Afeganistão, entre a reescrita da História e a História real – “Quando os jihadistas eram nossos amigos”, por Denis Souchon

 

Nota de editor

No seguimento dos textos que têm vindo a ser publicados sobre o Afeganistão em A Viagem dos Argonautas, publicaremos agora uma série de oito textos que são sobretudo um retrato histórico das intervenções estrangeiras naquele país desde o século XIX:

  1. Quando os jihadistas eram nossos amigos. Por Denis Souchon
  2. Afeganistão: como o Ocidente aí tropeçou sempre e partiu os dentes. Por Antoine Perraud
  3. A história é uma velhota que se repete sem cessar. Por Eça de Queiroz
  4. Afeganistão, os anos da djihad: Abdallah Azzam o homem que popularizou a guerra santa (1/4). Por Jean-Pierre Perrin
  5. Afeganistão, os anos da djihad: Na toca dos seguidores, a criação da Al Qaeda (2/4). Por Jean-Pierre Perrin
  6. Afeganistão, os anos da djihad: Atacar o inimigo distante ao abrigo das montanhas (3/4). Por Jean-Pierre Perrin
  7. Afeganistão, os anos da djihad: A família Haqqani a melhor amiga e pior inimiga da CIA (4/4). Por Jean-Pierre Perrin
  8. Nas raízes do Estado Islâmico no Afeganistão. Por Jean-Pierre Perrin

Este primeiro texto – Quando os jihadistas eram nossos amigos – de 2016, que resume as posições manifestadas pela imprensa francesa na década de 1980, revela-se de uma extrema ironia face às de hoje. Mostra, sobretudo, que a guerra conduzida durante os últimos vinte anos pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN estava submetida aos seus interesses estratégicos (o mesmo se poderia dizer das intervenções anteriores de outros países), desprezando as consequências dos apoios que prestaram aos ditos rebeldes. Estes derivaram em organizações fundamentalistas, radicalizadas, que nada têm que ver com a imagem, de certo modo idílico, que a imprensa (francesa e não só) oferecia nos anos de 1980 sobre os ditos moujahedines afegãos.

O primeiro texto desta série apresenta pois a curiosidade de ser uma reescrita da História, feita pelos media franceses e o mesmo se passou por outros espaços geográficos, ao sabor dos interesses do complexo político-militar americano e da sua geopolítica. O primeiro texto descreve-nos uma história idealizada para satisfazer esses mesmos interesses e nessa idealização da história participam jornais franceses importantes, jornalistas importantes. Gente notável, sublinhe-se. Os restantes textos descrevem-nos a História real das lutas no Afeganistão e sobre um período de muitas décadas. E aqui levanta-se uma séria questão: onde está a famosa independência dos media quando estes vivem do poder que eles próprios sustentam?

FT

Em tempo: Dada a sua relevância, acrescentámos a esta série um artigo de Caitlin Johnstone de 30 de Agosto – Perguntas com base nos novos relatos segundo os quais foram forças dos Estados Unidos que abateram civis depois da explosão de Cabul -, que se interroga sobre a autoria do abate de civis no decurso do atentado no aeroporto de Cabul.


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Quando os jihadistas eram nossos amigos

Os afegãos: de heroicos de ontem a bárbaros de hoje

 por Denis Souchon

Publicado por  em Fevereiro de 2016 (Quand les djihadistes étaient nos amis, ver aqui)

 

Durante um período entre a contundente derrota dos EUA na Indochina (Abril-Maio de 1975) e os colapsos em cadeia nos países europeus satélites da União Soviética (nomeadamente na Polónia, onde foi declarado o estado de emergência em Dezembro de 1981), os EUA e a Europa Ocidental imaginaram – ou fizeram crer – que Moscovo tinha lançado uma grande ofensiva global. Em África, Angola e Moçambique, recentemente independentes, pareciam estar a abrir-lhes os braços; na América Central, os guerrilheiros marxistas derrubaram uma ditadura pró-americana na Nicarágua; na Europa Ocidental, um partido comunista pró-soviético conduziu a política de Portugal, membro fundador da Organização do Tratado do Atlântico Norte, durante alguns meses. A invasão do Afeganistão pelo Exército Vermelho em Dezembro de 1979 parecia marcar uma fuga em frente por Moscovo. Esta invasão abriu uma nova etapa na Guerra Fria entre os dois blocos. A luta dos mujahedines afegãos (“combatentes da fé empenhados na jihad”) vai aparecer como providencial no combate às ambições hegemónicas da União Soviética. E, muitas vezes, a ser celebrada à maneira de uma epopeia.

«Afeganistão: a cavalo contra os tanques russos !», par Cyril le Tourneur d’Ison, Le Figaro Magazine, 16 Janeiro 1988.

 

Não importava que quase todos estes combatentes tratados como heróis fossem tradicionalistas, mesmo fundamentalistas, muçulmanos. Nessa altura, a religião não era necessariamente vista como um fator de regressão, a menos que se opusesse, como no Irão, simultaneamente aos interesses estratégicos ocidentais. Mas este não é o caso na Polónia católica, mimada pelo Papa João Paulo II, antigo bispo de Cracóvia, nem, é claro, no Afeganistão.

Consequentemente, uma vez que a prioridade geopolítica é que este país se torne para a União Soviética o que o Vietname foi para os Estados Unidos, uma narrativa mediática quase única irá, durante anos, exaltar os mujahedines, apresentando a sua revolta como um chouannerie [N.T.] simpática, ligado à sua fé. Em particular, retratava-se o lugar e a vida das mulheres afegãs através do prisma essencialista, ingénuo (e por vezes encantado) das tradições populares.

O mundo é fantástico. A sua alma pode ser lida nos seus rostos”, ensaio fotográfico de Julio Donoso, texto de Guy Sorman com a colaboração de Pascal Bruckner, Revista Le Figaro, 20 de Setembro de 1986.

Olhando para trás, trinta e cinco anos mais tarde, para este discurso geral e as suas imagens empáticas que são abundantes na imprensa francesa – desde a revista Figaro até ao Nouvel Observateur – permite-nos medir até que ponto quase tudo o que suscitava admiração quando se tratava de popularizar a luta contra o “império do mal” (a União Soviética segundo Ronald Reagan) se tornou desde então uma fonte de repulsa e terror. Entre 1980 e 1988, as façanhas dos “combatentes da fé” contra o Exército Vermelho eram aplaudidas. A partir da década seguinte, os seus primos ideológicos na Argélia (o Grupo Islâmico Armado, GIA), depois no Afeganistão (os Talibãs), e mais recentemente no Médio Oriente com a Al-Qaeda e a Organização do Estado Islâmico (OEI), foram retratados como “fanáticos”, “loucos de Deus”, “bárbaros”.

Certamente, os mujahedines dos anos 80, que não cometiam atentados no estrangeiro, diferem em vários aspetos importantes dos militantes do GIA argelino ou dos membros da OEI. Contudo, também não é menos verdade que o Afeganistão tem servido frequentemente como um cadinho e incubador para os seus sucessores. O jordano Abu Musab al-Zarqawi, considerado o “pai” da OEI, desembarcou ali quando o Exército Vermelho se estava a retirar e aí permaneceu até 1993. Osama Bin Laden, o fundador da Al-Qaeda, foi enviado pelos serviços secretos sauditas para Peshawar, Paquistão, para apoiar a luta dos mujahedines. O argelino Mokhtar Belmokhtar, cujo grupo, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMi), que acaba de reclamar a responsabilidade pelo ataque ao hotel Splendid em Ouagadougou, Burkina Faso, também lutou na caça aos aliados afegãos da União Soviética no final dos anos 80; depois, regressou à Argélia durante a guerra civil e combateu juntamente com o GIA (os argelinos com a mesma origem foram chamados “afegãos”) antes de se juntar à Al-Qaeda. Estes, e muitos outros, foram bem recebidos pelo Ocidente desde que servissem os seus objetivos estratégicos. Depois viraram-se contra o Ocidente. A imagem que a imprensa europeia ou americana deu das suas motivações, do seu extremismo religioso e da sua ferocidade mudou então de alto a baixo.

 

1. Aliados estratégicos do Ocidente

A 3 de Fevereiro de 1980, algumas semanas após a intervenção militar da União Soviética no Afeganistão [1], Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança do Presidente norte-americano James Carter, visitou o Paquistão. Dirigindo-se aos refugiados mujahedines do outro lado da fronteira, ele promete-lhes: “Aquela terra ali é vossa. Um dia voltará a ser vossa porque a vossa luta triunfará. Depois regressarão às vossas casas e às vossas mesquitas. A vossa causa é justa. Deus está do vosso lado.

O discurso mediático francês sobre o Afeganistão irá então favorecer o objetivo geopolítico americano.

Dever de ingerência

“Temos de pensar, temos de aceitar que, como todos os combatentes da resistência no mundo, os afegãos só podem vencer se tiverem armas, só podem vencer tanques se tiverem metralhadoras automáticas, só podem vencer helicópteros se tiverem os Sam-7, só podem vencer o exército soviético se tiverem outras armas (…) que não as que conseguiram tirar ao Exército Vermelho, em suma, se o Ocidente, mais uma vez, concordar em ajudá-los. (…) Vejo que hoje nos encontramos numa situação que não é muito diferente da Guerra de Espanha. (…) Em Espanha, havia um dever de ingerência, um dever de intervenção. (…) Creio que hoje em dia os afegãos só têm hipótese de triunfar se aceitarmos interferir nos assuntos internos afegãos.

Bernard-Henri Lévy, jornal da noite da TF1, 29 de Dezembro de 1981

Bernard-Henri Lévy apoiará com o mesmo fervor a intervenção ocidental no Afeganistão após os ataques de 11 de Setembro de 2001 [2].

Como nos dias da Resistência Francesa

“Para permitir aos afegãos falar com afegãos, uma vez que os franceses falaram com os franceses durante a ocupação da França, o Comité dos Direitos Humanos decidiu ajudar a resistência afegã a construir uma estação de rádio no seu território: a Rádio Kabul Libre. Há ano e meio atrás, a 27 de Dezembro de 1979 (…), uma das principais potências mundiais tinha acabado de invadir um país vizinho fraco e indefeso. (…) As velhas espingardas saíam dos cofres, as pistolas de debaixo dos fardos de palha. Mal armada, a resistência cresce”.

Marek Halter, Le Monde, 30 de Junho de 1981

Aqui, Marek Halter refere-se a uma conhecida frase do Chant des partisans, o hino da Resistência Francesa: “Tirem da palha as espingardas, as metralhadoras, as granadas “.

A luta de todas as vítimas do totalitarismo

“A luta dos afegãos é a de todas as vítimas do totalitarismo comunista e fascista.”

Jean Daniel, Le Nouvel Observateur, 16 de Junho de 1980

 

“Tal como em Berlim, como em Budapeste, o Exército Vermelho disparou”.

“Alá Akbar” (“Deus é o mais grande”), “Shuravi [os russos] fora”: muçulmanos e não-comunistas, os Kabulis não se esqueceram. Na sexta-feira, 22 de Fevereiro, pretendiam manifestar-se, com a bandeira verde do Islão à cabeça, contra a presença do exército soviético, que consideravam insuportável. Nessa manhã, como em Berlim Oriental e Budapeste, o Exército Vermelho disparou. (…) Entre Marx e Alá, o diálogo parece impossível.”

Jean-François Le Mounier, Le Point, 3 de Março de 1980

 

Livrar-se do ocupante soviético, preservar uma sociedade de homens livres

“Um olhar de orgulho inacreditável que seria difícil encontrar noutras partes do mundo e que dá uma medida exata da enorme vontade dos afegãos de se verem livres do ocupante soviético, mesmo que os seus meios possam parecer irrisórios.

Patrick Poivre d’Arvor, jornal de Antenne 2, 8 de Julho de 1980

“O que está a morrer em Cabul, sob a bota soviética, é uma sociedade de homens nobres e livres.

Patrice de Plunkett, Revista Le Figaro, 13 de Setembro de 1980

 

Tal como as Brigadas Internacionais, os “afegãos” de França

No Le Monde de 19 de Dezembro de 1984, Danielle Tramard menciona alguns dos franceses que “trabalham com os combatentes da resistência afegã”. Na altura, não havia receio de que estes combatentes estrangeiros regressassem ao seu país “radicalizados” pela experiência da guerra.

“É isto, a amizade Franco-Afegã: um amigo a ajudar o seu amigo. (…) François aprendeu persa, como Isabelle. Este Verão, depois de ter atravessado a fronteira, caminhou durante seis dias, dia e noite, por vezes na lama, a um ritmo bastante estável”.

Claude Corse, por sua vez, dedicou uma reportagem na revista Figaro, a 19 de Dezembro de 1987, aos médicos, agrónomos e engenheiros franceses que estavam a ajudar os afegãos. Com uma referência à Resistência Francesa.

“Bárbaros, turbantes e até um olho feroz: estes afegãos típicos são franceses. Entre eles, um marinheiro bretão especializado nos ventos da Polinésia, que se tornou um agrónomo de montanha por amor a um povo que vive com o vento! (…) Um precioso recurso alimentar, esta árvore da vida [um castanheiro] simboliza a esperança de um povo de irredentistas unidos contra o invasor comunista, pois os pastores corsos de Castagniccia também assim foram, outrora unidos contra os exércitos de ocupação”.

 

2. Exotismo e bonitas paisagens

Derrotar o comunismo soviético não era um objetivo universalmente popular em França. Para que a causa dos afegãos, patriótica mas também tradicionalista, tivesse mais apoio, os principais meios de comunicação social associaram-lhe um desejo de aventura, num paraíso perdido. Tudo isto é ainda mais fácil porque a luta afegã tem lugar num cenário geográfico encantador, com lagos puros que chamam a atenção. As paisagens (e tradições) pitorescas do Afeganistão reenviam a toda uma geração de ocidentais que atingiu a maioridade nos anos 60 para a ideia do país com que os mochileiros sonhavam e por vezes atravessavam no seu caminho para Katmandu. De regresso à natureza, aos verdadeiros valores, às “montanhas cruéis e belas”. O Afeganistão era apresentado como antítese da civilização moderna, materialista e comercial.

«Aqui, Radio- Kaboul livre…», por Bernard-Henri Lévy, Le Nouvel Observateur, 12 de Setembro de 1981.

 

“Esquecemos que é a guerra porque isto aqui é tão bonito”.

“Começa-se como uma história de amor. Quase todos eles já estiveram no Afeganistão. Desde a primeira viagem, existe uma atração definitiva. Descrevem “o lugar por excelência onde se está longe: sem caminhos-de-ferro, sem indústria”. Espaço e liberdade: “Um afegão não olha para ti, não te incomoda”. Isabelle também diz: “Por vezes, esquece-se que é a guerra, isto aqui é tão bonito”.

Danielle Tramard, Le Monde, 19 de Dezembro de 1984

 

“Os mais férteis, os mais coloridos, os mais brilhantes”.

“O Hindu Kush estende-se do nordeste ao sudoeste, com vista dos seus 5.000 metros para os vales mais férteis, os frutos mais bonitos, as roupas mais coloridas, os bazares mais deslumbrantes, e barrando a norte e a sul os desertos de areia dourada”.

Robert Lecontre, Revista Le Figaro, 12 de Janeiro de 1980

 

“A sua barba negra, o seu nariz recortado e o seu olhar

“Impressionante com a sua barba negra, o seu nariz pontiagudo e os seus olhos penetrantes, faz-nos lembrar as aves de rapina. Nascem guerreiros, indiferentes ao esforço, ao frio e à fadiga. São seres à parte, insensíveis à solidão, à fome e à morte. Armadas com velhas espingardas Enfield, modelo 1918, acertam no centro do alvo a 800 metros. A história tem mostrado que nenhum exército de outro lugar, ou mesmo de dentro, foi capaz de os subjugar. (…) É esta acumulação de triunfos, esta hecatombe de inimigos, é o seu orgulho que, ainda hoje, permite que 17 milhões de afegãos acreditem que, em breve, espreitando nos seus covis no Telhado do Mundo, onde Kipling trouxe à vida o seu Homem Que Queria ser Rei, os seus defensores continuarão a ser triunfantes.”

Jérôme Marchand [com Jean Noli], Le Point, 21 de Janeiro de 1980

 

“O que é feito deste cavaleiro de turbante que caminha na neve?

“O que foi feito destes caravaneiros Pachtun, bebericando o seu chá verde numa casa de chá, com a sua espingarda perto; este pastor do Hindu Kush perto de um bebedouro; este cavaleiro de turbante a cavalo a cavalgar através da neve? (…) As dunas gigantes que o vento esculpe em ondas, as ruas de Herat onde o cheiro das rosas inaladas por um homem velho vos impressiona, onde as portas azuladas e paradisíacas das casas dos ricos vos intrigam, onde vos surpreende inesperadamente o a imagem de branco de uma mulher completamente escondida sob o chador plissado e cujo olhar se filtra através da malha de um bordado…”.

Nicole Zand, Le Monde, 9 de Dezembro de 1980

 

“A tenacidade que provém do frio sideral, dos ventos de areia ardente”

“Habituados a viver duramente, os afegãos têm a tenacidade que vem de paisagens austeras, do frio sideral, dos ventos de areia ardente. (…) Há uma harmonia espantosa na nossa pequena comunidade. Durante dias a fio, os mujahedines não se separam uns dos outros e, no entanto, quase nunca há qualquer fricção entre eles. (…) O companheirismo da revolta derruba as hierarquias tradicionais. (…) Qualquer pessoa que se sinta em baixo é rapidamente puxada para cima pelo bom humor e calor do grupo.”

Catherine Chattard, Le Monde, 20 de Maio de 1985

 

3. Combatentes que têm fé

A afinidade entre franceses cada vez menos religiosos, frequentemente mergulhados no liberalismo cultural, e afegãos tradicionalistas, apoiados tanto pela Arábia Saudita como pelo Irão, não é evidente por si mesma. Daí a importância de apresentar os mujahedines como pessoas simples que têm fé e que se agarram aos seus costumes ancestrais e à solidariedade da aldeia. O confronto muitas vezes mortal entre clãs e tribos antissoviéticas é apresentado à maneira da luta solidária e desordenada das aldeias gálicas contra as legiões romanas.

“Estes «afegãos»? Médicos e Engenheiros franceses” por Claude Corse, Le Figaro Magazine, 19 de Dezembro de 1987.

 

Um Islão sem “politização extrema como no Irão, nem excessos de fé “.

“Não misturemos os géneros. Em Teerão, o fundamentalismo corresponde a uma libertação louca dos pequenos povos das cidades após vinte anos de megalomania, desperdício e ocidentalização flagrante. No Afeganistão, é tudo uma questão de tradição, e nada mais que tradição. Sem politização extrema como no Irão, sem excessos de fé. O fervor sempre esteve presente. (…) O povo das montanhas e os empenhados homens do mato ao serviço de Deus têm fé.

Pierre Blanchet, Le Nouvel Observateur, 7 de Janeiro de 1980

“Acredito que a revolução islâmica de Khomeini presta um mau serviço à causa afegã. Mas a resistência afegã não tem o radicalismo dos movimentos revolucionários iranianos, e as correntes sectárias são muito minoritárias.”

Jean-Christophe Victor, Notícias do Afeganistão, Dezembro de 1983

 

Os “combatentes da guerra santa”

“Os afegãos têm a modéstia e o fatalismo que implica uma absoluta confiança na vontade de Alá. Parece que não existe um modo de vida mais atrativo ou uma ocupação mais elevada do que a de um combatente na guerra santa. Aproxima todos eles da vida do Profeta.”

Catherine Chattard, Le Monde, 20 de Maio de 1985

 

Indisciplinados, vaidosos, faladores, mas corajosos

“Como ontem, o mujahedine permanece acima de tudo um camponês ligado à sua terra. Saberá defendê-la tenazmente, mas perderá muitas vezes toda a agressividade se não for ameaçado. (…) As falhas inerentes ao carácter afegão – indisciplina, tendência para a inflação verbal, dificuldade em guardar segredos – não devem fazer-nos esquecer as principais qualidades destes homens. A sua coragem e capacidade de sofrimento são reais e sabem demonstrar, quando necessário, uma audácia notável.”

Patrice Franceschi, Le Point, 27 de Dezembro de 1982

 

“O seu Islão é bem melhor que o comunismo ao estilo soviético”

“Há a oposição indireta e pérfida daqueles que se perguntam se os combatentes da resistência são melhores do que os ocupantes: se o seu Islão não é “primitivo e bárbaro”; se, no final, vale a pena correr o risco de “morrer por Cabul”. Este é o tipo de demissão que estamos a ser convidados a aceitar de todos os lados enquanto os afegãos estão a ser mortos e a pedir ajuda. Face ao seu SOS, temos de proclamar alto e bom som que a resistência dos afegãos contra os ocupantes soviéticos é exatamente como todas as guerras de libertação. (…) Para além do facto de o seu Islão ser bem melhor que o comunismo de estilo soviético e de o primeiro ser tão “globalmente positivo” quanto o segundo, é escandaloso questionar a sua civilização numa altura em que a defendem com o maior heroísmo.”

Jean Daniel, Le Nouvel Observateur, 16 de junho de 1980

 

Um jornalista da ” Figaro Magazine” abraça “de bom grado” o Alcorão

“Antes de qualquer ataque, a oração: uma oração rápida pela qual cada um recomenda a sua alma a Alá. Os combatentes da resistência passam então sob uma bandeira esticada na qual é colocado um pequeno Alcorão. Uns beijam-no, outros curvam-se em fervor. Anayatollah insistiu que eu também realizasse o ritual. Fi-lo de bom grado. É de facto no Islão que o povo afegão se mantém unido e atrai a força moral para resistir. A Jihad (guerra santa) e o carácter islâmico desta resistência pode ser assustadora mas, com raras exceções, não se lhes conhece forma fanática”.

Stan Boiffin-Vivier, Le Figaro Magazine, 5 de Dezembro de 1987

 

4. A espinhosa questão das mulheres

Resistência e coragem, solidariedade comunitária, exotismo e beleza não nos permitem evitar indefinidamente a questão necessariamente espinhosa – especialmente para os franceses cuja consciência política foi transformada pela luta feminista – do estatuto da mulher afegã. Esta dificuldade é tanto mais difícil de negar quanto os comunistas afegãos proibiram o casamento infantil e reduziram a importância do dote. Mas o obstáculo é contornado por um aviso contra uma perceção demasiado ocidental da situação afegã. Explica-se então que certos comportamentos e símbolos mudam de significado quando se muda para outro país. Isto não é errado em si mesmo. Mas tal relativismo cultural deixará de ser válido assim que o combatente “que não se nos assemelha ” for transformado de aliado em adversário.

Imagem extraída do livro de Roland e Sabrina Michaud Mémoire de l’Afghanistan, éditions du Chêne, Paris, 1985.

 

O ”Eurocentrismo total” não ajuda a compreender a condição das mulheres afegãs

“A «opressão» das mulheres é apenas uma peça neste sistema. O eurocentrismo total não nos ajuda a compreender o funcionamento desta sociedade, na medida em que a “opressão” pesa frequentemente tanto nos homens como nas mulheres, no caso de casamento arranjado pelos pais, por exemplo”.

Emmanuel Todd, Le Monde, 20 de Junho de 1980

 

As mulheres são necessariamente cuidadas por outras mulheres

“Uma mulher afegã nunca se permitirá ser examinada por um médico do sexo masculino. (…) Sob as tendas equipadas com o material necessário, as mulheres afegãs, envoltas nos seus véus, continuam a afluir, porque são acolhidas, ouvidas e cuidadas pelas mulheres, e trazem os seus filhos, que muitas vezes têm doenças oculares ou de pele ou de tuberculose.

Françoise Giroud, primeira Secretária de Estado para o Estatuto da Mulher em França, Le Monde, 25 de Janeiro de 1983

 

O “exército das sombras da resistência afegã”

“Quando menciono a existência de mulheres combatentes armadas noutros países muçulmanos, elas continuam a ser sonhadoras. É claro que não há mulheres nas fileiras dos mujahedines. Mas há algumas que transportam explosivos sob o seu chador ou que servem como oficiais de ligação, transportando mensagens para a cidade. (…) As mulheres são o exército sombra da resistência afegã.”

Catherine Chattard, Le Monde, 20de Maio de 1985

 

Não os impeçam de viver como desejam

“Uma mulher francesa, uma fotógrafa, está entre nós. Não há outras mulheres. No entanto, foi aceite, sem qualquer problema, sem qualquer véu, o que nunca teria sido admitido nas mesmas circunstâncias no Irão. Como se, aqui, o Islão não fosse o meio exacerbado de uma política, como no Irão, mas algo mais fundamental e simples. (…) Em nome de que progressismo impediríamos os afegãos de viver como desejam?”

Pierre Blanchet, Le Nouvel Observateur, 5 de Julho de 1980

 

“Que valem os nossos critérios numa sociedade que já não compreendemos?”

“De acordo com os nossos critérios, poderíamos falar sobre a alienação das mulheres no Afeganistão. Mas que valem os nossos critérios numa sociedade que já não compreendemos? A natureza arcaica das relações homem-mulher no Afeganistão choca-nos, mas só pode ser posta em questão por uma evolução que deve ter lugar, uma vez mais, ao seu próprio ritmo e num momento escolhido pelas próprias mulheres afegãs. E isto não pode ser imposto do exterior com soldados e tanques.”

Annie Zorz, Les Temps modernes, Julho-Agosto 1980

“O sistema de “compensação matrimonial” a ser pago em muitas sociedades do mundo, tanto na Ásia como em África, antes de uma rapariga poder casar tem, evidentemente, muitas desvantagens, especialmente para os jovens a casar. No entanto, nas sociedades rurais pobres, proporciona sem dúvida alguma proteção para a esposa. A instituição da compensação matrimonial foi vista no Afeganistão como um reconhecimento da importância das mulheres. Na sociedade tal como ela era, aboli-la abruptamente era desvalorizar as mulheres. Para os camponeses, foi um sinal de respeito e consideração pela própria filha e por si próprio não querer dá-la em vão a ninguém, sem que o seu futuro estivesse assegurado.”

Bernard Dupaigne, Les Nouvelles d’Afghanistan, Outubro de 1986

“A poligamia é, em alguns casos, um meio para o homem gerir as suas conquistas e responder às necessidades económicas num dado momento. Mas é também uma proteção para a mulher estéril que pode assim existir e ser integrada numa família e, portanto, no tecido social. (…) Em alguns países, como o Afeganistão, o dote é uma garantia para a mulher, porque no dia do divórcio, ela pode recuperá-lo e todos os bens que envolveu aquando do casamento. (…) Outros dir-lhe-ão que usar o véu não é em si um comportamento retrógrado, mas uma forma prática de ser respeitado e também uma questão de honra. (…) Onde os ocidentais veem sinais de opressão, há muitas vezes uma realidade mais complexa. (…) O papel da mulher é, portanto, muito valorizador e altamente valorizado.

Chantal Lobato, Autrement, Dezembro de 1987

 

Epílogo (provisório)

O regime comunista afegão de Mohammed Najibullah sobreviveu durante três anos após a partida das tropas soviéticas em Fevereiro de 1989. Depois, em 1996, após vários anos de confrontos mortais entre clãs anti-comunistas rivais, Cabul caiu nas mãos dos Talibãs. Prendem Najibullah, que se tinha refugiado num edifício das Nações Unidas, torturaram-no, castraram-no, fusilaram-no e penduraram o seu corpo num poste de luz.

A 15 de Janeiro de 1998, Le Nouvel Observateur perguntou a Brzezinski se ele “não lamenta ter favorecido o fundamentalismo islâmico, tendo dado armas e conselhos a futuros terroristas“. A sua resposta foi: “O que é mais importante na história do mundo? Os Talibãs ou a queda do império soviético? Alguns extremistas islâmicos ou a libertação da Europa Central e o fim da Guerra Fria?

 


NOTAS

[1] Ler Christian Parenti, “Retour sur l’expérience communiste en Afghanistan”, Le Monde diplomatique, Agosto de 2012, e Manière de voir, n° 110, “Imprenable Afghanistan”, Abril-Maio de 2010.

[2] Ouvir também “O romance de BHL no Afeganistão” no podcast Diplo de Julho de 2021.

 

[N.T.]  Segundo a Wikipédia: a Chouannerie foi uma guerra civil que opôs os revolucionários republicanos e os realistas ocidentais da França, na Bretanha.

 


O autor: Denis Souchon é membro da ACRIMED, Action Critique Médias.

 

 

 

 

 

 

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