro, o governo está a dar um enorme presente a pessoas que já têm dinheiro. É por isso que Warren Mossler chama aos bilhetes do Tesouro um UBI, um “rendimento universal dos obrigacionistas”. Ele diz: “São apenas subsídios para pessoas que já têm dinheiro”. Uma forma de as pessoas que já têm dólares os trocarem por mais dólares, por dólares que se tornam maiores com o tempo através dos juros. Os financiadores não correm nenhum risco, não precisamos deles, estas pessoas não são o centro do mundo. Mas no sistema atual, tratamos os detentores de obrigações como reis. Os mercados financeiros estão no comando. Se Wall Street decidir que já chega, que o défice governamental está a ficar demasiado grande, podem bloquear tudo. Entrando em greve de investimento, com fuga de capitais e assim por diante. Portanto, estamos supostamente num mundo em que dependemos dos ricos. Precisamos do dinheiro deles para financiar o Estado, não podemos alimentar uma criança esfomeada ou consertar uma ponte desmoronada sem os tributarmos para pagar por isso. A premissa é que precisamos dos detentores de obrigações do governo e temos de ser cuidadosos e responsáveis na forma como lidamos com as finanças públicas, porque se enfurecermos Wall Street, eles podem fechar tudo, parar a economia… A MMT entra e diz: Tretas! Não precisamos destas pessoas.

 

“Os ricos, Wall Street e os financeiros não correm riscos, não precisamos deles, eles não são o centro do mundo. “

 

E deixe-me dizer-lhes umas palavras sobre Ray Dalio, porque escrevi uma crítica ao seu livro de três volumes sobre a crise da dívida, e tenho vindo a segui-lo há vários anos. O que ele escreveu foi sobre as forcas caudinas, as forças que humilham. As forcas caudinas estão a chegar! Dalio é um dos poucos ultra-ricos em Wall Street que diz que há demasiadas desigualdades. “Foi-se longe demais e se não fizermos algo para fazer melhorias materiais às classes médias e populares para melhorar as suas condições de vida, elas virão atrás de nós”. Ele tem medo. Ele teme o que isto significa para a democracia. Está preocupado com o que aconteceria se dezenas de milhões de pessoas saíssem à rua e se voltassem contra o sistema, contra o capitalismo. Assim, na medida em que ele valida a MMT, é porque reconhece que a MMT permitiria um sistema mais humano e social que cuidasse melhor das pessoas que realmente sofrem economicamente e que, se não o fizermos, pessoas como ele vão acabar no outro lado das forcas caudinas.

 

LVSL – Usou anteriormente o exemplo do Japão para responder à questão da taxa de câmbio. E o seu problema de deflação? A MMT tem uma visão diferente sobre como sair desta situação deflacionária, que alguns economistas receiam que possa acontecer na Europa?

Stephanie Kelton – Há trinta anos que combatem a pressão deflacionista, desde o colapso do mercado imobiliário. Gostariam de ter uma inflação de 2%, mas não podem chegar a 2%. Se conseguem 1%, já estão satisfeitos. Consideramos que o que eles pensam estar a fazer bem para ajudar a impulsionar a economia e a aumentar a inflação é contraproducente. Pensam que estão a carregar no pedal do acelerador, mas na realidade estão a carregar nos travões sem o saberem. Desde há duas décadas que recorrem à flexibilização quantitativa (QE), e não conseguem atingir o seu objetivo de 2% de inflação. A dada altura, alguém deveria perceber que não funciona, não? As taxas de juro zero ou negativas não funcionam dessa forma.

Assim que o Japão comece a utilizar a política orçamental para apoiar o crescimento, obterão resultados. Mas depois veem o défice subir, entram em pânico e aumentam o imposto sobre o consumo (IVA). E cada vez que o levantam, entram em recessão. Essa é uma das razões pelas quais lá fui em 2019, a convite de legisladores e membros do governo japonês. Diziam-me que “o nosso governo está prestes a aumentar novamente o IVA. Pensamos que se trata de um erro”. Formaram um grupo de estudo, invocando a MMT no parlamento, disseram…   “não devemos fazer isso, a MMT diz-nos que…” por isso disseram-me “Venha proferir uma palestra sobre a MMT no parlamento para os membros do governo”. Isto foi antes da votação para esse aumento de impostos. Eles disseram “Ajude-nos a parar isto” e eu disse “Ok, eu vou e faço o que posso”. Dei conferências de imprensa nacionais durante dois a três dias, diante de centenas de repórteres, durante longas horas. Disse-o tantas vezes e de todas as formas possíveis: não aumentem a taxa do IVA! Aumentaram-na e a economia começou a abrandar.

 

LVSL – A flexibilização quantitativa (QE) provoca frequentemente um medo de inflação. Contudo, também tem sido praticada na Europa e nos Estados Unidos sem produzir este resultado.

Stephanie Kelton – As pessoas veem o QE como uma ferramenta de apoio monetário. Os economistas da MMT nunca viram o QE como um estímulo monetário. Então, quando Bernanke anunciou que ia começar a seguir o Japão e a fazer QE por volta de 2009, nós dissemos: “Porquê? E escrevi: “Não vai funcionar da maneira que pensa” porque a QE é apenas uma troca de ativos, retiram-se todos os títulos, derivados e Tesouros do balanço do sector privado e substitui-os por reservas de dinheiro. É desse modo que o FED efetua uma compra. Compra as obrigações e credita a conta de reserva do vendedor. Assim, agora o Fed detém os títulos do Tesouro e os derivados, que vencem juros, pelo que o Fed recupera todos esses juros que teriam ido para o sector privado. O Fed recolhia 60 a 90 mil milhões de juros anuais e entregava-os ao Tesouro todos os anos. Trata-se de receitas que teriam sido auferidas pelo sector privado e que foram retiradas como se tivessem sido tributadas. A QE funciona como um imposto. Retira todos os rendimentos de juros e substitui-os por dinheiro sem juros. Existe, portanto, uma tendência deflacionista. Esperam que ao fazer isto, se reduzam as taxas de juro de longo prazo e talvez as pessoas queiram pedir empréstimos e gastar mais porque as taxas de longo prazo irão descer. Talvez refinanciem os seus empréstimos e libertem o fluxo de caixa, talvez gastem um pouco mais, talvez se obtenha um efeito de riqueza. Era disso que Bernanke estava a falar. Isto é, levar as pessoas a procurar retornos financeiros mais elevados, e por isso a comprarem outras classes de ativos. Os preços dos ativos sobem e obtém-se um efeito riqueza, por isso as pessoas que veem a sua riqueza subir gastam mais. Esse era o objetivo declarado. Mas não produziu o aumento do consumo que se esperava, o consumo que se supunha vir desse efeito riqueza. A QE não levou a um grande boom de investimento; na sua maioria parecia um placebo [2]. Foi assim que analisámos a QE do nosso lado, na MMT.

 

LVSL – A MMT preconiza gastos diretamente na economia, utilizando estímulos orçamentais em vez da política monetária convencional?

Stephanie Kelton – A política monetária convencional, que consiste simplesmente em baixar a taxa de juro, funciona encorajando as pessoas a endividarem-se. Pela sua conceção, é assim que funciona. Baixa-se a taxa de juro porque se quer que alguém peça emprestado e gaste. Mas quando alguém pede emprestado, tem uma dívida. Sou um utilizador de moeda, por isso se pedir dinheiro emprestado para comprar uma casa ou um carro, sim, estou a estimular a economia com os meus gastos. Mas sou obrigado a reembolsar esses empréstimos. A política orçamental funciona através da geração de receitas para as pessoas, o que é muito diferente. O Congresso vai distribuir cheques de $1400 às pessoas, mais $300 em subsídios de desemprego por semana a pessoas à procura de emprego e $3000 por criança às famílias. É dinheiro gratuito que lhe chega diretamente e sem qualquer contrapartida. Portanto, é muito diferente. Mencionou anteriormente o aspeto psicológico, o efeito comportamental. Pode imaginar que o impacto de uma política orçamental será muito diferente do impacto de uma política monetária tradicional. A psicologia do consumidor é diferente quando se lhes dá um cheque em vez de um empréstimo.

 

Notas

[1] N.T. Para mais referências sobre Stephanie Kelton, ver wikipedia, aqui.

[2] N.T. Relembre-se que “placebo” é uma substância que não tem ação curativa mas produz um efeito terapêutico se o doente a tomar convencido de que é um medicamento realmente eficaz.

 

 

 

 

 

 

 

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