O espírito de Natal, da mensagem de Cristo, da humanidade quando vestida de fraternidade — Texto 3. Ajuda ou esmola ? Por Júlio Marques Mota

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Texto 3. Ajuda ou esmola? 

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 1 de Janeiro de 2023

 

Um amigo meu e de longa duração – o que há cada vez menos -, mostrou-me alguma indiferença ou mesmo desagrado quanto a dois textos meus a editar em A Viagem dos Argonautas [1]: num deles eu falava em ter dado dois pacotes de alimentos para o Banco Alimentar, (aqui uma relativa indiferença assumida) e num outro, um texto de Jean-Pierre Willem de que não gostou mesmo nada, ao contrário de várias amigas minhas que muito reconhecidamente acusaram a receção do texto.

Num mundo verdadeiramente democrático nada disto é em si relevante para se falar no assunto: viver em democracia é viver amigavelmente com aqueles de quem gostamos mesmo quando deles discordamos. Mas nestas coisas há sempre um que discorda, e isto não tem nada a ver com a amizade, tem a ver com a perceção do imaginário coletivo que cada um de nós pode ter sobre as vivências em sociedade e perante situações de precariedade ou de crenças.

No caso do Banco Alimentar, ouvi desde a minha entrada na situação de jovem adulto, e dito por alguns universitários que mais tarde como figuras políticas preencheram dignamente as colunas dos jornais, que fazer o que fiz é contribuir para que o mal que estaria a querer reduzir não fosse socialmente contrariado por políticas exigíveis para a sua solução, antes pelo contrário, corria o risco de serem ainda aprofundadas. É, por outras palavras, a tese de quanto pior melhor, ou seja, quanto mais as pessoas estão mal mais estas se revoltam mais a revolução pode ficar ali, ao virar da esquina. Essa era a tese dos jovens universitários, supostamente marxistas, dos anos da década de 60.

Nada disto é verdade. Como exemplo citemos o conto de referência para esta época: o conto de Natal de Dickens. Se tal tese tivesse historicamente sido sustentada, a realidade descrita no conto de Dickens é tão violenta que teria de ter dado em revolução total e não deu nada disso. Dir-me-ão que estou intencionalmente a escolher um caso de ficção, mas se o acharem, eu não acho. Faço minha a recomendação de Francisco Pereira de Moura que aos seus alunos no final dos anos 60 e princípio de 70, entre os quais estava eu, recomendava a leitura dos textos de Marx para se perceber a dureza do capitalismo no século XIX. Não havia melhor, dizia ele. Mesmo assim, se quisermos antes olhar para a frente do nosso nariz, tenha-se em conta a política económica e social de Bolsonaro e veja-se o seu resultado eleitoral de agora. Mas um cínico pode retorquir-me que isso é a América Latina. Sem querer discutir este ponto olhemos então para a Grã-Bretanha, uma potência económica a cair de pobre, onde as greves se sucedem sem que nada se diga sobre o assunto. Sobre a Grã-Bretanha alguns dados:

14,5 milhões de pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza no Reino Unido (8,1 milhões de adultos em idade ativa, 4,3 milhões de crianças, e 2,1 milhões de pensionistas). O aumento massivo dos preços e o declínio contínuo dos salários, após mais de dez anos de austeridade, significa que se espera que 1,3 milhões de pessoas se encontrem na pobreza absoluta até 2023, incluindo 500.000 crianças. Após o rápido crescimento do número de bancos alimentares, particularmente desde 2013-2014, e depois de ver muitas escolas tentarem substituir os serviços sociais falidos, uma nova rede de “bancos quentes” está agora a ser organizada: museus, bibliotecas, etc., estão a planear acolher pessoas que têm de deixar de ter aquecimento em casa. Resta saber quantos destes edifícios públicos serão capazes de fazer face ao aumento massivo o das suas contas de aquecimento e eletricidade.

O seu primeiro-ministro uma das grandes fortunas do mundo e um antigo da Goldman Sachs gabou-se em agosto de 2022 de “ter reafectado fundos das zonas mais pobres das cidades do norte do país para as cidades da classe média do sul. Numa polaridade social agora perfeita, cada uma destas crianças [atingidas] pode incorporar o prémio de “seriedade”, “competência” e “estabilidade”, a estar finalmente de volta, segundo muitos comentadores, já não ao serviço da oligarquia dominante, mas agora diretamente nas mãos de um dos seus representantes”.

A lógica do quanto pior melhor, a lógica da fome para uma revolução, para uma inversão sustentada do sistema, não, não chega. E os exemplos encheriam páginas.

Situemo-nos então no imediatismo da vida e das necessidades que as pessoas sentem. A prazo, a visão dos jovens marxistas dos anos 60 a que acima me refiro poderá estar correta. Mas não sei, ou melhor, duvido muito que possa estar correta. E a razão é simples: nenhuma revolução pode ser bem-sucedida se aquilo que a detona não for um forte desenvolvimento das forças produtivas e neste desenvolvimento terá de estar contida uma forte consciência política sobre o que se quer e sobre o que se não quer, politicamente. Não basta, pois, o quanto pior melhor.

No imediato, a tese destes jovens marxistas é falsa. As pessoas para fazerem a revolução a prazo precisam de estar vivas e de viver a partir do imediato em que se situam com as suas necessidades específicas. Não podem esperar pela revolução do amanhã longínquo quando precisam de se alimentar hoje. Esta é a minha opinião e é em face dela que escrevi o que escrevi como comentário ao poema de José Veiga Torres. Não o querer perceber é dar origem a que outros tipos de ideologias ocupem politicamente o espaço criado pela revolta resultante da não satisfação das necessidades básicas de largas camadas de população. E é por aqui que entram os populismos, sobretudo os de direita.

Mas evidentemente a minha posição face ao Banco Alimentar não pode ser confundida com a ideia de esmola que tem um cariz individualizado e até uma tonalidade fortemente depreciativa sobre quem a recebe. Mesmo aqui é preciso ter cuidado. Quatro exemplos:

 

1º Caso

Um dia, por volta de 2012-2014 estava eu com o meu vendedor de jornais a tomarmos um café na Tosta Rica, quase em frente ao seu quiosque. Estávamos a falar sobre a crise de chumbo que estávamos a sofrer em Portugal. Somos interrompidos por alguém que se abeira de nós e que, de uma forma polida nos pede que o ajudemos a comer alguma coisa ali, naquele café-pastelaria, hoje Farmácia Machado. Olhamos e ambos sentimos que aquele homem pedia não por opção, mas por necessidade pura e simples e também por razões que a sociedade como um todo era responsável: ele e a companheira estavam no desemprego e os apoios sociais em nome da Troika e de se ir mais longe que a Troika, a malfadada tese de Passos Coelho, estavam bloqueados.

Um de nós ou os dois ao mesmo tempo, já não me lembro bem, dissemos-lhe a ele e também à empregada do café: sirva até 4 euros o que este senhor pedir. Foi servido de um galão e de um croissant. Foi o que pediu. Olho e vejo que deixa o croissant no balcão e leva o galão à companheira, que não tínhamos visto pois tinha ficado de fora do estabelecimento. Quando regressou para levar o croissant dissemos-lhe, a ele e à empregada: repita a dose. A dose foi repetida e foi-lhes pedido a eles ainda o seguinte; entrem e sentem-se numa mesa, por favor.

Agora que escrevo isto, relembro-me dos tempos de adolescente e do meu tempo de marçano em que vários clientes meus se ofereciam para me dar almoço sempre que eu não gostasse da comida que o meu patrão me dava, mas que não fosse a casa deles pela escada de serviço. Ali, na Tosta Rica, passava-se, sem que eu me apercebesse, uma situação equivalente à que eu vivi há longas décadas: que não comessem na rua, que se sentassem numa mesa de café, eram clientes como quaisquer outros, tão dignos quanto outros de carteira recheada, da mesma forma que eu não deveria ir como marçano a casa de ninguém para comer. Só percebi isso mais tarde. Eles entraram e sentaram-se. Depois vieram-nos agradecer, comovidos, comovidíssimos.

É isto esmola? Não, não o é, é o respeito pela precariedade do Outro, pela situação para a qual o Outro foi lançado pela sociedade ou até só pelo azar.

 

2º Caso.

Vou à loja do cidadão em Coimbra. À saída, depare-se-me alguém a pedir esmola, alguém que pela forma de vestir, de estar, de pedir, era alguém que fez do pedir o seu modo de vida. Recusei e virei as costas: ao virar-me ouvi, com o tipo ainda especado, que estava desempregado, que estava só, que tinha fome. Virei-me para ele e disse-lhe: vamos à pastelaria ali ao lado e escolha o que quiser até 3 euros. Houve enorme dificuldade em escolher alguma coisa para comer, o que ele queria era apenas o dinheiro. Aqui sim, tratou-se de esmola, aqui sim, eu estaria a contribuir para que a situação da pessoa se mantivesse ou pior, para que se degradasse ainda mais, na sua situação de pedinte por opção.

 

3º caso

Hoje mesmo, 31 de dezembro, estou na caixa do Pingo Doce com a minha filha a comprar-lhe um cabaz para a passagem do ano na sua casa, para que não tivessem de se deslocar para a minha casa, dado o muito mau tempo que se anuncia. À minha frente está alguém com dificuldades de dinheiro. Estou distraído a conversar com a minha filha e vejo apenas a empregada da caixa chamar a coordenadora das caixas para neutralizar um produto já registado. O dinheiro do cliente não chegava. Vejo depois ser posto de lado um pacote de arroz. Estou distraído, mas face a isto olho, a operação está neutralizada e a coordenadora das caixas sai de cena. A seguir, o cliente dá uma nota de 10 euros para pagar as suas compras. Pensa que chega, mas também não tem mais, nem um cêntimo mais. A empregada da caixa diz-lhe que são dez euros e 80 cêntimos. O senhor retira do saco mais um produto e entrega‑o à empregada de caixa: um pacote de 3 sumos para crianças. Assim já chegaria o dinheiro. A empregada, que não percebeu como neutralizar a encomenda, chama de novo a coordenadora para neutralizar um segundo registo na caixa. Aí intercedo e digo: não chame, eu pago a diferença. Se não estivesse a falar com a minha filha, eu estava, portanto, quase de costas para a pessoa que estava à minha frente com dificuldades para pagar, ter-me-ia apercebido da situação e teria evitado a primeira neutralização de registo, a do referido pacote de arroz. Repare-se na ordem de devoluções: primeiro o arroz, depois a bebida das crianças. Talvez não tenha tido reflexos suficientemente rápidos para o evitar, pois agora que estou a descrever a situação poderia ter “pedido” para ser reposto o pacote de arroz. Não me veio à cabeça, e é pena. Nesta sequência, pago e saímos. Garantidamente, isto não é esmola, mas é o mesmo que eu fiz com o Banco Alimentar, com a diferença de que aqui a importância é ridiculamente pequena.

À saída do Pingo Doce, a minha filha conta-me uma pequena história e quanto a esta eu diria que pena não haver um outro Mário Castrim para escrever uma pequena nota sobre, como fez com tantas outras e tão magistralmente que ainda retenho algumas na memória, o que passo a contar. Está a minha filha a passear na Avenida Gulbenkian quando é abordada por alguém que lhe pede esmola. Como muita gente da sua geração não traz dinheiro líquido na mala ou nos seus bolsos. Maquinalmente mete a mão na mala e diz: tenho muito pena, não tenho nenhuma moeda. E a resposta é fantástica: se não tem moedas, isso não tem importância, tem telemóvel, dê-me o dinheiro pela aplicação! Estes pedintes de aplicação na mão, de tecnologias da modernidade na ponta dos dedos para se manterem no modo de vida que escolheram, serem pedintes, mostra-nos a sociedade que estamos a criar. Mas isto não tem nada a ver com o Banco Alimentar, repito.

 

4º caso

Um dia, já vão décadas, estava eu na estação dos caminhos- de- ferro em Coimbra, acompanhado pelo Xavier de Basto e creio que também pelo Sousa Andrade para apanharmos o comboio Alfa para Lisboa. Entretanto chega uma senhora africana apressada para comprar o bilhete para Lisboa. Sai da bilheteira esbaforida. Perdeu o comboio anterior, Intercidades, só havia Alfa e em primeira, ou um regional que chegaria horas depois a Lisboa. Vi-a atrapalhada e muito. Atrevi-me a perguntar o que se passava. Contou-me o que se passava, mas do que me contou lembro-me apenas que não tinha dinheiro para o comboio Alfa: era bem mais caro para a bolsa daquela mulher de escudos contados que tinha urgência em chegar a horas e era um motivo quase de força maior. Não havia telemóveis, tinha familiares à espera em Santa Apolónia, não os podia contactar sequer. Ofereci-me para lhe emprestar o dinheiro que faltava e aceitou. Ficou com o meu endereço postal e eu não pedi o dela, intencionalmente. Naquele momento e antes do Alfa chegar fui mais que gozado pelo meu amigo Xavier e creio que pelo Andrade por considerarem que fui levado pelo conto do vigário. Éramos três e creio que o terceiro era o Sousa Andrade. Meses depois, um a dois meses, recebo um vale do correio com o dinheiro em dívida.

É isto esmola? Claro que não. Poderia ficar sem o dinheiro, é certo, mas não é menos verdade que hoje faria o mesmo e nunca seria por mim tomado como esmola: no caso de não haver retorno colocaria apenas a hipótese de ter perdido o meu endereço e nada mais que isso. A dor da alma não engana, desde que tenhamos a sensibilidade para a ouvir, nas múltiplas formas em que esta se pode manifestar E ali, os dados emocionais bem presentes na cara, no timbre e na tremura da voz, diziam-me que a necessidade era autêntica. O conceito de ajuda como esmola, como acima disse, depende do contexto e este contexto de que agora falo não tem nada a ver com a ideia de esmola, mas sim com ajuda ao próximo numa situação que materialmente este não queria criar.

 

Estamos na quadra natalícia e talvez valha aqui lembrar Charles Dickens sob a leitura feita por um dos autores da série, porque, no fundo, o que está em jogo nesta pequena história sobre o comboio que se perdeu e sobre o que se apanhou é sabermos colocarmo-nos no mundo dos outros, como está implícito no Conto de Natal de Charles Dickens. Diz-nos Darran Anderson em “A Grã-Bretanha está assombrada por fantasmas dickensianos”:

Temos mais formas do que nunca de comunicar, exceto as formas tangíveis que realmente nos importam. Podemos ter passado das velhas fogueiras à lareira e em ambientes pan-geracionais, dos banquetes e serviços de cântico de Natal, das missas da meia-noite e dos brindes da meia-noite, para a sofisticação de salas vazias cheias de nada mais do que fantasmas tecnológicos. Scrooge, o avarento, não parece ser uma figura contemporânea da nossa era de desregramento, mas isto seria uma leitura errada, pois é o solipsismo do seu ego que leva Scrooge até onde ele se definhava e se transcendia, sendo isto que o redime no final e o ajuda a encontrar o seu lugar. O solipsismo assume muitas formas diferentes, mas só há um caminho para se sair dele. Esta é a natureza do verdadeiro lugar estreito, um portal através do qual deixamos as nossas câmaras de eco e egos e nos encontramos nos mundos uns dos outros. Temos de sair e vaguear fora de nós próprios, para que não nos reduzamos a sombras de nós mesmos. Como está escrito em Um Conto de Natal: “É exigido de cada homem”, responde o fantasma, “que o espírito dentro dele caminhe para o exterior entre os seus semelhantes, e viaje até longe; e, se esse espírito não o faz em vida, está condenado a fazê-lo após a morte”.

A beleza e a graça do Natal vêm porque é um alívio temporário das dificuldades e é o renascimento da esperança nas profundezas do inverno. É uma ilha, cheia de luzes, alegria, caridade e união, num mar de trevas. Ou, pelo menos, poderia ser isso mesmo. Quanto mais nos esquecemos disso como indivíduos ou como sociedade, mais corremos o risco de nos encontrarmos na escuridão, isolados do mundo, como fantasmas do que poderíamos ter sido.” Fim de citação

No fundo, sem que eu o soubesse, penso sabê-lo agora, não terá isto a ver com a mensagem de Cristo que aprendi enquanto criança e que tento, embora mal, reproduzir enquanto adulto? Não será este a razão de fundo que me levou a gostar tanto da poética do texto de Jean-Pierre Willem? Penso que sim, e, de novo, afastamo-nos da ideia de esmola e aproximamo-nos da ideia de fraternidade.

Ainda quanto ao segundo texto, é um texto poético do qual emana o fundamental da mensagem de Cristo e da forma como está exposta representa uma forte perceção do imaginário religioso de qualquer país de formação católica, um imaginário que, no que me toca, nunca abandonei mesmo que hoje eu nada tenha a ver com o catolicismo. E o que os textos da série nos mostram que o mesmo se passa em várias latitudes.

Vejamos mais uma vez um exemplo pessoal. Entre os 8 e os 10 anos, entre 1951 e 1953, terei assistido a uma missa em que tinha sido convidado o Padre Aparício, um homem nascido na minha terra e que era padre, salvo erro, em Cernache do Bonjardim ou em Tinalhas. O sermão incidiu sobre a Parábola do filho pródigo. O curioso deste sermão é que uma vez saídos da Igreja, eu e mais três ou quatro crianças da mesma idade, chorámos com a revolta face à história relatada. Parvos, nós, aquelas crianças a chorarem de raiva contra o filho pródigo? Não, não o creio. Isto não é muito diferente de ver a minha neta mais velha chorar quando tinha entre 12 e 14 anos a ver um filme que acabava mal. Ora, este exemplo mostra como a mensagem de Cristo uma vez apreendida fica em nós enraizada, fica a fazer parte do nosso imaginário. É desse imaginário, que muito respeito, que nos fala o texto de Jean-Pierre Willem e foi em nome desse imaginário que este homem na casa dos 84 anos passou a sua vida de médico ao serviço dos pobres de todo o mundo.

E o que a série, toda ela, trata é exatamente da dívida que culturalmente todos nós temos para com a mensagem de Cristo mesmo que nos consideremos ateus, o que é o meu caso.

Excertos de textos da série:

  1. “O Natal é uma daquelas alturas em que, como disse um escritor muito anterior, Dante: “Não há maior tristeza do que recordar na miséria o tempo em que éramos felizes”. E que época é mais feliz, ou mais melancólica quando irrecuperável, do que um Natal de infância? Os escritores vitorianos sabiam que quando estamos sozinhos no Natal, uma época que parece intrinsecamente destinada aos entes queridos que se reúnem (a perpétua renovação do presépio), são os nossos fantasmas, suportados pela memória, ausência e arrependimento que em vez disso nos chegam”.
  2. “A beleza e a graça do Natal vêm porque é um alívio temporário das dificuldades e é o renascimento da esperança nas profundezas do inverno. É uma ilha, cheia de luzes, alegria, caridade e união, num mar de trevas. Ou, pelo menos, poderia ser isso mesmo. Quanto mais nos esquecemos disso como indivíduos ou como sociedade, mais corremos o risco de nos encontrarmos na escuridão, isolados do mundo, como fantasmas do que poderíamos ter sido”.
  3. “Na Idade Média, nenhuma civilização na Eurásia era tão congruente com um único conjunto de crenças dominante como era o Ocidente latino com o cristianismo. Noutros lugares, quer nas terras do Islão, quer na Índia, quer na China, havia vários entendimentos do divino, e numerosas instituições que serviam para os definir; mas na Europa havia apenas a estranha comunidade de judeus para perturbar o monopólio total da Igreja. Tal como os humanistas fazem hoje, lançou os seus valores e ideais como universais – “católicos”. Do amanhecer ao anoitecer, do meio do Verão às profundezas do Inverno, da hora do seu nascimento ao último sentir do seu sopro, os homens e mulheres da Europa medieval absorveram as suas suposições até aos seus ossos”.
  4. “Mesmo quando, no século XVI, a cristandade começou a fragmentar-se, e novas formas de cristianismo a emergir, a convicção dos europeus de que a sua fé era universal permaneceu. Ela inspirou-os na sua exploração de continentes inimagináveis pelos seus antepassados, e nas suas tentativas de converter os habitantes que aí encontravam.

Hoje, numa época de realinhamento geopolítico sísmico, os nossos valores provam não ser tão universais como a maioria de nós no Ocidente os tinha assumido. A necessidade de reconhecer quão culturalmente contingentes eles são, e de não os confundir com a “natureza humana” é, talvez, mais premente do que nunca. Viver num país ocidental é viver numa sociedade que durante séculos – e em muitos casos milénios – foi completamente transformada por conceitos e pressupostos cristãos. Tão profundo tem sido o impacto do cristianismo no desenvolvimento da civilização ocidental, que se perde para lá do alcance da nossa vista”.

  1. “O Natal tornou-se central em três das mais importantes dificuldades com que se debate o ser moderno. A primeira é a nossa relação com a família e o parentesco, o tema que esteve sempre no centro da antropologia. Uma segunda é o problema de como conciliamos o nosso desejo de sermos cidadãos do globo na sua totalidade sem perder o sentido das especificidades das origens locais, ou a relação com os lugares de onde vimos. E o terceiro é a nossa problemática relação com o consumo de massa e o materialismo”
  2. “Os deuses declararam Cristo como sendo o mais santo”, segundo um filósofo sírio (e intensamente anticristo), Porfírio. Esta afirmação é confirmada pelos oráculos que subsistem. A deusa da noite, Hécate, chama Jesus “um homem supremamente justo”. Em contraste, Apolo ridiculariza-o como uma figura “iludida”, uma figura que foi forçada “a morrer cruelmente pela pior das mortes”.

O que devemos fazer deste rabino galileu empobrecido a quem um deus chamou “iludido” e uma deusa chamada “supremamente justo”, e que todos conhecem que sofreu “a pior das mortes”? Vinte e um séculos mais tarde, muito ainda depende da forma como respondermos a esta pergunta.” Fim da seleção de excertos.

E com isso desejo a todos Bom Ano Novo.

Júlio Marques Mota

 

 

Nota

[1] Textos que foram entretanto publicados, ver aqui e aqui.

 

 

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