REFLEXÕES EM TORNO DA DEMISSÃO DE MARTA TEMIDO, por JÚLIO MARQUES MOTA

Marta Temido demitiu-se, Não pretendo aqui elogiá-la ou criticá-la mas sim lamentar que ela não tenha posto o dedo na ferida quanto às causas que estão por detrás das razões da sua demissão que, ao contrário da nossa imprensa, não acredito sejam sobretudo emocionais. Lamento que as não tenha colocado na mesa, lamento que dessas não se fale de forma séria e creio mesmo que a fulanização da sua demissão feita pela imprensa é uma forma de se esconder as profundas razões que poderão estar na origem da sua demissão. Claramente a saúde pública está um caos e a sua demissão é um reconhecimento disso mesmo. Mas… é sobretudo isto, um caos que vem de muito longe e de que muita gente tem culpa. Talvez seja ela a menos culpada.

Anexo a esta nota, envio uma análise de Jean-Claude Werrebrouck feita sobre os problemas de saúde em França, que não são muito diferentes dos que se passam em Portugal, e sobre o comportamento de seis ministros da saúde, logo seis ministros- onde o autor afirma:

“Ao terem consciência do problema, e estando conscientes dele há várias décadas, os ministros que apenas abordaram levemente as questões impossíveis de resolver, aquelas que se tornaram as simples consequências de uma compra política de renda de escassez ao longo dos últimos 50 anos, tornaram-se cúmplices de uma situação. Não basta dizer que “não tínhamos os meios”, que as decisões foram “tomadas acima”, etc. Quando conhecemos a realidade do problema e vemos que não pode ser resolvido, devemos pelo menos expô-lo claramente e recusar participar no grande naufrágio dos cuidados: demitir-se é então um dever.” Fim de citação

A Marta Temido não tinha os meios, isso é claro como água, logo recomendava-se aquilo que Jean-Claude Werrebrouck propõe: a demissão- Fê-lo tarde demais e não sei se terá coragem para nos explicar as razões estruturais que estão por detrás da situação da saúde pública que estamos a viver. Esperemos para ver.

Lembram-se de Adalberto Fernandes, lembram-se da sua afirmação: somos todo Centeno, ou dito de forma mais direta, somos defensores da política de austeridade? Lembram-se dos contentores que existiram durante  anos para crianças no Porto a sofrerem de cancro em que para a solução da situação faltava apenas a assinatura de Centeno que nunca mais chegava? E com Centeno nunca veio. Lembram-se das longas filas de espera para consultas e intervenções cirúrgicas nos hospitais públicos? E lembram-se de ouvir falar de parques de máquinas avariadas para ressonâncias magnéticas ou outros exames médicos complexos? Lembram-se de ouvir falar em faltas graves de equipamento hospitalar ou de equipamentos verdadeiramente em fim de vida útil nos hospitais? Mas eramos todos Centeno, dizia o ministro da Saúde!

Um dado curioso quanto a Adalberto Fernandes: a direita temeu pelas contas públicas com a sua nomeação porque considerava que fosse demasiado gastador, era acusado disso, e ele sai porque afinal foi todo ele austeridade. Disso ninguém falou. Seria também curioso que algumas das suas posições em aulas de mestrado em saúde pública se tornassem públicas, que se visse que era um bom analista dos problemas da saúde, dos problemas de que não resolveu uma palha sequer enquanto ministro! Disso escrevi páginas e páginas tomando como exemplo o caso da minha neta e do Hospital Pediátrico de Coimbra, para não me repetir aqui. Mas era desses problemas e das suas causas que se devia falar agora, porque esses são os mesmos de hoje, diferem apenas na gravidade que é agora muito maior. Substituir ministros e não mudar de política, o que tem feito o malabarista do nosso primeiro-ministro, é atirar pura poeira para os olhos. É isso que se tem feito e é isso que a imprensa também continua a fazer, ignorando o problema estrutural e fulanizando a situação na pessoa da ministra.

Falar da situação a sério é também falar das carreiras dos profissionais de saúde, é uma verdadeira vergonha a situação presente, de médicos, enfermeiros, paramédicos, da estrutura e funcionamento das Faculdades de Medicina deste país, provavelmente a viverem muito de professores tarefeiros também elas. É mais barato, diz-se. Mas resolver a situação destas  é resolver também a mesma situação  em todas as outras carreiras na função pública, e isso é que Bruxelas não quer admitir e o PS e PSD  também não. Mas é por aqui que passa a principal raiz do problema, do epifenómeno da morte de ontem que leva Temido a demitir-se. Falar do problema de carreiras profissionais é falar do desmantelamento das carreiras feito por Sócrates, Passos Coelho e por um dos seus ministros de eleição, Paulo de Macedo, premiado depois e levado por António Costa a Presidente da Caixa Geral dos Depósitos com mais de 400 mil euros de remuneração por ano. Falar disto é falar da Troika,  é falar da política austeritária e suicida imposta por Bruxelas e disso nem o PS, nem o PSD nem os media querem falar. É isso que eu lamento neste enorme ruido à volta da demissão de Marta Temido.

Mas como se mostra no artigo de Jean-Claude Werrebrouck acima referido, o problema não é português, é europeu, deriva do modelo de política económica e social escolhido pela União Europeia e em particular pela zona Euro. Veja-se os resultados dessa política na Inglaterra, país que não pertencia à zona euro mas em que Cameron praticou a mesma política austeritária e suicida decidida que em Bruxelas. Diz-nos o conservador Victor Hill:

“Como a crise no Serviço Nacional de Saúde está a afetar as atitudes para trabalhar

É cada vez mais evidente que os atrasos record no SNS, com 6,6 milhões de pessoas – quase 10% da população do Reino Unido – à espera de tratamento crítico, deixou milhões incapazes de trabalhar. E não é apenas a espera pela operação, é também a espera pelo diagnóstico. O Reino Unido está de novo a tornar-se “o homem doente da Europa” (como foi apelidado em meados dos anos 70) num sentido bastante literal, na medida em que há milhões de pessoas que querem trabalhar mas não podem por razões médicas, tais como problemas de mobilidade. Estima-se que 2,3 milhões de pessoas estão desempregadas devido a doença prolongada.

O Reino Unido gasta aproximadamente a mesma proporção do PIB em cuidados de saúde que a França e a Alemanha, que no entanto têm muito mais médicos e camas hospitalares per capita do que nós. De acordo com o grupo de reflexão Civitas, as despesas de saúde no Reino Unido ascendem a £10.000 por agregado familiar por ano.

No entanto, todos os dias surgem novas histórias de horror de pacientes idosos que são mantidos em carrinhos nos corredores durante dias, de ambulâncias que não chegam às vítimas de ataques cardíacos durante horas e de esperas de 48 horas para tratamento em A&E. E ainda é Verão: muitos temem que as coisas sejam piores no Inverno, quando Covid poderá reaparecer, bem como a gripe. Entretanto, as ausências do pessoal do SNS permanecem bem acima dos níveis pré-Covid, e o número de médicos tem diminuído. Existem cerca de 100.000 vagas de emprego dentro do Serviço Nacional de Saúde (NHS). Como resultado, o Serviço Nacional de Saúde gasta 6 mil milhões de libras por ano em médicos locais e pessoal de agências.

Uma explicação possível para o fraco desempenho do NHS é que os britânicos eram menos saudáveis do que os seus homólogos franceses e alemães antes de Covid. Eram mais gordos e menos ativos. Apesar do renascimento da gastronomia britânica nos últimos anos, muitas pessoas continuam a comer mal. Além disso, a crise dos cuidados sociais implica que muitos idosos residam em hospitais, ocupando preciosas camas hospitalares, quando deveriam ter alta adequada para receberem cuidados residenciais. Em comparação, os Países Baixos têm, alegadamente, excelentes cuidados domiciliários, o que permite aos hospitais enviar pessoas idosas frágeis de volta para as suas casas sem receio de consequências adversas. Outra estatística aterradora: a OCDE classificou o Reino Unido em 27º dos 38 países para a mortalidade infantil e em 20º para a mortalidade materna.

O Reino Unido tem agora um volume de mão-de-obra menor do que tinha antes do Covid. Pelo contrário, a dimensão da força de trabalho aumentou em França, Alemanha e Espanha desde que a pandemia foi atenuada. Memorando a Rishi Sunak e Liz Truss: não se pode resolver o problema do mercado de trabalho até que se conserte o SNS.” Fim de citação.

Relativamente ao Reino Unido lembram-se da política de Passos Coelho, segundo o qual os nossos quadros deveriam abandonar a sua zona de conforto e sair para o estrangeiro? Lembram-se que houve turmas inteiras de enfermeiros que se foram embora algumas delas inteirinhas para um ou outro dos hospitais ingleses. Isto verificou-se porque os ingleses não tinham pessoal qualificado em quantidade: precisavam de o “importar” e fizeram-no para gáudio de Bruxelas e de Passos Coelho, com este a querer ir mais longe que Troika, sem nenhum custo de formação. Oferecemos “capital nacional e  público” aos ingleses.

Nada disto está em discussão com a demissão de Marta Temido e deveria estar.

Faro, 30 de Agosto de 2022

Júlio Marques Mota

1 Comment

Leave a Reply