O espírito de Natal, da mensagem de Cristo, da humanidade quando vestida de fraternidade — Texto 1. Presépio 2022, por José Veiga Torres e Comentário, por Júlio Marques Mota

Dedico a publicação desta série de textos sobre a quadra de Natal, intitulada O espírito de Natal, da mensagem de Cristo, da Humanidade quando vestida de fraternidade a todos aqueles que esta quadra não têm ou que a têm mas não da forma como a desejaram viver, em particular a todos aqueles a quem a doença minou a alegria com que a mesma quadra é geralmente sentida, como é o caso do meu amigo Joaquim Feio, um amigo de longa data, dos seus tempos de estudante do ISEG.

 

JM


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Texto 1. PRESÉPIO – 2022

Cruzam-se estrelas no céu,

tantas que se faz dia,

que até o sol se escondeu

de tão cínica sinfonia!

 

De Oriente e de Ocidente,

estilhaçam cidades e a gente

em fuga para o presépio-abrigo,

sem merecer tal castigo!

 

Que é dos reis magos de outrora,

que travem o Herodes de agora?

Que é dos singelos pastores

ouvindo boas venturas?

Que é dos anjos trovadores

cantando a paz das alturas?

 

Porquê, porquê, afinal,

pensar que ainda há Natal?

 

                   José Veiga Torres – Natal de 2022

 

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Presépio da Basílica da Estrela em Lisboa, do mestre Machado de Castro, séc. XVIII

 

Sobre o poema “PRESÉPIO – 2022”, de José Veiga Torres

 

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 21 de dezembro de 2022

 

Um poema sobre a presença do Natal, sobre a ausência de Natal, um poema que nos emociona profundamente e em que a inquietação que nos provoca é de tal modo que nos deixa sem fôlego.  

Um poema belo no terror que descreve e contra este nos posiciona ao limite do que é humanamente pensável e aqui relembro o amigo Jaime Ferreira para quem o belo e o terror podem por vezes estar de mãos juntas, por paradoxal que tal afirmação possa parecer. É o caso aqui tanto quanto a violência do sentido das palavras pelo poeta cantadas nos coloca também como corresponsáveis pelo absurdo do mundo que estamos a viver.

Mas ao desencanto do poeta quando nos canta e interroga cruamente” porquê, porquê, afinal/pensar que ainda há Natal?” direi a relembrar o espírito de Natal de Dickens que o Natal de Cristo e da cultura ocidental é mais uma miragem a seguir do que uma realidade à escala cósmica a sentir. Mas não percamos essa ideia de Natal, essa ideia de estrela que nos conduz ao caminho da fraternidade entre os homens, à criação de fios invisíveis de solidariedade humana que ainda nos ligam e que o Natal serve e de que maneira para poderem ser reafirmados.

Se no momento presente nada mais podemos fazer, façamos reproduzir esse espírito na esfera das nossas influências, das nossas relações, dos nossos sentimentos. Relembro aqui a este nível um pequeno detalhe. Há já algumas semanas houve uma recolha de alimentos para o Natal no Pingo Doce na Avenida Calouste Gulbenkian em Coimbra. No último dia em que funcionava a recolha, diz-me a minha mulher: já que vais ao Pingo Doce não te esqueças de contribuir para o Banco Alimentar. Foi o que fiz e aceitei um saco de papel para recolha.

Sem me aperceber dei por mim a escolher para o Banco Alimentar apenas produtos de marcas que eram referência em minha casa, arroz Saludães, massas Milaneza e outras, leite Matinal ou Açores, leite chocolate Mimosa eventualmente para crianças, salsichas Nobre, bolachas Milka e Oreo, latas de atum Bom Petisco e aqui senti-me obrigado a chamar um empregado para me dizer onde estavam as latas de atum em azeite, o atum que se consome em minha casa. Pela parte que me toca, ao escolher os produtos da melhor qualidade, na minha opinião, e ao olhar para aquelas prateleiras cheias do que muitos não podem ter, não podem comer, lembrei-me do filme A festa de Babette sobre quem chega ao fim da vida e não tem nada, nem Natal, acrescento eu.

Chegado à caixa e separados os produtos que eram para minha casa, os produtos para o Banco Alimentar não cabiam no saco de papel. Chamou-se uma das voluntárias da recolha para me dar um outro saco de papel. Dirijo-me à equipa de recolha do Banco Alimentar com os dois sacos e esta equipa era constituída por duas pessoas apenas, mãe e filha. Aceitam os dois sacos e ouço um obrigado sô doutor dito com muita ternura. Não conheci nem mãe nem filha. Como explicação para me conhecerem tenho apenas uma: chego à conclusão de que aquela mãe teria algum filho ou filha que terá sido meu aluno. Respondi-lhe sem mais dizendo-lhe: se alguém aqui deve dizer obrigado sou eu, e fui-me embora. O que naquela receção simbólica me comoveu foi que aquela mãe estava ali com uma adolescente entre os 15-20 anos a fazer dois trabalhos socialmente úteis.

-a recolha dos bens alimentares enquanto voluntária

-a ensinar à filha os caminhos nem sempre fáceis da solidariedade humana.

Não será isto o espírito de Natal? O espírito que naquela manhã unia aquela mãe e aquela filha ao mundo que não sendo o delas era também o delas, não é isso também o espírito de Natal? Se o é, e para mim é, não deixemos morrer o espírito de Natal, procuremos que mais gente o partilhe quer pelo que dá quer pelo que recebe, esta é parte da minha resposta à pergunta levantada pelo poeta José Veiga Torres. Eu próprio, pelo que recentemente descrevi sobre a minha vida no tempo do fascismo, direi que se o menino pobre que eu fui se transformou no adulto que eu sou, terá sido também pelo espírito de Natal de muita gente que com esse menino pobre se cruzou.

Respondo assim a um primeiro nível sobre a pergunta deixada no ar pelo poeta José Veiga Torres. Quanto ao segundo e mais importante nível que o poema levanta: o do plano político que gerou a situação presente pelo mundo e o que o leva justamente a questionar “Porquê, porquê, afinal, /pensar que ainda há Natal?”. Mas o que poderei dizer quanto a isto, é que politicamente é necessário e urgente voltar ao espírito dos homens que em tempo de guerra só sonhavam com a paz contra o espírito dos homens de hoje que em tempo de paz só sonharam com a guerra e aí as têm por esse mundo fora; é preciso que voltemos ao espírito de 45, onde pela primeira vez e em grande escala se quiseram criar Instituições à escala planetária com o objetivo de tornar este nosso mundo bem melhor do que o que então era e do que é agora também, onde se teceram as grandes linhas de combate à precariedade social, onde se teceram sonhos de dignificação do trabalho e do trabalhador, exatamente o contrário do que governos ditos de esquerda e de direita têm feito nas últimas décadas em que têm tomado o trabalho e o trabalhador como a grande variável de ajustamento face às suas más opções de políticas económicas e sociais. Tomemos três exemplos, para lá da grande questão das guerras: a situação atualmente vivida em termos das estruturas da saúde em Portugal, sem meios humanos e sem meios técnicos por falta de investimentos públicos durante décadas, somos todos Centeno é o que se dizia, a situação de caos que se vive na Inglaterra onde o sistema de saúde parece estar bem pior do que o nosso, e de tal forma que mesmo os conservadores consideram que o primeiro grande passo para saírem da crise é refazer o Sistema Nacional de Saúde agora em situação de manta de retalhos e com estes a estarem bem esfarrapados, e, por fim, veja-se  a terrível situação social, económica e política que se vive na América Latina, como se uma enorme maldição tenha caído sobre este continente, um continente que tem funcionado desde há muitas décadas como um quintal dos Estados Unidos. E podíamos continuar.

Que a estrela de Belém, o espírito de Natal, nos ilumine a todos nós nesse trabalho de resposta ao que é preciso fazer para que o poema de José Veiga Torres deixe de ter o sentido brutal que tem hoje. Um trabalho de Hércules, sabemo-lo.

 

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