A Guerra na Ucrânia — “Das moscas do mercado”. Por Carlos Matos Gomes

Seleção de Francisco Tavares

5 m de leitura

Das moscas do mercado

 Por Carlos Matos Gomes

Em 4 de Agosto de 2022 (original aqui)

 

Das moscas do mercado é uma frase-título do livro «Assim Falava Zaratustra», de Friedrich Nietzsche. “Das moscas do mercado”: “Foge, meu amigo, para a solidão! Vejo-te ensurdecido pelo ruído dos grandes homens e picado pelos ferrões dos pequenos”.

Parece-me uma apreciação adequada ao tempo que vivemos. Os ditos grandes homens, e grandes mulheres, aqueles que determinam a nossa vida venderam-nos um conjunto de felicidades futuras se os apoiássemos na guerra contra a Rússia. O diabolizado presidente da Federação Russa, que invadira a pacífica e ordeira Ucrânia, governada por um quase santo revelado nas televisões locais. Havia que repor a ordem e punir o agressor. Nós, as moscas, éramos convocados para a gesta dos grandes homens e mulheres.

Nietzsche tinha uma opinião sobre os grandes homens e mulheres que governavam o mundo quando chega o momento de verificar o balanço entre promessas e realizações:

“Tornaram-se todos outra vez devotos; estão a rezar, estão doidos!” (…) E, de facto, todos aqueles homens superiores, os dois reis, o Papa aposentado, o maligno enfeitiçador, o mendigo voluntário, o viajante sombra, o velho vaticinador, o consciencioso do espírito e o homem mais feio, estavam de joelhos, todos como crianças ou velhinhas piedosas, e adoravam o burro. E, nesse preciso momento, o homem mais feio começou a gorgolejar e a bufar como se algo inexprimível dele quisesse sair; mas quando, realmente, conseguiu chegar a articular palavras, eis que surdiu uma estranha e devota ladainha para glorificação do adorado e incensado burro. Ora, essa ladainha rezava assim: “Ámen! Louvor, honra, sabedoria, gratidão, recompensa e força ao nosso Deus, de eternidade em eternidade!” Ao que o burro, porém, zurrou: “Hi-han!”

Os grandes homens e mulheres de hoje não parecem muito distintos do retrato que dele fez Nietzsche e zurram, até gritarem: Salve-se quem puder!

As promessas que os grandes homens colocaram em saldo na abertura das hostilidades foram o enfraquecimento da Rússia, o que aumentaria a nossa segurança e bem-estar, além de nos apaziguar a consciência com a certeza de estar do lado do Bem. Pelo caminho, se se lembram, além de se libertar dos oligarcas russos e dos seus mísseis apontados ao coração da Europa e dos seus tanks que poderiam chegar à Península Ibérica (isto foi afirmado!) a Europa, de uma vezes União Europeia, de outras NATO, de outras Ocidente, libertava-se da dependência energética da Rússia (nenhum grande homem falou de como a substituir), mas as fábricas (em particular as alemãs) continuariam a funcionar mesmo sem gás e as casas a ser aquecidas ou arrefecidas sem energia. Tudo seria verde. As sanções apenas atingiriam a Rússia. E foi montado um gigantesco espetáculo de perseguição aos oligarcas russos (com imagens de iates e palácios para reforçar a mensagem do vamos a eles!). Também surgiram cenas da saída dos hambúrgueres da MCDonald, do fecho das Zara, da Chanel, do cancelamento da importação de caviar e vodka (os milionários russos não tinham acesso às marcas de luxo e os milionários europeus não comiam caviar beluga nem caviar — ficariam pela lagosta e pelas ostras, que com champanha vão muito bem!).

Nenhum dos grandes homens e mulheres ocidentais falou dos cereais e dos fertilizantes para o pão dos pobres, produtos que a Rússia continuou a exportar e que a Rússia impediu a Ucrânia de exportar. Nunca foi referido o risco de fome mundial. Desde a pobre rainha Antonieta que se sabe que os ricos comem brioches! Nenhum grande homem ou mulher falou de inflação, desemprego, pobreza, regresso ao carvão e à energia nuclear, ou às lareiras!

No pacote de promessas das moscas do mercado, estava incluída desvalorização brutal do rublo, uma inflação insuportável, que iriam provocar tumultos por toda a Rússia e derrubar o regime, dele emergindo, de dentro das matrioskas, uma réplica de Zelenski, fiel e submisso. Para já é o euro que se desvaloriza e são os dirigentes ocidentais que estão na corda bamba.

Mais adiante, com o evoluir da invasão, grandes homens e mulheres da nossa Europa apresentaram a hipótese de levar todos os dirigentes políticos da Federação Russa a tribunal, para serem julgados por crimes de guerra, contra a humanidade e o mais que fosse. Deve ter havido quem, acreditando em contos do vigário, já imaginasse um oficial de diligências e um Bobby inglês, com o capacete preto a bater à porta do Kremlin para colocar algemas em todo o governo e chefias militares russas, por ordem de Boris Johnson, ou do secretário da NATO!

Toda esta mercadoria foi exposta e promovida por vendedores excitados, nos grandes meios de manipulação de opinião, que funcionou num regime entre um anúncio de lotaria e uma licitação permanente de lota. Simplícios e adventícios foram arrebanhados e trazidos aos púlpitos para venderem as moscas deste mercado. Os príncipes petroleiros da Arábia foram convertidos em democratas, inimigos como Maduro passaram a sócios, o turco Erdogan passou a salvador dos aflitos, a crise ambiental desapareceu.

Resta-nos a nós, as moscas atraídas ao mercado pelos grandes homens e mulheres, olhar para eles e interrogá-los sobre as suas previsões, sobre as promessas dos seus sermões da montanha, aquele que foi dedicado aos bem-aventurados pobres de espírito, se se recordam. E que somos nós, enquanto quisermos ser, assim tomados.

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O autor: Carlos Matos Gomes [1946-] é coronel reformado do exército, cumpriu três missões na Guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, nas tropas especiais dos “Comandos”. Ficou ferido em combate e foi condecorado com as Medalhas de Cruz de Guerra de 1.ª e 2.ª Classe.

Capital de Abril pertenceu à Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné.

Investigador de história contemporânea de Portugal. É escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz. Autor de: Nó Cego (1982), Os Lobos não Usam Coleira (1995), Soldadó (1996), Flamingos Dourados (2004), Fala-me de África (2007), Basta-me Viver (2010), A Mulher do Legionário (2013), A Estrada dos Silêncios (2015), A Última Viúva de África (2017, Prémio Fernando Namora 2018), Que fazer contigo, pá? (2019), Angoche-Os fantasmas do Império (2021). Em co-autoria com Aniceto Afonso: Guerra Colonial (2000), Guerra Colonial – Um Repóter em Angola (2001), Portugal e a Grande Guerra 1914-1918 (2013), Os Anos da Guerra Colonial 1961-1975 (2010), Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo. Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra colonial (2013), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. Uma História Diferente (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. As Trincheiras (2014), Portugal e a Grande Guerra 1917 – 1918. Uma Guerra Mundial (2014), Portugal e a Grande Guerra 1919-. O Pós-Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1918 – 1919. O fim da Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914- O Início da Guerra (2014), A Conquista das Almas. Cartazes e panfletos da acção psicológica na guerra colonial (2016).

 

 

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