DO PENSAMENTO OFICIAL A ALGUMAS LINHAS DE FRATURA, SOBRE A GUERRA DA UCRÂNIA – UMA SÉRIE DE TEXTOS – VI – DEVEMOS DIZÊ-LO. A RÚSSIA É FASCISTA, por TIMOTHY SNYDER

 

We Should Say It. Russia Is Fascist., por Timothy Snyder

New York Times, 20 de Maio de 2022

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota 

Revisão de João Machado

Ilustração pelo New York Times;  Fotografia de  Clive Rose, Alexander Nemenov, e Kirill Kudryavtsev, via Getty Images

 

O fascismo, enquanto ideia, nunca foi derrotado .

Na medida em que se trata de um culto à irracionalidade e à violência, não podia ser derrotado como argumento: Enquanto a Alemanha nazi pareceu forte, os europeus e outros sentiram-se tentados. Foi apenas nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial que o fascismo foi derrotado. Agora está de volta – e desta vez, o país que trava uma guerra de destruição fascista é a Rússia. Se a Rússia vencer, os fascistas de todo o mundo ficarão confortados.

Erramos ao limitar os nossos receios de fascismo a uma certa imagem de Hitler e do Holocausto. O fascismo era de origem italiana, popular na Roménia – onde os fascistas eram cristãos ortodoxos que sonhavam com uma  violência purificadora – e tinham adeptos por toda a Europa (e América). Em todas as suas variedades, tratava-se do triunfo da vontade sobre a razão.

Devido a isso, é impossível defini-lo de forma  satisfatória.  As pessoas discordam, frequentemente com veemência, sobre o que constitui o fascismo. Mas a Rússia de hoje satisfaz a maioria dos critérios que os estudiosos tendem a aplicar. Tem um culto em torno de um único líder, Vladimir Putin. Tem um culto dos  mortos, organizado em torno da Segunda Guerra Mundial. Tem um mito de uma era de ouro passada de grandeza imperial, a ser restaurada por uma guerra de violência curativa – a guerra assassina contra a Ucrânia.

Não é a primeira vez que a Ucrânia é objeto de uma guerra fascista. A conquista do país foi o principal objetivo da guerra de Hitler em 1941. Hitler pensava que a União Soviética, que então governava a Ucrânia, era um Estado judeu: Ele planeou substituir o domínio soviético pelo seu próprio e reivindicar o solo agrícola fértil da Ucrânia. A União Soviética ficaria à fome, e a Alemanha tornar-se-ia um império. Imaginou que isto seria fácil porque a União Soviética, na sua opinião, era uma criação artificial e os ucranianos um povo colonial.

As semelhanças com a guerra de  Putin são impressionantes. O Kremlin define a Ucrânia como um estado artificial, cujo presidente judeu prova que não pode ser real. Após a eliminação de uma pequena elite, pensa-se então,  as massas de nível cultural rudimentar aceitariam de bom grado o domínio russo. Hoje em dia é a Rússia que nega ao mundo a comida ucraniana, ameaçando com a fome o Sul global.

Muitos hesitam em ver a Rússia de hoje como fascista, porque a União Soviética de Estaline se definiu como antifascista. Mas essa utilização  não ajudou a definir o que é o fascismo – e é pior do que confuso hoje em dia. Com a ajuda de americanos, britânicos e outros aliados, a União Soviética derrotou a Alemanha nazi e os seus aliados em 1945. A sua oposição ao fascismo, porém, foi inconsistente.

Antes da ascensão de Hitler ao poder em 1933, os soviéticos tratavam os fascistas como apenas mais uma forma de inimigo capitalista. Os partidos comunistas na Europa deviam tratar todos os outros partidos como o inimigo. Esta política contribuiu de facto para a ascensão de Hitler: Embora fossem em maior número do que os nazis, os comunistas e socialistas alemães não podiam cooperar uns com os outros. Depois desse fiasco, Estaline ajustou a sua política, exigindo que os partidos comunistas europeus formassem coligações para bloquear os fascistas.

Isso não durou muito tempo. Em 1939, a União Soviética juntou-se à Alemanha nazi como aliado de facto, e as duas potências invadiram a Polónia juntas. Os discursos nazis foram reproduzidos na imprensa soviética e os oficiais nazis admiravam a eficiência soviética nas deportações em massa. Mas os russos hoje em dia não falam deste facto, uma vez que as leis da memória fazem disso um crime. A Segunda Guerra Mundial é um elemento do mito histórico de  Putin sobre a inocência russa e a grandeza perdida – a Rússia deve gozar de um monopólio sobre a vitimização e a vitória. O facto básico de Estaline ter permitido a Segunda Guerra Mundial ao aliar-se a Hitler deve ser insondável e impensável.

A flexibilidade de Estaline sobre o fascismo é a chave para compreender a Rússia de hoje. Sob Estaline, o fascismo era primeiramente  indiferente, depois era mau, depois estava bem até – quando Hitler traiu Estaline e a Alemanha invadiu a União Soviética – ser novamente mau. Mas nunca ninguém definiu o seu significado. Era uma caixa na qual qualquer coisa podia ser colocada. Aconteceu que comunistas foram purgados como fascistas em julgamentos de fachada. Durante a Guerra Fria, os americanos e os britânicos tornaram-se os fascistas. E o “antifascismo” não impediu Estaline de visar os judeus na sua última purga, nem os seus sucessores de fazerem a amálgama entre Israel e a Alemanha nazi.

O antifascismo soviético, por outras palavras, era uma política de nós e eles. Isso não é uma resposta ao fascismo. Afinal, a política fascista começa, como disse o pensador nazi Carl Schmitt, a partir da definição de inimigo. Porque o antifascismo soviético apenas significava definir um inimigo, oferecia ao fascismo uma porta traseira através pela qual podia regressar à Rússia.

Na Rússia do século XXI, o “antifascismo” tornou-se simplesmente o direito de um líder russo a definir inimigos nacionais. Aos verdadeiros fascistas russos, como Aleksandr Dugin e Aleksandr Prokhanov, foi dado tempo nos meios de comunicação social. E o próprio  Putin recorreu ao trabalho do fascista russo de entre as duas guerras Ivan Ilyin. Para o presidente, um “fascista” ou um “nazi” é simplesmente alguém que se opõe a ele ou ao seu plano de destruir a Ucrânia. Os ucranianos são “nazis” porque não aceitam que sejam russos e resistem.

Um viajante do tempo dos anos 30 não teria qualquer dificuldade em identificar o regime de Putin como fascista. O símbolo Z, os comícios, a propaganda, a guerra como ato de violência purificadora  e as fossas de mortes em redor das cidades ucranianas tornam tudo isto muito claro. A guerra contra a Ucrânia não é apenas um regresso ao campo de batalha tradicional fascista, mas também um regresso à linguagem e prática tradicional fascista. Os outros povos existem para serem colonizadas. A Rússia é inocente por causa do seu passado antigo. A existência da Ucrânia é uma conspiração internacional. A guerra é a resposta.

Porque Putin fala de fascistas como o inimigo, podemos ter dificuldade em compreender que ele possa, de facto, ser fascista. Mas na guerra da Rússia contra a Ucrânia, “nazi” significa apenas “inimigo sub-humano” – alguém que os russos podem matar. O discurso de ódio dirigido aos ucranianos torna mais fácil assassiná-los, como se viu  em Bucha, Mariupol e em todas as partes da Ucrânia que têm estado sob ocupação russa. As valas comuns não são um acidente de guerra, mas uma consequência esperada de uma guerra fascista de destruição.

Fascistas que chamam a outras pessoas “fascistas” é o fascismo levado ao seu extremo ilógico como um culto de irracionais. É um ponto final onde o discurso do ódio inverte a realidade e a propaganda é pura insistência. É o apogeu da vontade sobre o pensamento. Chamar outros fascistas enquanto se é fascista é a prática essencial de Putinista. Jason Stanley, um filósofo americano, chama-lhe “minar a propaganda“. Já lhe chamei “esquizofascismo“. Os ucranianos têm a formulação mais elegante. Eles chamam-lhe “ruscismo“.

Compreendemos mais sobre o fascismo do que na década de 1930. Sabemos agora onde ele nos levou. Devemos reconhecer o fascismo, porque então sabemos com o que estamos a lidar. Mas reconhecê-lo não é desfazê-lo. O fascismo não é uma posição de debate, mas um culto da vontade que emana da ficção. Trata-se da mística de um homem que cura o mundo com a violência, e esta será sustentado pela  propaganda até ao fim. Só pode ser desfeito por demonstrações da fraqueza do líder. O líder fascista tem de ser derrotado, o que significa que aqueles que se opõem ao fascismo têm de fazer o que é necessário para o derrotar. Só então é que os mitos caem por terra.

Tal como na década de 1930, a democracia está em recuo  em todo o mundo e os fascistas têm-se movimentado em  fazer a guerra aos seus vizinhos. Se a Rússia vencer na Ucrânia, não será apenas a destruição de uma democracia pela força, embora isso já seja suficientemente mau. Será uma desmoralização para as democracias em todo o lado. Mesmo antes da guerra, os amigos da Rússia – Marine Le Pen, Viktor Orban, Tucker Carlson – eram os inimigos da democracia. As vitórias fascistas no campo de batalha  confirmariam que a força faz a lei, que o uso da razão é para os vencidos, que as democracias devem falhar.

Se a Ucrânia não tivesse resistido, esta teria sido uma primavera negra para os democratas de todo o mundo. Se a Ucrânia não ganhar, podemos contar com décadas de escuridão.

 

Timothy Snyder é professor de história na Universidade de Yale e convidado (fellow) permanente no Instituto de Ciências Humanas em Viena. É autor de numerosos livros, entre os quais Bloodlands: Europe Between Hitler and StalinOn Tyranny: Twenty Lessons From the Twentieth Century

Também pode ler este artigo clicando nos links abaixo: 

Opinion | Russia’s War on Ukraine Shows That It Is Fascist – The New York Times (nytimes.com)

We Should Say It. Russia Is Fascist. – Revista de Prensa (almendron.com)


Leia também a crítica de David North a este artigo, publicada originalmente na World Socialist Web Site, e traduzida para A Viagem dos Argonautas por Júlio Marques Mota. Clique em:  

DO PENSAMENTO OFICIAL A ALGUMAS LINHAS DE FRATURA, SOBRE A GUERRA DA UCRÂNIA – UMA SÉRIE DE TEXTOS – VII – HISTÓRIA E PROPAGANDA DE GUERRA: TIMOTHY SNYDER FALSIFICA O PAPEL DO FASCISMO UCRANIANO, de DAVID NORTH

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