Dedico esta série de textos à memória de dois amigos meus, António Mateus e Arnaud Lantoine, dois professores para mim de referência, um que trabalhou na Escola Secundária D. Dinis, e o outro foi professor na Alliance Française e tradutor- interprete de conferências, ambos vítimas de doença prolongada. Dois professores que no seu campo de trabalho se bateram pela dignificação do ensino. Bem hajam, é o que posso dizer, em forma de definitiva despedida. A série é constituída por um texto de Introdução e seis textos. Hoje publicamos o texto 4. O Plano Republicano para Devastar a Educação Pública na América, de Brynn Tannehill.
JM |
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
10 m de leitura
Texto 4. O Plano Republicano para Devastar a Educação Pública na América
Publicado por em 11 de Agosto de 2022 (original aqui)
Os Conservadores falam de “liberdade de escolha da escola”. O que eles realmente querem, porém, resultará no fim da educação pública para os pobres, e desfavorece as minorias como os LGBT.

Os republicanos, e os conservadores brancos, há muito que são hostis às escolas públicas. A dessegregação escolar levou a que os evangelistas brancos se tenham tornado, demograficamente, o mais forte grupo republicano. Ronald Reagan prometeu acabar com o Departamento de Educação em 1980. Trump colocou Betsy DeVos à frente do Departamento de Educação, precisamente porque ela era uma das principais defensoras (e financiadora) da redução ou do fim do financiamento das escolas públicas e defensora da canalização dos fundos para as escolas religiosas. Durante as suas audiências de confirmação para o cargo tornou-se claro que ela não sabia nada sobre educação, e dava respostas plagiadas e ridiculamente más às perguntas que lhe eram feitas, afirmando que os professores precisam de armas para evitar ataques de ursos pardos.
Os candidatos republicanos falam de “escolha escolar” e de colocar Deus e a oração de novo nas escolas. O que eles realmente querem, porém, resultará no fim da educação pública para os pobres, e para as minorias desfavorecidas como os LGBT.
O seu plano é semelhante a isto: Os pais recebem um vale de vários milhares de dólares que sai do orçamento estatal da educação. O dinheiro pode ser gasto em propinas para escolas à sua escolha, públicas ou privadas, microescolas (ensino coletivo em casa), ou ensino regular em casa. Os republicanos dizem que o “dinheiro vai para as crianças”. Na realidade, reduz o dinheiro que vai para as escolas públicas a um ponto em que as escolas serão dramaticamente subfinanciadas.
Estados conservadores como o Arizona, Flórida, e Texas têm sido particularmente agressivos na reforma da “escolha da escola” que reduz o financiamento das escolas. O candidato ao governo da Pensilvânia (e insurreccionista nacionalista cristão) Doug Mastriano vai um passo mais além. O seu plano educacional é eliminar os impostos sobre a propriedade, que é de onde vem metade do dinheiro para as escolas da Pensilvânia, e substituir as receitas perdidas por vales de 9.000 dólares. Isto cobre apenas metade do que custa educar um estudante.
A redução das despesas públicas com a educação em mais de metade iria destruir as escolas públicas para milhões de estudantes. Ao contrário das escolas religiosas privadas, elas devem cumprir a Lei dos Americanos com Deficiência (ADA) e outros regulamentos estaduais e federais, criando uma sobrecarga de despesas. Reduções drásticas na qualidade educacional seriam necessárias para continuar a satisfazer mesmo os requisitos mais básicos, indo muito além da eliminação da arte, música, educação física e conselheiros escolares.
Na maioria dos casos, as escolas públicas seriam forçadas a confiar fortemente na “ciber-aprendizagem“, em que uma criança recebe uma tablete e assiste a vídeos educativos e programas de aprendizagem, recebendo pouco ou nenhum tempo real de instrução. A remuneração e os requisitos dos professores seriam drasticamente reduzidos, ao ponto de ser elegível qualquer pessoa que passasse uma verificação de antecedentes e pudesse distribuir tabletes de manhã e pelo salário mínimo. Já existe uma escassez desesperada de professores nos Estados Unidos, e cortes drásticos nas despesas educacionais garantem mais pessoas não qualificadas nas salas de aula.
Infelizmente, a utilização de vouchers para escolas privadas também não é viável para a maioria das pessoas. O valor em dólares dos vouchers equivale a vários milhares dólares menos do que a maioria das escolas públicas independentes (charters schools) ou escolas privadas (geralmente religiosas) cobram. No Arizona, mesmo os defensores do programa de vales escolares (também chamados “Contas Poupança-Estudo- Education Savings Accounts”, ou ESAs) admitem que eles cobrem cerca de dois terços das propinas na maioria das escolas privadas, deixando os pais responsáveis por milhares de dólares em custos que terão de pagar.
A história da Flórida com vales escolares mostra-nos onde isto nos leva: os estudantes mais pobres a quem se promete uma educação melhor acabam por ficar em escolas públicas independentes de baixo custo e baixa qualidade em centros comerciais abandonados que cessam frequentemente a sua atividade com pouco ou nenhum aviso, com resultados devastadores para os estudantes. Os republicanos de todo o país asseguraram que há pouca ou nenhuma supervisão das escolas públicas independentes e que não têm de cumprir muitos regulamentos estatais em matéria de educação. Isto é ostensivamente para fomentar a “inovação”, mas na realidade é para as tornar mais lucrativas, e esconder o quanto muitas delas são fracas. Em Ohio, como Jane Mayer relatou no seu novo e envolvente artigo sobre a destruição que os republicanos de direita fizeram nesse estado, depois de uma década de agentes do Partido Republicano andarem a desviar o financiamento das escolas públicas e a direcioná-lo para escolas públicas independentes mas politicamente ligadas, a classificação estadual deste Estado em termos de educação passou de quinto para 31º lugar a nível do país.
O resultado é uma tremenda variância na qualidade das escolas públicas independentes, refletindo, na sua maioria, o financiamento de que dispõem. “Permitir que o mercado decida” não criou uma maré crescente que levante todos os barcos; os estudantes com menos dinheiro recebem uma educação pior, e as escolas públicas independentes não parecem produzir melhores resultados em geral. Sai-se de um sistema com aquilo que se coloca nele, e os republicanos querem colocar o mínimo possível na educação.
A supervisão do ensino em casa e das microescolas é ainda pior. Não há forma de garantir que o dinheiro da ESA seja gasto em despesas educacionais reais, em vez de ser embolsado para outras despesas. Não há normas ou requisitos para o ensino em casa. Não há visitas domiciliárias às escolas ou microescolas para ver se estão a ensinar o que é suposto ensinar. Optar por não fazer testes padronizados é geralmente fácil; tudo o que se tem de fazer é encontrar alguém com um certificado de ensino no referido Estado para assinar um formulário declarando que a criança está a ter um desempenho conforme ao seu nível escolar. Isto torna simples o encobrimento de atos ilícitos, abuso, fraude e de negligências.
As escolas religiosas privadas são, em muitos aspetos, piores. Muitas delas foram fundadas por segregacionistas no rescaldo da sentença do Supremo Tribunal Brown v. Conselho de Educação de 1954 e permanecem hoje quase todas brancas (e racistas). Há muito pouca supervisão governamental sobre as escolas religiosas, o que facilita a corrupção e os abusos. Não têm de cumprir a ADA ou o Título IX, o que leva à discriminação (mas, de um modo geral, a resultados mais elevados nos testes, uma vez que as crianças mais pobres e os estudantes com necessidades especiais são geralmente excluídos). Também não têm de cumprir as leis estatais de direitos civis que protegem os estudantes LGBT, ou mesmo os estudantes com pais, parentes ou amigos LGBT.
Da mesma forma, estas escolas podem funcionar como saídas para a doutrinação religiosa e política: ensinando que a terra tem 6.000 anos, ou promovendo o disparate anti-histórico jingoísta contido no Relatório de 1776. O fundador de Turning Point USA, Charlie Kirk, iniciou uma rede de Academias de Turning Point no Arizona, com planos de expansão a nível nacional. A primeira escola tem cerca de 600 estudantes e abrirá em Glendale neste Outono, graças a uma parceria entre Kirk e a mega igreja de Phoenix Dream City.
Se as estratégias acima referidas forem aplicadas a nível nacional, a única forma de os pais pobres darem aos seus filhos uma educação decente exigiria que contraíssem empréstimos ou enviá-los para escolas privadas que operam como campos de doutrinação. O Supremo Tribunal está a fazer a sua parte, decidindo em Carson v. Makin que as leis estaduais não podem barrar as escolas religiosas a terem acesso aos fundos públicos.
Além disso, o Texas planeia contestar a decisão do Supremo Tribunal no processo Plyler vs. Doe, que exigia que os estados disponibilizassem a educação pública a todos os estudantes. O desafio do Governador Greg Abbott baseia-se na premissa de que o estado não tem obrigação de educar estudantes que não sejam cidadãos americanos, mas o impacto poderia ser muito mais amplo. As decisões do Supremo Tribunal (particularmente Dobbs vs. Jackson) demonstraram que não tem qualquer problema em emitir decisões radicais que têm impactos devastadores e generalizados.
Assim, uma decisão ampla que derrubasse completamente o Plyler é muito plausível, e teria um impacto muito maior do que referir-se apenas a estudantes não documentados. Poderia ser amplamente utilizada para cortar a educação ao ponto de todas as escolas públicas poderem dar-se ao luxo de enviar um aluno para casa sem nada a não ser uma tablete e uma lista de lições em linha para estudar. Isto iria muito além dos efeitos dos cortes orçamentais a que já estamos a assistir, tais como grandes turmas, semanas escolares reduzidas, e professores não qualificados.
Teriam ampla latitude para se recusarem a ensinar quem não fizesse os seus trabalhos de casa, que se tivesse metido em problemas disciplinares, que tenha dificuldades com as tecnologias, que não acompanhem o nível escolar ou literalmente por qualquer outra razão que não viole tecnicamente a lei federal, num esforço para cortar custos. Doug Mastriano deu a entender que não é possível ensinar alguns estudantes por causa da sua vida doméstica, e que o Estado não tem qualquer obrigação de gastar dinheiro a tentar fazê-lo.
O jogo final é ainda mais feio; há uma série de credores predadores e instituições religiosas bem financiadas que adorariam ver as pessoas a contrair empréstimos para colocar os seus filhos em escolas decentes. Tudo o que o Partido Republicano tem de fazer é deixar o valor dos vales e das ESA estagnar, ou reduzi-los ao longo do tempo, para criar o sistema educacional que sempre quiseram: um sistema em que os pobres não-brancos e os LGBT não conseguem obter uma educação decente, e em que os cristãos brancos conservadores sejam fortemente favorecidos.
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A autora: Brynn Tannehill é licenciada pela Academia Naval, antiga aviadora naval e analista sénior de defesa. Livro mais recente: American Fascism: How the GOP is Subverting Democracy