A Guerra na Ucrânia — “A guerra na Ucrânia não é uma questão de democracia contra autocracia”.  Por Janan Ganesh

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 m de leitura

A guerra na Ucrânia não é uma questão de democracia contra autocracia

 Por Janan Ganesh

Publicado por  em 22 de Março de 2022 (original aqui)

 

Os EUA precisarão da ajuda de alguns Estados iliberais para prevalecer sobre a Rússia e a China

 

Joe Biden tem sido comparado ultimamente com Harry Truman © Patrick Semansky/AP

 

Não existe uma forma discreta e de baixo perfil de enviar o sistema anti-míssileis Patriot para outro país, mas Joe Biden não é nada se não um experimentador. O presidente dos EUA deixou a cargo de funcionários não identificados da sua administração a confirmação de que a Arábia Saudita recebeu estes monstruosos interceptores montados em camiões. Compreende-se perfeitamente a timidez. Em 2019, prometeu tornar o reino matador de jornalistas num “pária”. Ainda este mês, ele enquadrou o mundo moderno como uma “batalha entre as democracias e as autocracias”.

O que é gritante aqui não é o fracasso de Biden em viver à altura dos seus ideais. É a insustentabilidade dos ideais. Mesmo quando os EUA tinham um monopólio nuclear e uma vasta quota-parte da produção económica mundial, tiveram de tomar atalhos morais para combater o comunismo na nascente guerra fria. Por exemplo, só foram até certo ponto na desnazificação da Alemanha no pós-guerra. Patrocinaram as forças monárquicas na guerra civil grega. Conviveram com o domínio autocrático na Coreia do Sul e na América Latina. Sendo uma potência menos dominante do que era em meados do século XX, seria uma época estranha para os EUA desenvolverem uma nova escolha sobre os seus aliados.

Biden pode levar os EUA ao sucesso na presente crise, se for claro quanto aos seus parâmetros. O inimigo não é uma abstracção chamada “autocracia”. É um agressor específico num conflito territorial definido. Induzir uma mudança no seu comportamento pode ser possível, mas é provável que exija a cooperação dos sauditas ricos em petróleo, da Turquia estrategicamente localizada e de um Estado chinês que tem os meios necessários para amortecer as sanções contra a Rússia. O facto de nenhum destes países ser uma democracia liberal não reduz a sua utilidade circunstancial.

Se os EUA tiverem de ser cínicos nos próximos meses, devem considerar isto como uma prática generalizada para as próximas décadas. O Vietname tem 19 pontos em 100 no índice da Freedom House, o que o coloca ao nível da Rússia e abaixo do Ruanda. Mas também olha com alguma apreensão para a China, rival da América, do outro lado da fronteira. Nenhum líder sério dos EUA pode deixar passar uma potencial amizade de conveniência com Hanói por causa do seu modelo interno de governo. Então porquê o fingimento de outra forma? Na melhor das hipóteses, estabelece uma barra moral impossível que, quando reprovada, ganha a reputação de hipocrisia dos EUA. Na pior das hipóteses, torna a clássica oferta chinesa a países terceiros – patrocínio económico sem cordões morais – ainda mais tentadora.

As lutas paralelas da América contra a Rússia e a China juntam-se no terreno da Arábia Saudita. Dado o massacre do jornalista e residente nos EUA Jamal Khashoggi em 2018, a recusa de Biden em falar com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman tem fortes fundamentos morais. Mas também tem consequências. Uma delas é uma certa quantidade de arrastamento de pés sauditas sobre a questão imediata da produção de petróleo. A outra, mais distante mas sempre próxima, é a perspectiva de um reino virado para Pequim em vez de um reino virado para Washington. O príncipe utilizou uma entrevista recente com The Atlantic para lembrar ao Ocidente que o seu país carece de muitas coisas, mas não de opções.

O estranho de Washington enquanto capital diplomática é estar tão embaraçada com o que faz de melhor: realpolitik. Não há nada de delicioso na fria busca de interesse que marca Londres e Paris, para não falar de Moscovo. O estudioso John Mearsheimer é tão proeminente como é, porque é um dos raros cínicos declarados.

A determinação de Washington em pensar bem de si próprio vai por vezes ao ponto de se lembrar mal da guerra fria. Biden foi comparado ultimamente a Harry Truman, que disse que os EUA iriam “apoiar povos livres” em todo o mundo. Mas a Doutrina Truman era realmente a Aspiração Truman ou mesmo a Metáfora Truman. A realidade é que a América teve de ser pragmática até ao ponto da amoralidade entre 1945 e 1989-91. Fingir o contrário agora é suficientemente compreensível como um pedaço de retórica. O perigo é que uma geração de decisores políticos venha de facto a acreditar na cantilena de que os Estados Unidos se viram livres dos soviéticos por “defender os seus valores”, ou algo do género, e tente repetir o truque hoje.

A guerra fria não foi um choque entre a liberdade e o seu oposto. O inimigo era um império concreto, e as forças que a América reuniu contra ele abrangeram em vários momentos ditadores seculares, teocratas, juntas militares, democracias parciais, monarcas absolutos e a própria China Vermelha. O objectivo estratégico não podia ser mais nobre. As tácticas foram quase niilistas na sua flexibilidade. O Ocidente vai ter de fazer a mesma distinção entre fins e meios durante décadas. Trata-se de um jogo para o qual os EUA têm certo talento, quer se atrevam ou não a dizê-lo.

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O autor: Janan Ganesh [1982-] é colunista quinzenal e editor associado do Financial Times. Escreve sobre política americana para o FT e cultura para o FT Weekend. Foi anteriormente correspondente político no The Economist durante cinco anos. Frequentou a Stanley Technical School for Boys, uma escola de ajuda voluntária no Sul de Londres e depois estudou Política Pública no University College London.

 

 

 

 

 

 

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