
O primeiro contacto que o autor deste texto teve com a música de José Afonso deve ter sido em 1963, quando teve conhecimento do 45 rotações que continha Menino d’Oiro ([1962]), que supõe ter ouvido na rádio. Nessa altura, já colaborava na Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) como director da secção de propaganda. Começara a colaborar durante a “Crise de 1962” provocada pela proibição do Dia do Estudante, quando as Associações de Estudantes (AAEE) foram encerradas e, depois, sujeitas a Comissões Administrativas. No Dia do Estudante de 1961 – cuja comemoração se iniciara em 1951 – tinha-se realizado um sarau cultural na Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, com José Afonso e Rui Mingas.
Reabertas as AAEE após o Verão de 1962, estas reiniciaram a sua actividade, sendo José Afonso e Adriano Correia de Oliveira como que porta- vozes do Movimento Estudantil, realizando concertos em diferentes ocasiões nas instalações das AAEE, logo sem necessidade de autorização. Nessa altura, já as canções de ambos estavam proibidas na rádio.
Entretanto, fora publicado o 45 rotações com Os Vampiros e Menino do Bairro Negro, canções ícones da luta estudantil, sendo a primeira cantada em grupos que se juntavam espontaneamente em convívios estudantis, saraus das semanas de recepção aos novos alunos, plenários na Cidade Universitária de Lisboa, excursões. Também se cantavam cantos alentejanos e canções de Fernando Lopes Graça divulgadas pelo Coro da Academia dos Amadores de Música. Igualmente se cantavam em repúblicas, lares e em cafés frequentados por estudantes.
A AEIST tinha uma cabine sonora que transmitia música, noticiários e programas, como se fora uma estação de rádio, para dentro das instalações da Associação, as quais eram muito amplas, nomeadamente para a Cantina, que fornecia uma média de 800 refeições diárias. A música mais transmitida era a de José Afonso e Adriano, além dos cantores franceses e brasileiros de esquerda. E os anglo-saxónicos irreverentes. Também música clássica. Mas o José Afonso era o mais frequente.
Nos anos seguintes, o autor deste texto ocupou vários cargos directivos na AEIST (secção de propaganda, vice-presidente e presidente da Direcção, Conselho Fiscal), no Cine-Clube Universitário de Lisboa (CCUL), numa das estruturas federativas estudantis de Lisboa (RIP – Reuniões Inter-Propagandas), foi delegado do seu curso de Química. Também pertenceu à Direcção do Centro Desportivo Universitário de Lisboa (CDUL). Assistiu a algumas dessas sessões/concertos de José Afonso em AAEE, mas não recorda todas.
Em Março de 1963 e de 1964, tentaram as AAEE, de novo, realizar o Dia do Estudante, o qual voltou a ser proibido. Todavia, em 1964, realizou-se uma sessão/debate no ginásio da Associação de Estudantes de Ciências, estando previsto, à noite um sarau cultural com José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, o qual teve de se realizar à luz das velas, pois a PIDE, ou alguém a seu mando, desligou a instalação eléctrica da Associação.
Aliás, de 1962 a 1974, a universidade esteve sempre em luta com excepção de dois anos (e já o estivera em 1957), com greves, prisões e expulsões de centenas de estudantes, incorporações forçadas no exército, além das centenas dos mais activos que foram para fora do país, fugindo à guerra colonial. José Afonso esteve sempre nesta luta.
Recorda o autor deste texto que assistiu a um sarau, muito provavelmente em 1963, aquando da realização em Coimbra de um Encontro Nacional de Dirigentes das AAEE, com representantes de Porto, Coimbra e Lisboa, no que visava ser o embrião de uma União Nacional dos Estudantes Portugueses, na sequência das tentativas já realizadas em início de 1962 com o Encontro Nacional de Estudantes, proibido pelas autoridades. Nesse sarau, realizado nas instalações da Associação Académica de Coimbra actuaram José Afonso e Adriano Correia de Oliveira. A certa altura cantaram ambos em conjunto, o que foi contestado por tradicionalistas de Coimbra, vestidos com os trajes tradicionais, que estavam junto do autor deste texto, dizendo que o fado e as baladas de Coimbra se cantavam a solo, nunca em conjunto.
Supõe que foi na mesma ida a Coimbra que numa das repúblicas ouviu pela primeira vez Adriano Correia de Oliveira cantar Trova do Vento Que Passa.
Recorda-se que no período de realização do Encontro Nacional de Dirigentes, o Conselho das Repúblicas teve de publicar um “Decretus” em latim para que os estudantes tradicionalistas de direita, então com alguma implantação em Coimbra, não pudessem exercer represálias sobre os estudantes idos de Lisboa e Porto, em particular raparigas. Eram, então, as malfadadas “praxes”, que em Lisboa não se praticavam e se abominavam.
Talvez em 1967, o autor deste texto convidou José Afonso para cantar num jantar do seu curso que se realizou na AEIST, para o dar a conhecer a estudantes que andavam um tanto arredados destas lides.
Em Dezembro de 1967, realizou-se na AEIST um sarau com José Afonso, Carlos Paredes e José Carlos de Vasconcelos, no âmbito da Semana de Recepção aos Novos Alunos.
Em final do mesmo ano, a AEIST e o Secretariado Coordenador da Imprensa Estudantil (SCIP), estrutura federativa das AAEE de Lisboa[1], decidiram publicar a 3ª edição do livro de poemas de José Afonso (Cantares)[2], o qual foi impresso na máquina de off-set da AEIST, onde também eram impressas as “folhas”, isto é, as lições de todos os professores e assistentes do IST, com duas ou três excepções[3]. A edição foi suportada pela AEIST, apesar de as AAEE aparecerem como editor, e foi vendida rapidamente, evitando-se a sua apreensão por ordem da Censura.
Nos primeiros exemplares impressos não se identificou a responsabilidade da edição. Depois, com um carimbo, inseriu-se na última página com letra azul: «Off set da AEIST – ed AAEE».
Lembra-se o autor deste texto de, juntamente com elementos da Direcção da AEIST e o responsável do SCIP, ter falado várias vezes com José Afonso, na preparação do volume, sendo o Tesoureiro da Direcção a guardar as verbas que eram entregues pela venda do livro. A receita da venda foi feita de mão em mão e nas AAEE e destinou-se inteiramente a José Afonso, na altura com grandes dificuldades financeiras, pois acabava de regressar de Moçambique e estava desempregado. Alguns de nós deslocámo-nos a Setúbal para entregar o total da receita à mulher do cantor, dado que este não gostava de ter muito dinheiro com ele. Na ocasião, foram publicadas no nº 28 do boletim Binómio, da AEIST, as duas estrofes de “Grândola” inseridas na 1ª edição de Cantares. Nessa altura, o autor deste texto era o responsável daquele boletim. O Binómio, conhecido em toda a universidade e fora dela, publicou-se com numeração seguida de 1964 a 1973, e, depois, como Suplemento do Binómio e outras formas, sem número.
Por este tempo, a secção de judo da AEIST fez uma deslocação a Setúbal realizando uma demonstração com um grupo onde José Afonso também praticava a modalidade. Aliás, segundo testemunha um dos presidentes da Direcção da AEIST – o de 1969/1970, José Mariano Gago[4], mais tarde Ministro da Ciência – quando José Afonso foi proibido de ensinar, a AEIST contratou-o como monitor de judo, cargo que não se sabe se chegou a desempenhar.
No ano lectivo de 1967/68, estava prevista uma actuação de José Afonso nas instalações da Comissão Pró-Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de Santa Maria, a qual foi proibida em cima do acontecimento. A indignação dos estudantes presentes levou a que um grupo pretendesse sair em manifestação para a rua. O Vice-Presidente da AEIST e o autor deste texto, então do Conselho Fiscal desta Associação, subiram a um balcão e conseguiram convencer os presentes mais emotivos que uma manifestação espontânea de poucas pessoas realizada sem organização mínima, sem um esquema de protecção e alerta, levaria a lado nenhum, à intervenção certa da polícia de choque, a prisões gratuitas e poderia conduzir ao encerramento da Comissão Pró-Associação.
Em 26 de Outubro de 1968, realizou-se nas instalações da AEIST um “Festival de Poesia e Canção de Protesto” em que participou José Afonso e se apelava ao aparecimento de jovens cantores. Quando José Afonso cantava “A Morte Saíu à Rua” um grupo de estudantes radicais, tendência que já se vinha manifestando nas AAEE há alguns anos, contestou a letra da canção achando-a “recuada”. Teve de ser o ex-Presidente da Direcção da Associação, então no Secretariado das RIA, a sair em defesa do cantor.
Num destes anos, realizou-se um sarau com José Afonso numa grande colectividade da margem sul, em que estiveram centenas pessoas e alguns estudantes, entre os quais o autor deste texto. Foi um estrondoso êxito, mostrando que José Afonso já atingia um público não estudantil.
Em 1973, José Afonso cantou, de novo, na AEIST, voltando a ser vítima de contestação. Desta vez, acusaram-no de “Amália do PC”, epíteto que não lhe assentava de todo, até porque o cantor sempre se recusou a pertencer a qualquer partido ou organização política, embora colaborasse com todas as de esquerda, através de associações culturais que essas organizações influenciavam.
Em 28 de Março de 1974, o autor deste texto esteve no grande espectáculo organizado pela Casa da Imprensa no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, onde se cantou com grande fervor e toda a gente abraçada “Grândola, Vila Morena”.
Em 29 de Janeiro de 1983, esteve no penúltimo espectáculo de José Afonso, no Coliseu, em que cantou “Balada do Outono” – «Que eu não volto a cantar» – escutada em grande silêncio e emoção, pois todos pressentiam que assim seria.
José Afonso e Alves Redol
Em 16 de Fevereiro de 1974, José Afonso esteve presente numa sessão realizada na Cooperativa Alves Redol, em Vila Franca de Xira, juntamente com Fausto, então um quase desconhecido, que o acompanhou à viola. Como Cooperativa – fundada em 1973, depois do processo que levou ao encerramento de muitas cooperativas de carácter cultural em 1972, por ordem do Ministro do Interior Gonçalves Rapazote, entre as quais a cooperativa Centro Popular Alves Redol – o pretexto da sessão foi a apresentação do último disco do cantor. A sede, que era pequena num 1º andar, estava completamente cheia, como a escada do prédio e muita gente na rua.
Fora o autor deste texto que o contactara em Setúbal para estar presente e combinara ir buscá-lo a casa no dia da sessão, umas horas antes. Quando ali chegou, no carro de um outro dirigente da Cooperativa, ele não estava em casa e informaram que estava no café. Ali nos dirigimos, mas ele estava renitente em ir, pois, certamente, estava cansado de tantas solicitações. Disse-lhe que havia muita propaganda espalhada em Vila Franca e que muita gente estava na expectativa. Acabou por concordar e fomos dali buscar o Fausto.
Na ocasião, José Afonso deixou na Cooperativa comunicados divulgando a luta dos trabalhadores duma empresa francesa que estava em auto-gestão após o Maio de 1968.
O autor deste texto voltou a estar com ele em inícios dos anos 80 para gravar um depoimento sobre Alves Redol, que foi publicado no ano 2001 no livro Alves Redol – Testemunhos dos Seus Contemporâneos[5], em que o cantautor refere a semelhança das posturas dos dois artistas, sem, no entanto, ele se dedicar à investigação antropológica e etnográfica como Alves Redol o fez. Entrara em contacto com 14 anos com a obra do escritor através do barbeiro de Belmonte, que lhe explicou a sua importância e de quem acabou por ler grande parte dos romances.
De 1979 a 1982, comemorou-se o 40º Aniversário da publicação de Gaibéus. Realizaram-se dezenas de sessões em que intervieram cerca de centena e meia de escritores, ensaístas, dirigentes políticos, actores e cantores. A exposição Gaibéus e o Seu Tempo, com quatro versões idênticas, esteve em mais de 140 localidades de Norte a Sul do país. José Afonso participou em duas dessas sessões. No âmbito de um vasto programa resultante da colaboração da Comissão Legado Alves Redol com a Câmara Municipal da Amadora[6], cantou numa sessão realizada em 10 de Janeiro de 1981, no pavilhão polivalente da Brandoa, em que falaram José Gomes Ferreira, José Carlos de Vasconcelos e Fernando Piteira Santos. Também actuou o Rancho Folclórico “Os Avieiros”, de Vila Franca de Xira. No dia 2 de Maio, José Afonso esteve no Clube Recreativo do Feijó, onde actuou também o Rancho Folclórico “Os Avieiros” e falaram Henrique de Barros, Etelvina Lopes de Almeida, Fernando Piteira Santos e Alexandre Cabral. Desta vez, no âmbito de um vasto programa organizado com a Câmara Municipal de Almada. Para as duas sessões, os contactos com José Afonso, como aliás com todos os intervenientes, foram realizados pelo autor deste texto. Houve um pagamento do cantor e dos músicos[7], mas quem tratou dessa questão foi Júlio Pereira, pois, como se sabe, o cantor não gostava de tratar de questões de dinheiro[8].
Nesta época José Afonso já se encontrava debilitado. No final da sessão na Brandoa, quando o público já tinha abandonado a sala e os técnicos arrumavam o material, o cantor deitou-se no palco, exausto.
Apesar de alguns contactos com José Afonso, que podem designar-se como profissionais, o autor destas linhas nunca teve com ele uma relação de amizade, como muitos outros tiveram. No entanto, possui os seus discos quase desde o início da sua actividade como cantautor, quando começou a cantar baladas.
Alves Redol em Grândola