A Guerra na Ucrânia — “Aristóteles à la minute resume a guerra da Ucrânia”. Por Carlos Matos Gomes

Seleção de Francisco Tavares

5 m de leitura

Aristóteles à la minute resume a guerra da Ucrânia

 Por Carlos Matos Gomes

Em 10 de Maio de 2022 (original aqui)

 

A Odisseia de Homero vista por um agente de viagens. Há um invadido e um invasor. Um Mau e um Bom! Mas onde raio está o cavalo de Troia?

 

No século VIII a.C., Homero escreveu a Ilíada, apontada como o livro inicial da literatura ocidental, onde versava sobre a Guerra de Troia. O segundo livro, Odisseia, dava conta do que aconteceu depois da batalha, quando Ulisses tentava regressar.

Um dos seus aspetos mais notáveis da epopeia é o modo como está construída, com um início in media res, que foi reproduzido em inúmeras obras posteriores. Uma sofisticada técnica literária que permite entrar na metade da história, revelando os eventos que aconteceram antes através de memórias e flashbacks.

A Odisseia é uma narrativa política e histórica complexa, que que trata entre outros temas do papel da mulher na sociedade — Penélope; fantástico e que versa sobre a descoberta de outros mundos — Poseidon; do poder, do encantamento, da vingança — Ulisses.

A Odisseia coloca a eterna questão da complexidade da luta entre o destino ditado pelos deuses e o livre-arbítrio dos personagens humanos. Na versão original, em grego antigo, a palavra que inaugura a obra é “homem”.

A Odisseia, de Homero, foi sujeita a muitas críticas dos poderosos sacerdotes que defendiam o determinismo e a fé na verdade dos deuses. Os manipuladores da opinião, na antiguidade como hoje, contestavam a humanidade de Ulisses, as suas dúvidas, as fraquezas. Eles tinham uma verdade e a verdade era a que Ulisses tinha realizado uma viagem de barco no Mediterrâneo. Os sacerdotes, donos da verdade, queriam que a Ilíada e a Odisseia se resumissem a uma viagem de um grego no Mediterrâneo. Um cruzeiro!

Há dois mil e trezentos anos, Aristóteles glosou essa interpretação manipuladora dos sacerdotes e dos poderosos fazendo o seguinte resumo da Odisseia, aquilo que os anglo-saxónicos designam por storyline: “Certo homem anda errante muitos anos fora do seu país, vigiado por Poseidon, entretanto em sua casa, os seus bens são desbaratados por pretendentes que conspiram também contra o seu filho. Então ele chega a casa, depois de sofrer uma tempestade e, dando-se a conhecer a alguns, ataca e salva-se matando os seus inimigos.

Quando leio resumos do que se está a passar na Ucrânia, efetuados por escritores e por críticos literários, por pessoas que por dever de ofício deviam estar habilitadas a fazer uma interpretação de um acontecimento histórico complexo, não posso deixar de me recordar do que escreveria um Aristóteles à “la minuta” a fazer a sinopse da guerra da Ucrânia: “Um malvado imperador da Rússia acordou mal disposto no dia 23 de Fevereiro de 2022 e foi ao seu Palácio. Gritou para os seus generais: Vamos invadir a Ucrânia, que me está a dar mau dormir!”

Aristóteles desnudou os que acreditam que a História é feita de reações pessoais a más alvoradas (como os compreendo!). A Ilíada passa-se durante a guerra de Troia e trata da ira de Aquiles causada por uma disputa entre ele e Agamemnon, comandante dos exércitos gregos em Troia, e consumada com a morte do herói troiano Heitor. Uma questão de poder, como parecia evidente a Aristóteles, mas não aos seus émulos à la minuta, os do seu tempo e os atuais que enxameiam televisões e jornais. A Odisseia é a história de um homem que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos. É uma história de descoberta e conhecimento. Da complexidade das relações entre seres e sociedades com visões do mundo que lhes são próprias. A Odisseia, como a Ilíada, são obras da inteligência, do senso, da cultura.

A questão da Ucrânia, para os aprendizes de Aristóteles à la minuta — os do pensamento dominante, está resolvida: Há um mau agressivo que invade o território de um bom pacífico. O Aristóteles tinha toda a razão: a Odisseia é a viagem do senhor Ulisses pelo Mediterrâneo organizada por uma agência de viagens.

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O autor: Carlos Matos Gomes [1946-] é coronel do exército reformado, cumpriu três missões na Guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, nas tropas especiais dos “Comandos”. Ficou ferido em combate e foi condecorado com as Medalhas de Cruz de Guerra de 1.ª e 2.ª Classe.

Capital de Abril pertenceu à Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné.

Investigador de história contemporânea de Portugal. É escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz.

Autor de: Nó Cego (1982), Os Lobos não Usam Coleira (1995), Soldadó (1996), Flamingos Dourados (2004), Fala-me de África (2007), Basta-me Viver (2010), A Mulher do Legionário (2013), A Estrada dos Silêncios (2015), A Última Viúva de África (2017, Prémio Fernando Namora 2018), Que fazer contigo, pá? (2019), Angoche-Os fantasmas do Império (2021). Em co-autoria com Aniceto Afonso: Guerra Colonial (2000), Guerra Colonial – Um Repóter em Angola (2001), Portugal e a Grande Guerra 1914-1918 (2013), Os Anos da Guerra Colonial 1961-1975 (2010), Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo. Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra colonial (2013), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. Uma História Diferente (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. As Trincheiras (2014), Portugal e a Grande Guerra 1917 – 1918. Uma Guerra Mundial (2014), Portugal e a Grande Guerra 1919-. O Pós-Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1918 – 1919. O fim da Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914- O Início da Guerra (2014), A Conquista das Almas. Cartazes e panfletos da acção psicológica na guerra colonial (2016).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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