CARTA DE BRAGA – “do Ulisses a Borges” por António Oliveira

Há muitíssimas maneiras de ler uma qualquer obra, por muito universal que seja.

O francês Sylvain Tesson, geógrafo, viajante e também um prestigiado escritor, resumiu assim e brevemente, numa entrevista recente, a emoção que lhe provocou o Ulisses da ‘Odisseia’ de Homero, Desventurado, inteligente e egoísta; sabe o que quer e é sábio, pois regressa de uma guerra; recupera o seu espaço, na também sua ilha de Ítaca, o tempo e a sua ascendência com Laertes, seu pai e vê que a glória póstuma nada vale, comparada com o calor simples do lar. É a grande mensagem do poeta; Ulisses podia ter sido imortal com Calipso, mas preferiu ser mortal, sobrevive na memória da humanidade-.

Outra interpretação de uma leitura ‘histórica’ foi dada por Mark Twain, de acordo com a escritora e jornalista Berna Harbour, num artigo publicado recentemente num diário europeu, sobre a adaptação, talvez demasiado rápida de Adão e Eva à vida cá fora, depois de terem sido banidos do Paraíso, Conseguimos várias peles de animais mortos; pedi a Eva para os coser, para termos trajes adequados para as ocasiões públicas. Tenho que admitir que ela me faz muita companhia; disse-lhe que a partir de agora temos de trabalhar para ganhar a vida, pois assim está determinado. Nisto ela vai ser-me muito útil, pois eu sou o encarregado de dirigir-.

Quando passei pelas notas onde tinha estes resumos, lembrei-me de ter um dia lido, num texto qualquer de Shakespeare, que o passado era apenas um prólogo, por tanto se poder adequar ao nosso como ao da humanidade, mas um prólogo resistente às diferentes interpretações, até porque ‘Apenas isto é negado a Deus: o poder de desfazer o passado’, escreveu Agaton, o poeta grego que viveu no século V a.C.; mas poderá mesmo ser apenas um rascunho, ou umas notas mal escritas, sobre o que os homens viveram em tempos antigos, que possam também ser recontadas cada vez que as voltarmos a ler ou a ouvir.

Mas a História é feita desses rascunhos, das muitas estórias que cada um ouve e interpreta à sua maneira, dependendo da ‘arte’ do narrador, que põe em cada parágrafo o tom da sua voz ou da sua escrita, sabendo perfeitamente a quem se destina ou a quem o ouve pois, já o afirmou Woody Allen, ‘A única diferença entre uma comédia  e um drama, está onde se coloca o ponto final’ e isso pertence sempre ao ‘artista’.

A grande questão que nos poderemos colocar parece ser o do futuro para a leitura, se a entenderemos como o símbolo do prazer para a pessoa alfabetizada e a base de toda a prática comunicativa, a escrita-; escrita que e, aparentemente, ainda se prolongará durante mais alguns tempos, apesar de todas as campanhas de alfabetização de massas, tanto nacionais como mundiais, mesmo em países avançados, terem ultimamente incidido em potenciar a leitura, mas não a capacidade de escrita.

Tudo isto poderá e deverá vir a ter alguma interpretação, por também vermos os temas de Humanidades irem perdendo importância nos currículos escolares, sabendo que a escrita é uma prática individual e livre, que se pode exercer em qualquer lugar e de qualquer modo, podendo produzir o que se queira, mesmo ao lado de qualquer controlo ou censura, sabendo nós como, ao mesmo tempo, aqueles temas fornecem também as bases e os fundamentos para a prática da escrita.

Entenda-se esta minha questão como consequência da perplexidade com que vou vendo as programações e os índices dos meios mais generalistas, e também me sinto cada vez mais atraído pelos conteúdos por mim escolhidos nos dos canais menos vistos, quase escondidos, que a net nos pode proporcionar, muitos deles conseguidos pelo método do ‘manda-me esse site por mensagem ou por mail’.

Manuel Rivas, poeta, escritor e jornalista, isto para voltar ao princípio desta Carta escreveu há já uns meses, ‘No dia em que Eva comeu o fruto da árvores proibida, nasceu a liberdade. O melhor da humanidade foi esse acto de desobediência no Paraíso’.

Mas, não por isso, mas por tudo o resto, tenho medo de algum dia poder vir também a repetir para mim mesmo, o que Jorge Luis Borges escreveu um dia ‘Estou só e não há ninguém no espelho’.

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

2 Comments

  1. Amigo, como gosto de ler o que escreves!!Não há uma só palavra que se ” deite fora”,,,Tudo de interesse! É UM VERDADEIRO PRAZER QUE QUERO PARTILHAR JÁ…o MEU AB
    RAÇO!

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