GUERRA OU PAZ – A UCRÂNIA ENTRE O OCIDENTE E O ORIENTE – CONFERÊNCIA DE 1992: A ESTRATÉGIA AMERICANA PARA DESMANTELAR A URSS, por SEAN GERVASI – parte I

 

 

Sean Gervasi: The US Strategy to Dismantle the USSR, por Dennis Riches

Lit by Imagination, 15 de Novembro de 2017

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

Revisão de João Machado

Derrotámos o totalitarismo e ganhámos uma guerra simultaneamente no Pacífico e no Atlântico… Trabalhámos juntos de uma forma completamente bipartidária para derrubar o comunismo… Agora temos de usar os nossos processos políticos na nossa democracia, e depois decidimos agir em conjunto para resolver esses problemas. Mas temos de ter uma perspetiva diferente sobre este. É [aquecimento global] diferente de qualquer problema que já tenhamos enfrentado antes [i]

– Al Gore

Introdução

Estas palavras acima foram proferidas pelo antigo vice-presidente dos EUA Al Gore em 2007 no seu filme Uma Verdade Inconveniente. Porque as audiências na altura estavam arrebatadas com ele, tratando-o como um salvador na campanha para resolver a crise do aquecimento global, nunca pareceram reflectir sobre os pressupostos escandalosos subjacentes aos seus comentários sobre “derrotar o totalitarismo” e “derrubar o comunismo”. Vale a pena examiná-los pelo que nos dizem sobre as perceções da história mundial entre a classe política americana, e dão mesmo sugestões sobre como os erros nestas perceções levaram o Sr. Gore a enganar-se sobre o que seria necessário para resolver o problema a que se tem dedicado desde que está fora do poder.

Embora os Estados Unidos tenham desempenhado um papel crucial na Segunda Guerra Mundial, o seu envolvimento foi lento e deixou a União Soviética fazer grande parte do trabalho pesado e sofrer as perdas mais pesadas. Os Estados Unidos tiveram uma grande ajuda para alcançar a vitória que o Sr. Gore reivindica para a América, e podemos assumir que ele sabe disso, pelo que a forma como ele escolheu descrever os acontecimentos históricos é reveladora.

Talvez o reconhecimento da realidade tivesse prejudicado o seu segundo ponto sobre “derrubar o comunismo”. Todos sabem que o que ele refere com tanto orgulho é a desestabilização e destruição da URSS, das nações do bloco de Varsóvia, e da Jugoslávia, e não a noção abstrata de comunismo. Refere-se a uma “vitória” que precipitou guerras civis e um colapso desastroso da economia e dos sistemas de bem-estar social nestes países, que matou e empobreceu milhões. Na China, em Cuba e na RPDC, ao contrário do que afirmou, as versões do socialismo destas nações não foram derrubadas de modo nenhum.

A descrição explícita da “queda do comunismo” como as ações deliberadas da América para desmantelar a URSS poderia correr o risco de recordar à audiência a ilegalidade da interferência nos assuntos internos das nações soberanas, e poderia ter recordado às pessoas a traição que isto representava para com o aliado e parceiro da Segunda Guerra Mundial da América no desanuviamento dos anos 70. A verdade inconveniente é que a URSS foi o aliado da II Guerra Mundial que desempenhou um papel crucial na vitória que o Sr. Gore reivindicou unicamente para a América.

No entanto, o comentário sobre “derrubar o comunismo” é refrescante, e talvez acidentalmente, muito honesto. A maioria das descrições do colapso soviético, mesmo as feitas por historiadores especializados neste campo, prestam pouca atenção aos esforços americanos para minar a União Soviética nas décadas de 1970 e 1980. A classe política sempre negou que a América tivesse um plano para desmantelar a URSS, e negou ter qualquer influência significativa sobre acontecimentos que afirmam ter surgido de causas internas. Se a influência da América for abordada, é considerada como uma questão de especulação, um mistério sobre o qual dificilmente vale a pena pensar quando se pode olhar mais facilmente para os acontecimentos dramáticos que ocorreram à superfície no seio da União Soviética na última década da sua existência. A seguinte transcrição da palestra de Sean Gervasi, proferida em 1992, pouco depois do colapso, é única e valiosa pelo que revela sobre o significativo, e talvez decisivo, papel americano no colapso da União Soviética.

Na sua conclusão, Sean Gervasi chegou a esta posição:

A União Soviética de hoje, na ausência desta estratégia extraordinariamente astuciosa, bem pensada e extremamente dispendiosa, aplicada pela administração Reagan, seria uma sociedade que se debatia com grandes dificuldades. Continuaria a ser uma sociedade socialista, pelo menos do tipo que era. Estaria longe de ser perfeita, mas ainda lá estaria, e penso, portanto, que a intervenção ocidental fez uma diferença crucial nesta situação”.

O caminho para chegar a esta conclusão vale bem o tempo do leitor.

Um comentário final sobre as observações do Sr. Gore: Ele ignora a solução inconveniente que tem tido pela frente durante todos estes anos: que a necessária redução das emissões de carbono irá exigir severas restrições ao capitalismo, uma tese desenvolvida por Jason W. Moore em Capitalism in the Web of Life [ii] O Sr. Gore deveria saber que é necessária uma solução radical. Na sua recente sequela de Uma Verdade Inconveniente queixa-se da influência indevida do “dinheiro na política” que se tem agravado tanto nos últimos dez anos, mas isso é tão profundo como a análise de classe e a exploração ideológica podem ir na América. Ele não evoca a consciência das figuras históricas que desenvolveram respostas para o problema do controlo privado irresponsável do governo, dos recursos e das capacidades produtivas de uma nação. Gore continua orgulhoso de ter trabalhado ativamente contra uma revolução nos assuntos humanos que visava reduzir o capitalismo selvagem que conduziu à atual catástrofe ecológica.

Apesar das falhas que se podem ver no que a União Soviética realmente se tornou, falhas que surgiram em grande medida porque teve de lutar contra ameaças externas durante toda a sua existência, os objetivos da revolução de 1917 ainda são relevantes para as crises do século XXI, e é isto que torna a investigação de Sean Gervasi tão valiosa agora, após um quarto de século em que a América duplicou os seus “caminhos vencedores” e agravou as crises que eram evidentes há muito tempo atrás, em 1992.

 

Sobre Sean Gervasi:

 

Sean Gervasi (1933-1996) passou a última parte da sua carreira a expor o papel dos Estados Unidos e das potências ocidentais na desagregação da URSS e da Jugoslávia. Estava a trabalhar num livro, Balkan Roulette, na altura da sua morte.

Gervasi era um economista formado na Universidade de Genebra, Oxford e Cornell. A sua carreira política começou quando assumiu um cargo de conselheiro económico na administração Kennedy. Renunciou em protesto após a invasão da Baía dos Porcos de Cuba, em 1961.

Após a sua demissão, Gervasi nunca mais conseguiu arranjar trabalho nos Estados Unidos como economista, apesar das suas impressionantes credenciais académicas. Tornou-se professor na London School of Economics depois de deixar Washington. Apesar da sua grande popularidade, a escola recusou-se a renovar o seu contrato em 1965.

Durante as décadas de 1970 e 1980 foi conselheiro de vários governos em África e no Médio Oriente, ajudando-os a navegar no mundo hostil e predatório das corporações transnacionais e dos megabancos. Também trabalhou para o Comité das Nações Unidas para o Apartheid e para a Comissão das Nações Unidas para a Namíbia.

Além disso, Gervasi foi jornalista, contribuindo para uma vasta gama de publicações, desde o New York Amsterdam News ao Le Monde Diplomatique. Foi comentador frequente da estação de rádio Pacifica WBAI em Nova Iorque, sustentada pelos ouvintes. Em 1976, Gervasi publicou a história de como o governo dos EUA estava a armar secretamente o regime do apartheid na África do Sul.

No final dos anos 80, Gervasi começou a concentrar-se na Guerra Fria e naquilo a que chamou a “imprensa de campo completa”, um termo de basquetebol para uma estratégia altamente agressiva “all in”. Num artigo publicado no Covert Action Information Bulletin no início de 1991 [iii],], quando a desagregação da URSS estava iminente, Gervasi mostrou como a estratégia da administração Reagan de isolamento económico, uma acumulação gigantesca de armas com a ameaça de um ataque nuclear, financiamento ostensivo da dissidência interna, e sabotagem dirigida pela CIA tinha sido decisiva para derrubar a URSS. Gervasi apoiou a sua análise com uma trabalho minucioso e documentação.

Gervasi era amplamente respeitado como uma figura independente líder à esquerda, mas as suas opiniões eram contrárias ao dogma da moda que atribuía o colapso da URSS quase exclusivamente a coisas como falhas de liderança, centralização da economia, mercado negro, Chernobyl, ou movimentos de independência, e não à hostilidade externa. Estes são os temas que abordou na palestra seguinte, dada a uma pequena audiência em Janeiro de 1992. A palestra pode ainda ser encontrada em sites de vídeo na Internet, mas a tese desta palestra continua marginal e obscura duas décadas depois, embora seja altamente pertinente para a repetição da Guerra Fria que está em curso na segunda década do século XXI – uma guerra fria em que a Rússia é acusada de virar a mesa e fazer uma versão comparativamente muito mansa da guerra de propaganda travada na URSS na década de 1980.

Após 1992, Gervasi concentrou a sua atenção na desagregação da Jugoslávia, que descobriu ser uma repetição da estratégia utilizada para desagregar a União Soviética. Tornou-se ativo na exposição do papel das potências externas, particularmente os governos americano e alemão, no fomento da guerra civil nos Balcãs. A sua opinião de que a guerra na Bósnia foi desencadeada pelas maquinações agressivas destas nações, e não por rivalidades étnicas antigas, afastou Gervasi de grande parte do movimento liberal e progressista. Os jornais para os quais ele tinha contribuído regularmente já não publicavam os seus artigos. Ele teve grande dificuldade em encontrar um editor para o seu livro sobre os Balcãs, mas algumas das suas pesquisas sobre este tema podem ser encontradas no artigo “Why Is NATO In Yugoslavia?” [iv] publicado pela Global Research em 2001 [v].

TRANSCRIÇÃO

Introdução

Tenho falado um pouco aqui e ali no último ano, mais ou menos, sobre o desenrolar dos acontecimentos na União Soviética, na perspetiva de uma pessoa que acompanha o funcionamento das agências de inteligência ocidentais, algo em que fui tutelado enquanto trabalhava nas Nações Unidas, e era o destinatário de uma grande parte dessa atividade. Este é um tema importante que é preciso analisar: o papel do Ocidente nos desenvolvimentos que tiveram lugar na União Soviética, e é um tema em que tenho estado a concentrar-me, mas é claro que a questão mais ampla e mais importante é: como devemos entender o significado dos acontecimentos na União Soviética nos últimos cinco, seis, dez anos? Essa é realmente a questão crítica.

Como sabem, os desenvolvimentos, particularmente o fim ou colapso do regime comunista na União Soviética, e finalmente a desagregação da própria União Soviética, têm sido apresentados nos nossos meios de comunicação social de forma insistente e incessante como prova de que o socialismo ou a social-democracia, ou o que você tem , que iremos discutir, é impraticável. E isto, claro, a par do tema que foi tão energicamente divulgado por estas mesmas pessoas na última década, que o capitalismo…

a) é mais ou menos a mesma coisa que a democracia, e

b) deve ser visto como o núcleo e a realização triunfante da civilização ocidental.

daí a tese de que este é o fim da história, que conseguimos tudo o que há para alcançar, que o atual sistema de instituições em que vivemos no Ocidente representa o auge das capacidades humanas, intelectual e organizacionalmente, e é o melhor de todos os mundos possíveis. Esta é a tese, ou estas são as teses gémeas que nos rodeiam e que têm criado, penso eu, uma enorme confusão e consternação porque penso que as pessoas sentem que há algo de errado com esta ideia, e o esforço de fechar toda a discussão sobre alternativas ao que eu chamaria o nosso “regime” nos Estados Unidos hoje em dia, e possivelmente na Europa Ocidental, que é um retrocesso em relação ao capitalismo mais iluminado e liberal, à democracia liberal e ao capitalismo, que evoluiu após a Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Vivemos hoje, penso eu, num capitalismo irracional e selvagem do século XIX, a que por razões particulares, as pessoas que têm poder nesta sociedade ou aderiram ou trabalharam energicamente para o instituir.

Parte 1. A Crise nos Estados Unidos

A questão é se esta grande onda de propaganda faz algum sentido, e por isso penso que deveríamos examinar a ideia de que o socialismo e as alternativas a este capitalismo primário são impossíveis, indesejáveis, e impraticáveis. Penso que temos de olhar para isso de duas maneiras. Em primeiro lugar, temos de examinar a nossa própria situação nos Estados Unidos, historicamente, e temos também, penso eu, de olhar para o que aconteceu na União Soviética, porque o que aconteceu na União Soviética é realmente muito diferente do que nos é dito pelos meios de comunicação social. Não assistimos apenas a um colapso do comunismo na União Soviética. Temos visto algo realmente muito diferente, mas que tem sido sistematicamente deturpado nos meios de comunicação social ocidentais.

Começaria então por examinar a proposta básica. Começaria por examinar a nossa situação nos Estados Unidos hoje, e começaria francamente com a interpretação que Charles Beard faz da Constituição americana. (Charles Beard’s interpretation of the American Constitution.)

Existe um grande mal-entendido sobre o tipo de sociedade que a democracia americana realmente representa, e esse mal-entendido é tanto histórico como contemporâneo. Há uma tremenda tensão que todos nós conhecemos na nossa sociedade. É uma tensão entre o igualitarismo e a desigualdade. É uma tensão nascida da evolução nos séculos XVI, XVII e XVIII em Inglaterra, e da transferência de um tipo particular de sociedade para solo americano através das tradições políticas britânicas, não obstante a nossa rebelião como colonos no final do século XVIII. E este é o conjunto particular de instituições conhecido como democracia liberal. A democracia liberal é uma combinação de governo parlamentar e capitalismo, e a democracia liberal inevitavelmente contém, portanto, algumas tensões muito graves porque o desenvolvimento progressivo da democracia parlamentar tem tendido a dar cada vez mais espaço ao princípio da igualdade na vida humana e na política. É por isso que no decurso do desenvolvimento político britânico do século XIX houve uma expansão progressiva do direito de voto. E é por isso que nos Estados Unidos houve também uma expansão do direito de voto. Os Estados Unidos não tinham as mesmas qualificações de propriedade onerosas no início, embora tivéssemos qualificações de propriedade no século XVIII nos Estados Unidos, mas acabámos por ter o direito de voto completo alargado a todos os adultos, e temos estado a redefinir os adultos mais recentemente. Baixámos para 18 anos o nível de maturidade política ou de concessão de privilégios políticos.

O capitalismo, pelo contrário, é um sistema de instituições económicas e sociais baseado no princípio da desigualdade, e há uma razão para essa desigualdade que também vem do século XVIII, mas a ideia, essencialmente, é que faz sentido do ponto de vista da eficiência, e mesmo da equidade, dadas todas as considerações que se devem ter em conta, ter uma sociedade baseada na distribuição desigual da propriedade organizada em torno dessa instituição, ter uma economia baseada na propriedade privada porque, em última análise, é mais eficiente e, a longo prazo, tem a maior promessa de progresso contínuo. A propósito, esse é um argumento que Marx fez a um certo ponto – que numa certa fase da história uma sociedade capitalista é extremamente progressista, que reúne as capacidades técnicas da humanidade, da humanidade, e as desenvolve e acumula e acumula até criar algo de novo, do qual não falaremos agora mesmo.

Mas historicamente e atualmente nos Estados Unidos, sentimos muito fortemente esta tensão, de modo que andamos para trás e para a frente entre períodos em que temos enormes pressões para dar predominância ao princípio da desigualdade, para prestar atenção aos direitos de propriedade, e períodos em que as tendências igualitárias têm sido muito fortes. Por exemplo, como na viragem do século durante a fase expansiva do populismo americano e durante a fase antitrust… dos grandes movimentos populares que procuraram – não apenas populares – mas que procuraram conter o poder dos cartéis e dos trusts nos Estados Unidos da América. E hoje também sentimos isso. Aprovámos a lei em 1946 que se chama Lei do Emprego. A propósito, não se chama a Lei do Pleno Emprego. É preciso lembrar-se dessa legislação. E no entanto apercebemo-nos de que a nossa adesão ao princípio do pleno emprego foi ténue mesmo nos 25 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, e completamente espúria hoje em dia. Porquê? É devido a esta tremenda tensão entre as realidades do poder sob o capitalismo e o domínio bastante frágil que os princípios e instituições democráticas têm sobre esse poder.

Voltemos à Constituição e à Convenção de Filadélfia. Tenho estado a reler Beard e estou muito impressionado pela sua compreensão de quem realmente predomina neste delicado equilíbrio na democracia liberal entre os princípios do igualitarismo, os princípios da democracia parlamentar e a enorme concentração de poder, que já então era inerente ao domínio das instituições da propriedade privada. O argumento de Beard é essencialmente que, em última análise, um pequeno grupo de homens, a quem se refere como um sexto da população masculina adulta – as únicas pessoas que ratificaram a Constituição, os participantes nas convenções que são ratificáveis que votaram positivamente a favor da Constituição – representava um sexto da população masculina adulta. Ou seja, 8% da população adulta, nos termos atuais. Contra os nossos valores que representam 8% da população de hoje – o equivalente.

Ora, o que foi obtido nesse enquadramento da Constituição? O que foi obtido foi um sistema de ciência política, um sistema de governo que foi estruturado de forma a assegurar o domínio da propriedade privada, o poder da propriedade privada em qualquer disputa entre as forças da democracia e as forças da propriedade privada e as forças da desigualdade, de modo que a estrutura que constitui, na fundação desta república, o quadro em que operamos hoje, é uma estrutura que assegura essa predominância.

Sei que Beard foi atacado por muitas pessoas, e é perfeitamente compreensível quando se lê Beard com atenção, mas parece-me que hoje Beard se torna mais esclarecedor. Porquê? Digo que presto atenção à Constituição, à Convenção de Filadélfia, à sua ratificação, aos números que a ratificaram e aos propósitos que se pensavam alcançar elaborando e ratificando esta Constituição, porque foi nesse quadro que os Estados Unidos viveram a Revolução Industrial mais bem sucedida e mais livre da história da humanidade. Tivemos uma industrialização que evoluiu linearmente e que foi a primeira a transformar a condição do homem na sociedade humana, e com isso quero dizer algo muito, muito específico. E aqui falo de coisas que foram ditas por pessoas como [John Maynard] Keynes, por pessoas como [[Joseph Alois] Schumpeter, mas que foram realmente ignoradas porque são extremamente desconfortáveis.

A racionalização da desigualdade na instituição da propriedade privada, no pensamento dos filósofos do século XVIII, era que a propriedade tinha de ser partilhada de forma desigual e os rendimentos tinham de ser desiguais porque esta desigualdade proporcionava incentivos que constituiriam uma garantia constante do impulso para a expansão da produção. Essa foi a racionalização, mas no século XX, segundo os historiadores económicos e segundo pessoas como Keynes, países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha começaram a pôr fim, a transformar, a situação histórica dentro da qual estas instituições foram concebidas. Como? Desenvolvendo uma tal capacidade de produção que gradualmente foram sendo retirados cada vez mais números de qualquer coisa que pudesse ser historicamente ou comparativamente chamada pobreza, de modo que a escassez, que domina o raciocínio dos economistas, estava realmente a começar a acabar em muitos aspetos. E Joseph Schumpeter pôde dizer, por exemplo, em 1928, que se o crescimento económico continuasse nos Estados Unidos durante mais 50 anos, veríamos em 1978 o fim de qualquer coisa que se pudesse razoavelmente chamar pobreza.

Agora isso não aconteceu. Isso não aconteceu por causa da enorme influência da desigualdade na distribuição desta abundância produtiva. Mas o que ela transformou foi a vida de muitas, muitas pessoas, e transformou a vida quotidiana e a condição histórica. Veja, entre 1870 e 1970, como cai o número de horas que o americano médio trabalha. No período entre 1945 e 1970, a produção per capita triplicou, precisamente nesse período, e já tínhamos uma enorme base industrial nessa altura, pelo que eu argumentaria [concordo], com Galbraith, que – porque tinha razão – foi vilipendiado e ignorado pela profissão de economista e estudiosamente pouco aproveitado pelos meios de comunicação social – de facto a América começou a ser transformada com o sucesso da sua enorme revolução industrial no final do período posterior a 1865, quando começou a ter lugar uma industrialização realmente pesada. E, de facto, eu diria que a razão da Grande Depressão foi que os Estados Unidos tinham perdido a capacidade de continuar a absorver tudo o que podiam produzir de uma forma adequada, dadas as instituições da época.

Assim, o que aconteceu então foi que dentro deste quadro, que é o mesmo que concebido por James Madison e Alexander Hamilton, para promover os objetivos da propriedade privada e defender a sociedade contra o que Madison chamou “os ataques de nivelamento da democracia”, temos a industrialização que sustenta a expansão de um enorme poder, que é o poder que controla a maquinaria e os recursos desse sistema produtivo. Ou seja, as grandes empresas. As maiores 500 empresas dos Estados Unidos atualmente, mais os maiores 500 bancos e as maiores 50 empresas financeiras controlam mais recursos do que os planificadores soviéticos alguma vez sonharam em controlar.

O controlo desses recursos, que é tornado invisível pelo trabalho inteligente dos economistas, é inerente à capacidade de tomar decisões de investimento. As decisões de investimento são as decisões chave em qualquer sistema económico. O poder de tomar essas decisões é o poder de transformar continuamente e de determinar os termos da vida quotidiana entre os seres humanos em qualquer sociedade. Esse poder não é apenas invisível no nosso sistema de pensamento, cuidadosamente escondido pelos descendentes dos filósofos do século XVIII, mas dele também não têm que dar contas.

Agora talvez pudesse dizer, e nós dissemos isto entre 1945 e 1975: “OK, isto é uma contradição da democracia. Esta é a herança da Convenção de Filadélfia, a Constituição na sua ratificação e o domínio deste um sexto da população adulta masculina em 1789, mas este sistema é tão produtivo que podemos aliviar as tensões sociais e políticas resultantes, elevando o nível de vida das pessoas comuns”. E essa foi toda a filosofia da sofisticada liderança americana na primeira geração após a Segunda Guerra Mundial. Essa foi a filosofia dos Rockefellers quando falaram sobre o novo capitalismo iluminado do século XX. O capitalismo podia fornecer os bens e, consequentemente, as pessoas ficariam satisfeitas, apesar das realidades de poder nascidas no final do século XVIII, e essencialmente reforçadas pela enorme acumulação de poder representada pela industrialização e o crescimento das grandes empresas e o seu poder concentrado na economia. Poderíamos viver com isso, porque a economia dos Estados Unidos era tão produtiva.

Esta é a nossa história, e a tremenda tensão da nossa situação actual, em contraste com o período pós-guerra, porque uma coisa é hoje muito clara: que durante 20 anos nos Estados Unidos este sistema não tem funcionado bem. Tem havido um recuo sistemático do pleno emprego, de salários elevados, de melhoria dos padrões de vida, segurança no emprego e no avanço do Estado-Providência. Temos vindo a recuar sistematicamente nesses campos e a termos cada vez mais desemprego oficial e real, este que, naturalmente, é cerca do dobro do desemprego oficial – e os estatísticos trabalham arduamente para esconder as realidades da vida.

Entre 1977 e 1992, de acordo com o Gabinete do Orçamento do Congresso, 70% das famílias americanas viram o seu rendimento após impostos diminuir. 70%! Nas faixas mais baixas da distribuição dos rendimentos, essas quedas são bastante acentuadas. O poder de compra cai 20,8% para o quintil mais pobre, cerca de 12% para o quintil seguinte, cerca de 11% para o terceiro quintil, e montantes menores para aqueles que se encontram no meio do sistema de distribuição de rendimentos. Portanto, eu diria que isso representa, e as pessoas estão cada vez mais conscientes disso, um colapso do nível de vida americano. E este colapso do nível de vida americano está relacionado com um declínio económico gradual que está a provocar a desintegração do sistema do pós-guerra, como o conhecemos nos Estados Unidos entre 1945 e 1970. E penso que esta é a realidade do que está a acontecer, de modo que hoje, mesmo de acordo com previsões de Wall Street como as dos académicos e investigadores do Instituto Levy, ligados ao Bard College aqui no condado, estamos perante o que eles chamam depressão contida, que poderia ser pior do que o tipo de depressão a que assistimos nos anos 30 e não é porque o papel estabilizador do governo torna possível não evitar alguns dos horrores terríveis que ocorreram na depressão, mas diminuí-los a um grau que os torna quase invisíveis.

Temos, portanto, uma situação muito tensa. Peço-vos que reflitam sobre isso quando enfrentamos as enormes dificuldades económicas de que hoje em dia deriva todo o tipo de problemas sociais que enfrentamos na nossa sociedade. Estes estão interligados e, se quiserem, tornados possíveis pelos arranjos concebidos por James Madison e Alexander Hamilton. Se esta crise em que vivemos há 20 anos, e de que nos tornámos mais conscientes nos últimos 10 anos, é intratável, é sobretudo intratável devido a este poder concentrado invisível que existe hoje após o crescimento industrial – a ascensão das grandes empresas no quadro concebido por Madison, Hamilton e os outros federalistas.

Por isso, se quiserem argumentar hoje que precisamos de reconsiderar este quadro, deparam-se com problemas muito fundamentais. Deparam-se com o problema de que a Constituição é tratada como um ícone, que as pessoas desconhecem que o preâmbulo da Declaração da Independência não é a lei dos Estados Unidos, que as pessoas desconhecem o facto de que a Carta dos Direitos, que é suposto compensar algumas das falhas do nosso sistema constitucional, tem sido sistematicamente rasgada pelas duas administrações mais recentes. Disso é testemunha William Kunstler e as suas notáveis palestras sobre o que tem acontecido com a Declaração de Direitos nos últimos dez anos.

(continua)

NOTAS:

[i] Davis Guggenheim (Director), Al Gore (Writer), “An Inconvenient Truth,” Paramount Classics, 2006.

[ii] Jason W. Moore, Capitalism in the Web of Life (Verso, 2015), 267-268.

“O que é realmente necessário é um planeamento adequado dos recursos disponíveis a nível mundial, mais um impulso, através do investimento público, para desenvolver novas tecnologias que possam funcionar… e, claro, uma mudança dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. Além disso, não se trata apenas de um problema de emissões de carbono e outros gases, mas também de limpeza do ambiente, que já está danificado. Todas estas tarefas exigem controlo e propriedade pública das indústrias de energia e transportes e investimento público no ambiente a favor do  bem público”.

[iii] Sean Gervasi, “Western Intervention in the USSR,” Covert Action Information Bulletin No. 39, Winter 1991-92, 4-9.

[iv] Sean Gervasi, “Why Is NATO In Yugoslavia?” Global Research, September 9, 2001, https://www.globalresearch.ca/why-is-nato-in-yugoslavia/21008. Este tetxo foi apresentado por  Sean Gervasi na Conferência sobre o alargamento da NATO na Europa de Leste e no Mediterrâneo, Praga,13-14 de  janeiro de, 1996.

[v] Gary Wilson, “Economist Exposed U.S.-German Role in Balkans,” Workers World News Service, Aug. 29, 1996, disponível em:

https://www.workers.org/ww/1997/gervasi.html.  A curta biografia aqui escrita foi obtida  a partir do orbituário  de outras informações publicadas por Workers World News Service.


Cliquem nos links abaixo para lerem este texto no original e saberem mais sobre o autor e a sua história:

WESPAC was the host organization for this lecture, January 26, 1992

Sean Gervasi, 1992 lecture: The US Strategy to Dismantle the USSR – Lit by Imagination (wordpress.com)

(171) Sean Gervasi: How US Caused Breakup of USSR – YouTube

http://www.keywiki.org/Sean_Gervasi


Para aceder à parte II deste trabalho, que será publicada amanhã domingo, 27 de Março, clique em:

GUERRA OU PAZ – A UCRÂNIA ENTRE O OCIDENTE E O ORIENTE – CONFERÊNCIA DE 1992: A ESTRATÉGIA AMERICANA PARA DESMANTELAR A URSS, por SEAN GERVASI – parte II

Para aceder à parte III, que será publicada segunda-feira, 28 de Março, clique em:

GUERRA OU PAZ – A UCRÂNIA ENTRE O OCIDENTE E O ORIENTE – CONFERÊNCIA DE 1992: A ESTRATÉGIA AMERICANA PARA DESMANTELAR A URSS, por SEAN GERVASI – parte III

 

4 Comments

  1. Júlio Marques Mota solicitou-me a inclusão do comentário seguinte, na sequência do comentário de Dennis Riches:

    “Cabe-me aqui dizer que tive muito prazer em propor a publicação deste texto de Sean Gervasi ao meu editor, João Machado, e de ter tido a sua colaboração para a revisão da tradução. .
    Aos nossos eleitores devo dizer que assumo este trabalho de Sean Gervasi como uma peça fundamental para se perceber o que 30 anos depois, ou seja agora mesmo, se está a passar. Para além da análise política e enquanto economista, interessou-me, em particular, a sua análise rigorosa sobre as anomalias do sistema dito planificado.
    Era para mim difícil, senão mesmo quase impossível, perceber como é que alguém em 1992 e 1996 descrevia com tanto rigor o que estava a passar em 2022.
    Nunca tinha ouvido falar de Sean Gervasi e cheguei a pensar mesmo, na base deste texto e de um outro sobre a Jugoslávia que iremos publicar, que se tratava de algum espertalhão a escrever sob pseudónimo, hoje e datando o texto dos anos 90. Com alguns sítios a serem vítimas de engano. Fui à Wikipédia e não havia nada. Tinha o nome do filho e o link ao pai, Sean Gervasi, estava morto! Fui ao sitio Westpac e num dia encontrei uma ligação mas no dia seguinte já não encontrei nada. Encontrei depois no Le Monde Diplomatique, nos seus arquivos, e fiquei descansado. Sean Gersavi tinha existido da mesmo forma que existe igualmente a “limpeza” de quem não é conveniente como este exemplo confirma, com o apagão do nome Sean Gervasi na Internet. A liberdade formal, no seu estado mais puro a negar a liberdade real.
    Agradeço igualmente a informação de um texto adicional de Sean Gervasi cuja publicação podemos encarar se não houver sobreposição com o seu texto de 1996, interessando-nos também a bibliografia anexa a este texto agora recomendado.
    Mais uma vez obrigado.

    Júlio Mota”

Leave a Reply