Otelo Saraiva de Carvalho e o espírito do 25 de Abril (1/3). Por Júlio Marques Mota

 

Coimbra, em 4 de Agosto de 2021

 

Nota de editor:

Em virtude da extensão do presente texto, o mesmo será publicado em três partes


 

1ª parte – Imagens pessoais sobre o 24 e o 26 de Abril de 1974

 

Meu caro amigo

Diz-me como reação ao meu texto sobre Otelo Saraiva de Carvalho(ver “Na morte de Otelo Saraiva de Carvalho”, aqui) :

A sua narrativa, sobre Otelo, peca a meu ver, por não caraterizar o que é (foi) o espírito de abril. E, esta ausência, facilita a sobreposição e confusão do espírito abrilista/ revolucionário/progressista/comunista, com o espírito popular/nacional/democrático de abril. Se bem se lembrar, recordará que tal espírito se foi metamorfoseando ao longo do processo revolucionário, originando as desavenças no MFA.

Sendo assim, e tendo-se o herói afastado dos processos democráticos, natural é que na hora da partida, perdesse o direito ao respeito e luto nacional, por ambos exigirem unanimidade”.

No que diz respeito ao espírito de Abril, aos sonhos do Abril de 1974 precise-se, oferecer-lhe-ei uma resposta longa, muito longa, não em termos do espírito do 25 de Abril mas tendo em conta que na minha opinião caminhamos para uma versão mais suave do 24 de abril, falaremos dos sonhos que na mesma linhagem de 1974 poderemos ter hoje, neste país à beira mar prantado face a uma sociedade desejada para o futuro. Para este efeito utilizarei longamente uma obra que considero de leitura quase que obrigatória, Eurotragedy, de Ashoka Mody [1], e na base deste livro espero ter redefinido para hoje o que terão sido os sonhos que o 25 de Abril permitiu, a que chamamos o espírito do 25 de Abril. Uma resposta longa como se vê e espero, meu querido amigo, que se sinta esclarecido quanto ao meu ponto de vista, concordando-se ou não com ele, o que aqui é menos relevante.

Antes disto, no seu conjunto binário de adjetivos

Espírito abrilista/ revolucionário/progressista/comunista versus o espírito popular/nacional/democrático de abril

tomo a liberdade de retirar o adjetivo nacional por se poder confundir com nacionalismo e direita reacionária e acrescentaremos a palavra revolucionário como comum aos dois conjuntos de termo. Diremos, talvez com desagrado seu, que os dois conjuntos durante algum tempo se sobrepuseram e com alguma razão para tal. A população na rua terá levado a sobrepor os dois conjuntos agora redefinidos. Primeiro e muito simples: as massas nas ruas, onde eu também participei, transformaram o que era concebido para ser um golpe militar numa revolução. Segundo, o poder caiu, gerou-se um vazio em termos de poder e os militares foram mais sustentados pelo poder do apoio popular do que pelo poder da força das armas. Nessa passagem, é claro que os capitães de Abril foram de uma capital importância, procurando ordem onde se tinha instalado a desordem, o que é natural na fase inicial de qualquer revolução. Não há revolução a regra e esquadro e muito menos quando esta é pacífica. Terceiro, nas ruas, nas manifestações, nas universidades, nos campos, o povo português mostrou quais os seus anseios, mesmo que muitas das vezes o tenha feito de uma forma que à luz de hoje e também de então pode não ter sido a mais correta. Mas manifestou-se nesse sentido. E isto tanto pode ser considerado progressista como pode ser chamado popular, uma vez que todos os anseios manifestados teriam a ver contra o que a oligarquia até dominante tinha praticado durante décadas. Onde a questão se pode complicar é quanto aos termos democrático e comunista porque no plano histórico poderão ser considerados antinómicos enquanto no plano da teoria a palavra comunismo pode ser uma extensão da palavra democrático, um aprofundamento dos valores da Democracia, possível somente em estádios muito avançados da Democracia mas até agora não alcançados. Dito isto nas palavras de Marx, do jovem Marx, dos Grundrissen, quando o elevadíssimo desenvolvimento das forças produtivas entrava em confronto e contradição com as relações de produção e apropriação. De resto, não acredito que alguém tenha pensado em estabelecer aqui, em 1974, um regime de tipo comunista. Mas reconheço que na situação portuguesa pode dar origem a fortes debates até por uma outra razão de sentido oposto: face ao vazio criado no dia 26 de Abril e à existência de um Portugal profundo facilmente mobilizável pela ultradireita, não sei se sem uma dinâmica de suporte ao espírito do 25 de Abril criada pelas gentes militantes ou simpatizantes do PC, o Movimento das Forças Armadas se teria aguentado pós a sua fase inicial.

Note-se que me situo nos termos que por si são propostos com os dois conjuntos de adjetivos. Tal como se diz economia social de mercado (os ordoliberais alemães) as gentes de esquerda dos anos 60 falavam, alguns morreram por isso mesmo, de socialismo de rosto humano. Lembra-se da Primavera de Praga e de Dubcek? A necessidade da humanização dos sistemas, do capitalista, por um lado e o termo social quer dizer isso mesmo, e do socialismo reinante então, por outro, e de rosto humano quer dizer isso mesmo.

 

1. Imagens pessoais sobre o 24 e o 26 de Abril de 1974

No dia 25 de Abril Portugal-nação encontrou-se na situação de nação sem Estado- o vazio a este nível. Face aos parâmetros da época diríamos que as exigências das massas populares empurravam o Estado para uma gestão socialista. Ora o Estado era então materializado pelo conjunto dos capitães de Abril, imediatamente secundado depois por franjas culturalmente evoluídas. Curiosamente, estava-se perante o cenário do socialismo no quadro de um só país, tema muito debatido desde há décadas, mas mais uma vez num país muito atrasado, de fraco desenvolvimento das forças produtivas, impossibilitado, portanto, de responder de imediato a muitas das ambições populares dinamizadas no clima de euforia das ruas.

 

Dou aqui e de forma rápida alguns exemplos do fraco desenvolvimento das forças produtivas, aqui encaradas pela estrutura educacional da sua população, pela sua capacidade de formação de capital, pelos níveis de produto per capita, pela evolução da sua produtividade, pela sua estrutura de repartição do rendimento, etc.

Exemplo 1. 1972

Em 1972 numa amena tarde de primavera o ministro do Interior Gonçalves Rapazote decide “um golpe” interno, decide criar uma situação que levaria à demissão do ministro progressista de então no Governo: Veiga Simão. Com o pretexto de manifestações no ISEG manda avançar a tropa de choque contra os estudantes. Por sorte, à minha frente, junto ao portão de entrada pela Miguel Lupi o Prof Francisco de Moura não foi morto: o cassetete de um polícia ia no ar e rachar-lhe-ia a cabeça quando o comando grita: Esse não, esse não! Sublinho esse não. Estávamos normalmente em aulas. Antes da polícia chegar estava numa aula com o professor Joaquim Lourenço sobre Economia Agrária, com quem eu me dava muito bem fora da Faculdade, mais tarde secretário de Estado da Agricultura de um governo PSD. Depois da história com Francisco Pereira de Moura a polícia avança armada contra os estudantes que se refugiam, debalde, dentro do edifício do ISEG. Desse ataque, eu saio muito ferido, com a cara partida e o sangue a escorrer-me pela boca. Sou levado para a PIDE para interrogatório. Como era impossível obter uma só palavra que fosse, estava com a cara partida, levaram-me para o Hospital S. José.

Alguém informou a minha mãe, uma velha camponesa que não sabia ler nem escrever mas que ninguém enganava nas contas do que precisava. No dia seguinte vai à mercearia do Zé Ferrador, comprar bolos regionais para trazer para Lisboa. Possivelmente seria  broas de mel, de que eu gostava muito e que para neutralizar o doce eu as comia com azeitonas. Mal sabia ela que eu fiquei com a boca toda aramada. Na mercearia encontra-se  aí com uma prima dela e minha. Essa minha prima tinha um filho, professor primário que sofria de grave doença na época, epilepsia dita então de grande mal e quem o ajudava na grande cidade de Lisboa, era eu. Naturalmente, filho do mato que eu era, desenrascava-me melhor que ele na selva que para nós era  Lisboa. Isto dito assim, para precisar que não havia nenhuma animosidade entre nós. Essa minha prima insulta a minha mãe dizendo que eu devia é estar preso. Era um indigno da terra, Fratel, era um perigoso comunista!.

Esse ódio ao termo comunista vigorou intensamente durante muito tempo e independentemente do que quer que a pessoa fosse por esse Portugal profundo, rural, arcaico. Neste caso, um pacato estudante, calmamente  em aulas, é transformado num perigoso comunista. Como se mostrou depois do 25 de Abril este era o estado mais que normal no interior do país, um verdadeiro “pasto” político para os incendiários do ELP e do MDLP e outros movimentos de extrema-direita, como se veio a provar.

 

Exemplo 2.

Depois de operado no Hospital de S. José tenho alta e volto para casa. Morava na Gomes Freire em frente à Judiciária. Um dia depois de estar em casa recebo um telefonema de V.N. pedindo-me apoio para um colega nosso, (CC) de linha maoista que não tinha onde ir dormir pois a PIDE esperava-o à porta de casa. Cedi-lhe um sítio para dormir, explicando que aquele não era um momento seguro para este tipo de coisas. Imediatamente a seguir pedi a um amigo meu, técnico na função pública, que me dispensasse um quarto na sua casa de campo, junto a uma das praias da Costa, praia do Rei, creio eu.

Colocado aí, este meu amigo maoista, era preciso alimentá-lo, era preciso levar-lhe a alimentação. Ora o que mais me faltava era dinheiro. Fui-me arranjando sobre esta matéria, a minha namorada de então e mulher depois até agora ia levar-lhe a comida. Assim fomos andando gerindo as dificuldades e o tempo ia passando. Aqui levantaram-se-me dois tipos de dificuldades. Em plena Primavera uma rapariga apanhar o autocarro que ia da Costa da Caparica à Fonte da Telha e sair do autocarro a meio do caminho com uns sacos e meter-se por uma vereda, seria algo de muito suspeito. Uma situação que não podia continuar e que punha em perigo a vida dos intervenientes nesta história. Adicionalmente comecei a ficar aflito com a falta de dinheiro e então dirigi-me ao seu irmão, um importante dirigente associativo de linha política do PC, dando-lhe conta de que não era possível financeiramente estar a pagar as despesas de alimentação do seu irmão. E a resposta é tão espantosa que ainda hoje me dói o coração quando me lembro disso: NÃO TENHO NADA A VER COM ISSO!

A situação tornou-se insuportável, numa história longa que não vale a pena aqui relatar, e o meu amigo maoista foge para o estrangeiro. Vem o 25 de Abril e regressa. Uma das primeiras coisas que fez é vir ter comigo para me agradecer o que foi feito e querer-me pagar. Nessa altura já trabalhava, tinha um ordenado e respondi-lhe: fiz o que devia e até onde podia, fazes agora o que deves fazer e cabe-me dizer-te: o que fiz, fi-lo por ti, fi-lo por mim, fi-lo também pelos nossos amigos comuns, o Tó, o Mariano, o V. Nogueira mesmo que não tenham nada a ver com a tua linha política, e, se calhar, fi-lo também pelo meu país. Já não sou o estudante sem cheta que eu era. Tenho um  ordenado e dá-me para viver. Não me deves nada.

Este pequeno relato dá-nos uma ideia do que era a esquerda estudantil naquele tempo. Tratava-se da sobrevivência do irmão face aos esbirros do inimigo comum, a PIDE, e a resposta foi: não tenho nada a ver com isso. Ideias na esquerda, neste tipo de esquerda, havia muitas, muitas mesmo, sentimentos, poucos, muito poucos. E ideias sem sentimentos não sei o que é. O mundo real era uma coisa, o mundo de ideias por estes radicais de esquerda sustentado e imaginado era outra e talvez estes dois mundos não se comunicassem entre si.

Ora os grupos maoistas eram diversos (muitos) e digladiavam-se tanto entre eles como entre eles e o PC, em que os militantes do PC eram considerados o inimigo principal, os ditos sociais-fascistas. Não sei se as denúncias eram recíprocas, mas o clima era este, um clima de ódio que se tornou muito mais feroz depois de Abril na conquista da adesão das massas populares ou na sabotagem do trabalho dos outros. Do meu ponto de vista estas movimentações políticas eram perigosos atrasos na movimentação de massas, como se viu depois e não sei mesmo se não deram azo a múltiplas provocações, que só eram úteis à direita. Isabel do Carmo dizia há dias que havia muitas coisas que era preciso saber quem as fez e a mando de quem é que as fez. E acho que tem toda a razão. Muita dessa gente, possivelmente, terá estado agora a apontar o dedo acusador a Otelo.

 

Exemplo 3.

Nos tempos do PREC havia uma Instituição, suponho chamar-se Fundo de Fomento à Exportação, sediada no prédio dito das franjinhas, de projeto do arquiteto Nuno Teotónio Pereira, situado entre a rua de Braamcamp e a rua Castilho, que tinha como função apoiar o comércio externo português. Um dos quadros superiores da instituição contou-me na altura a seguinte história: na linha de apoio da URSS à economia portuguesa havia uma grande encomenda de ferragens e de torneiras. Era preciso reunir vários produtores e repartir a produção. As negociações para a repartição da referida encomenda foram tão demoradas e difíceis que os soviéticos desistiram da mesma. Muito mais tarde soube do encerramento de uma das fábricas de referência nestes materiais, a OLIVA, em S. João da Madeira. Mas o exemplo mostra a incapacidade empresarial do nosso tecido industrial no que diz respeito à sua reorganização produtiva face às novas exigências dos mercados assim como é exemplo da impotência do Estado no seu papel de coordenação das estruturas produtivas. Continuaram voltados para o passado e agarrados aos seus privilégios.

 

Exemplo 4. Ano letivo de 1974

Os cursos do ISEG foram rearranjados face à pressão dos estudantes. Até aqui tudo bem. Arranjaram-se módulos temáticos. Organizou-se o primeiro módulo em aulas teórico-práticas que contou com a presença de Samir Amin. Haveria pelo menos mais um outro módulo sobre o problema das economias de transição. Viria alguém do estrangeiro para dar orientação ao módulo e fazer um seminário de entrada, alguém da equipa de trabalho de Charles Betelheim, da École Pratique des Hautes Études (EPHE), especialista em problemas de economias em transição. Não se passou do primeiro módulo e quanto à avaliação deste primeiro módulo, em muitas das turmas foi feita de mão no ar! Na turma sob a minha responsabilidade não foi assim. Como se isso não chegasse os alunos da minha turma conseguiram que se rearranjassem os coeficientes de ponderação de modo que os “trutas” da turma não saíssem prejudicados. Em suma uma pequena burguesia à deriva a querer correr à procura do primeiro emprego antes que fosse tarde demais! Muitos destes alunos, já diplomados, terão sido daqueles que na Praça de Londres ao verem as Comissões de Trabalhadores fugiam para as casas de banho. Mas hoje as coisas não seriam aí muito diferentes. Percorram-se hoje os curricula das Faculdades de Economia em Portugal e a conclusão é imediata: tal como ontem, os conhecimentos de contabilidade e gestão dos licenciados em economia é diminuta e não estando estas licenciaturas à altura das urgências postas, o mesmo é dizer que são então de valor próximo de ZERO. Procurem em quantas licenciaturas deste país um curso de economia tem no curriculum como obrigatórias uma disciplina anual de Contabilidade a sério, uma anual de economia de empresa, uma semestral de contabilidade analítica, uma semestral de fiscalidade e uma de gestão financeira. E não nos esqueçamos que somos um país dotado sobretudo de muitas pequenas e algumas médias empresas. Tudo dito, ontem como hoje, afinal, a capacidade de resposta dos licenciados é equivalente, isto é, quase nula.

 

Exemplo 5.

Em 1974 ou 75, não me lembro bem, sou convidado a ir a um plenário de trabalhadores de uma grande fábrica americana de pneus, hoje pertença de japoneses, creio eu. Éramos três estudantes do ISEG, com um deles afeto ao PC e os outros dois, entre os quais eu, independentes. Combinou-se que eu não falaria, por ter uma dicção complicada. Falariam eles. Pois bem, com partidos por detrás ou não, os outros dois meus colegas simplesmente faltaram. Ia ficando bloqueado pelo medo ao ver-me com tanta gente à minha frente. Como tinha de falar muito alto, os problemas de dicção terão aí sido mais ou menos abafados.

Neste plenário fiz uma intervenção explicando o que se tinha passado no Chile e deixei uma mensagem que terá sido mais ou menos a seguinte: o país precisa de construir uma nova ordem de relações de produção, precisa da produção, precisa que os trabalhadores tenham consciência de quanto o país precisa do fruto do seu trabalho. Cerrem-se fileiras, cerrem-se os portões da fábrica à antiga administração, organize-se a produção mas não se deixe de produzir. Não cair como no Chile deve ser um imperativo. Bem mais tarde, Jean-Pierre Chevènement deu uma outra formulação a esta ideia e com muito mais força: não cair como no Chile, não trair como em Portugal.

Repare-se neste último exemplo: fora dos partidos não havia organização sustentada da classe operária mas… dos partidos, no plural, só havia um, no singular, e este chamava-se PC. O resto era a extrema- esquerda de que falei acima e o PS que neste campo ainda contava muito pouco, tal como ainda hoje, só depois é que iria crescer, sobretudo no setor serviços. E o seu crescimento fazia-se sobretudo a partir do conflito com o PC e com este a debater-se contra o PS e a forte oposição das diversas correntes da esquerda radical, sobretudo os maoistas. Este exemplo mostra igualmente que as estruturas organizativas dos trabalhadores ainda eram frágeis e não davam para tudo, o que ainda sob pressão da extrema-esquerda ou da extrema direita nela infiltrada dava azo a muitas atitudes ultraesquerdistas e ultrarreacionárias.

 

Estes 5 exemplos são apenas imagens breves do Portugal de outrora. É neste enquadramento em que é claro o fraco desenvolvimento das forças produtivas, dito também, fraco desenvolvimento económico, social, cultural e de governança, que temos os capitães de Abril a assumirem o poder que talvez não tenham querido assumir; quis o povo nas ruas que estes o assumissem e assim foi. É certo que estes capitães de Abril contaram com o entusiasmo das populações e, tão importante quanto isso, contaram com o apoio das elites esclarecidas que vinham desde os meios socialistas aos meios católicos mais ou menos com muitas influências do marxismo. Muitos deles a terem passado pela Juventude Universitária católica, a JUC.  É assim que se organizam linhas de médicos a apoiarem o Portugal profundo, chamado o Serviço Médico à Periferia, é assim que se organizam com os militares sessões de esclarecimento sobre o que é a Democracia, as chamadas campanhas de Dinamização Cultural do MFA, é assim que se organizam campanhas de alfabetização e de educação sanitária de 1974 a 1976, é assim que se constituem grupos de apoio à reforma agrária, é assim que se organizam em torno de Nuno Portas, Nuno Teotónio Pereira e Siza Vieira movimentos de recuperação de habitações para gente em dificuldade e até mesmo de construção de bairros populares, é assim que se reorganizam alguns serviços de apoio social a crianças e velhos. De entre esta gente relembro alguns dos meus alunos e amigos, Joaquim Feio, Francisco Tavares, Pedro Ferré, Antonina Lima, José Veiga, Teresa e Adelaide Duarte com estes três ligados ao SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local, e também, creio eu, ao Fundo de Fomento da Habitação e a procurarem responder à pergunta muito pertinente de então: “Podemos nós, hoje, aceitar que com tantas casas sem pessoas haja cada vez mais pessoas sem casa?”

Em resumo, tanta coisa humanamente bela que foi feita nesse período.

É neste enquadramento em que é claro o fraco desenvolvimento das forças produtivas que temos a obrigação de perspetivar o trabalho dos capitães de Abril e é neste sentido que entendi a necessidade de contextualização referida no texto de Ramalho Eanes. É também neste enquadramento que devem também ser analisados os zizagues políticos de muitos dos capitães de Abril e não é mesmo de excluir que muitos desses zizagues se devam a necessidades sentidas de responder (erradamente como se viu) aos obstáculos que lhes eram criados pela direita e não só por ela. É nesse sentido que escrevi o texto sobre Otelo. Talvez eu esteja errado mas não o creio.

Falei de fraco desenvolvimento das forças produtivas, isto é, de fraco desenvolvimento quer ao nível da formação da mão de obra quer ao nível da estrutura do capital, quer ao nível da estrutura organizacional da sociedade. Como indicadores de referência para o desenvolvimento das forças produtivas, tomemos o valor do produto per capita, a sua taxa de crescimento e, sobretudo, as taxas de crescimento do emprego e da produtividade assim como a evolução da repartição entre salários e lucros.  Nota-se que a taxa de crescimento da produtividade é, neste caso, extremamente importante porque reflete tanto variações na estrutura de capital e de inovação tecnológica como na formação da mão-de-obra, na organização empresarial e na governança pública. Em todos estes indicadores são centrais os investimentos do país em termos de ensino, formação e investigação, sublinhe-se.

Curiosamente a análise que a seguir faremos, centrada nesta temática, parece-nos tanto mais relevante quanto o atual governo português se prepara para fazer o caminho inverso pela mão tanto do ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues como do ministro do Ensino Superior Manuel Heitor. Estes dois ministros preparam-se para serem os coveiros, e por muito tempo, da qualidade do ensino público em Portugal, uma vez que as más reformas são fáceis de aplicar mas os seus efeitos nefastos podem levam décadas a anular. O primeiro, por um simples despacho, o n.º 6605-A/2021, determina, a partir do próximo dia 1 de Setembro, que todos os programas até agora em vigor, do 1º ao 12º ano, serão substituídos por “aprendizagens essenciais”, Como assinala Santana Castilho, “o menor denominador comum, do qual seria expectável que tentássemos afastar todos os alunos, passa a ser o Santo Gral para que devemos conduzir todos. Eis o desígnio da “escola inclusiva”, caritativamente grátis para quem não puder pagar ensino privado”. O segundo, Manuel Heitor, prepara-se, depois do desastre total que é a reforma de Bolonha, depois de um segundo desastre que foram estes dois anos de ensino superior à distância  e respetiva avaliação, prepara a digitalização do ensino superior. Como assinala a jornalista Joana Pereira Bastos:

“Há uma transformação profunda a ser preparada no ensino superior: menos horas de aulas, lições gravadas e ouvidas à distância a qualquer hora do dia ou da noite, encontros presenciais na universidade sobretudo para discutir ideias e desenvolver projetos e cursos com currículos flexíveis, cada vez mais desenhados em função do mercado de trabalho e dos interesses de cada aluno. A revolução foi precipitada pela pandemia, mas tornou-se inevitável para responder às exigências de uma sociedade em acelerada mudança e de uma nova geração muito distinta das anteriores.” Nessa linha assinala o reitor (com r minúsculo): “Não podemos continuar a dar as aulas como fazemos há 50 anos, porque hoje lidamos com jovens que são nativos digitais e que têm uma mentalidade completamente diferente”, frisa Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra.” Fim de citação.

 

Tomando agora como central o desenvolvimento das forças produtivas e neste o papel que assumem os investimentos públicos e privados em ensino, formação e investigação, sublinhemos que é aqui também importante saber qual a evolução da repartição uma vez que esta, refletindo a repartição dos ganhos do progresso, dos avanços tecnológicos, reflete o caminho percorrido ou não para a estabilidade social.

Seja y o produto per capita, l a taxa de crescimento do emprego e  a taxa de crescimento da produtividade. Por definição a taxa de crescimento do produto é igual à soma da taxa de crescimento do emprego (dL/L) com a taxa de crescimento da produtividade π, ou seja, y=l+ π. A taxa de crescimento da economia é assim vista como o resultado de duas variações, a da variação da taxa de emprego e a da variação da taxa de produtividade. A variação da repartição do rendimento criado dá-nos uma ideia do nível do consenso social na repartição dos frutos do crescimento.

 


NOTA

[1] Ashoka Mody, “Eurotragedy, a drama in nine acts”, Oxford University Press, 2018.

 

 

 

 

 

 

 

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