O OUTRO BODE, IGUALMENTE IMARCESCÍVEL, por CARLOS REIS

 

Também eu tive, ainda que por pouco tempo, um bode quase tão imarcescível quanto este. Foi em Cabinda, num local com o nome romântico de Tando Zinze, que era um quartel onde estive uns tempos a comissionar.

A televisão ainda não tinha ali chegado, jogávamos ao King, contávamos as mesmas anedotas uns aos outros todos os dias, o capitão exigia migas de bacalhau também quase todos os dias, o calendário andava devagar.

E havia o bode. O bode era óptimo, em tons castanho/sépia, ruminava, estava sempre ali à mão, expectante, disposto a colaborar no que fosse preciso.

Existia também uma pele de leopardo a servir de tapete, junto a umas cadeiras de estar, onde nos dedicávamos a estar.

Mas o bode embirrava com a pele.

Descobrimos que bastava alguém pegar na pele e abaná-la frente ao focinho para ele se passar e desatar a bufar. Pronto! Um dos alferes em presença teve logo uma ideia e passámos a tourear o bode à vez, com a tal pele, faena em que ele colaborava, encantado – e nós, olé!

Alguém se lembrou também um dia de pegar numa grade de cervejas vazia (naquele tempo eram de madeira) e acenar à frente do animal, o qual, esfregadas as patas no chão, arremetia com um ímpeto notável, vindo a marrar estrondosamente na caixa, com a cornadura.

Não se pense em qualquer crueldade da nossa parte. O bode tinha uma caixa craniana extraordinariamente sólida, e ficava absolutamente na mesma – nós é que tínhamos de substituir as caixas, que se iam desfazendo, no decorrer daquelas sessões.

Sempre foi decentemente alimentado e revelar-se-ia, conforme fomos descobrindo, capaz mesmo de um sentido de responsabilidade, arrumação e limpeza insuspeitados. Podíamos deitar para o chão todo o tipo de lixo (cascas de fruta ou de batata, papeis, etc.) que ele, rápida e discretamente apanhava, mastigava e engolia.

A única gaffe sucedida (e de toda a sua inteira responsabilidade) foi ter entrado uma vez nas instalações da militança e ter comido uns autos, alguns processos, certidões e umas notas em dinheiro que alguém deixara descuidadamente ali à mão.

(Isto é tudo verdade, o que confere verosimilhança ao conto do Mário-Henrique Leiria).

Apesar da irritação do capitão (autos) e da soldadesca (dinheiro) não pudemos deixar de rir por uma data de dias.

Mas o bode possuía outras qualificações, traduzidas em mais vantagens e benefícios. Atiradas descuidadamente as beatas para o chão, ele, sem qualquer hesitação, apressava-se a degluti-las. Não fazia questão se eram com filtro ou sem filtro, não era absolutamente nada esquisito, nesse aspecto.

Nunca mais o vi. Trocámos ainda alguma correspondência, retirou-se da vida pública, creio mesmo que deixou de fumar.

Carlos

 

(1923 – 1980)

 

O bode imarcescível

 

Julião amava os animais. Tinha um gato siamês teólogo e desdenhoso, dois perdigueiros de olhos tristes e um basset activo e escavador. Também uma gaiola com três periquitos protestantes e tivera um papagaio de que se vira obrigado a separar-se, dadas as constantes críticas e comentários do mesmo acerca da situação vigente.

Mas realmente o que o encantava era o bode. Trouxera-o para casa ao voltar de umas ferias na montanha. O bode acompanhara-o sem fazer questão e isso comovera Julião. Era um bode jovem mas já com barba digna, que ficava a olhar para tudo com desdém, como prevendo inúmeras desgraças.

Afeiçoaram-se um ao outro. Julião esmerava-se no tratamento e o bode, compreendendo que estava numa casa de respeito, passara a marrar apenas em polícias e cobradores. Mas comia, comia muito, comia tudo.

Antes de ir para a repartição Julião cuidava carinhosamente dos animais. Os cães no quintal, o gato livre de tomar decisões as mais ousadas, os periquitos com milho painço, pevides e cânhamo. Quanto ao bode, deixava-o em casa, com couves abundantes na cozinha, não sem antes o passear nas traseiras e ter uma conversa séria com ele.

Um dia aconteceu o inesperado. Ao voltar a casa, à tarde, Julião encontrou o bode no escritório, sentado e a comer, voraz, a edição monumental de OS LUSÍADAS encadernada em couro azul-escuro e com ilustrações de Lima de Freitas. Só restava a capa, que era dura, e um pouco do canto nono. Ficou amargurado.

Que fazer? Como resolver aquilo? O bode podia voltar a ter apetências, lá se ia o Fernando Namora, o Eça, o Aquilino, sabe-se lá que mais! Não podia ser. E a solução surgiu-lhe. Levar o bode com ele para a repartição.

No dia seguinte, após as tarefas matinais, disse ao bode

– Vamos lá, meu velho.

Saíram. O bode comportou-se, sempre ao lado de Julião, olhando as montras. Apenas tentou investir com um polícia mas conteve-se entre a simpatia dos passantes.

Na repartição foi um alvoroço. “Olha um bode, olha um bode!”. O espanto era geral mas o bode, indiferente, sentou-se ao lado de Julião. E assim passaram os dias.

O bode ia de manhã para a repartição, almoçava na cantina com o Julião, passava a tarde sentado, observando a actividade múltipla da casa e indo lá dentro de vez em quando, e voltava à tarde ao lado de Julião, vendo as montras e mirando os polícias de través.

O diabo foi que um dia o bode teve um apetite feroz, como na altura de OS LUSÍADAS. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que faziam a cabeça em água aos funcionários. Não deixou senão os agrafos e as molas das pastas de arquivo.

O chefe agarrou-se à cabeça e mandou chamar o Julião.

– Que é isto?- disse, de sobrolho franzido, quando Julião entrou.

– Isto o quê, senhor doutor?-

– Isto – o chefe apontava para as sobras.

Julião observou bem e respondeu humilde:

– Parecem restos de agrafos, não parecem, senhor doutor?

– Foi o seu bode, senhor Julião. O seu bode. Não pode ser, isto é impossível – e gesticulava, apoplético. Aí o Julião não achou bem.

– Desculpe, senhor doutor, mas não tenho nada com isso. Não intervenho, nunca intervim, na vida de bode nenhum nem de qualquer outra pessoa. O bode é livre, fale com ele. E, pela primeira vez na sua vida de funcionário, virou as costas ao chefe e saiu ofendido.

O chefe aveio-se com o bode. Parece que se entenderam.

O Julião não foi incomodado e o bode passou a andar de um lado para o outro pelas salas e gabinetes.

O bode comia os processos, os processos ficavam arrumados. Os funcionários estavam encantados, escolhiam os melhores, os mais grossos e chamavam o bode.

Os tempos passaram.

Os chefes sucederam-se, os ministérios mudaram. O bode continuava na repartição, sempre jovem e activo.

Julião, já com o cabelo todo branco, reformara-se. O velho gato siamês fora juntar-se aos seus antepassados em Bubastis, os cães eram memória melancólica e a gaiola dos periquitos gritadores estava vazia. Apenas o bode continuava presente com amizade e ia todos dias para a repartição. Estava no quadro.

Foi então que se deu o acontecimento decisivo.

Poderoso, imarcescível, o bode entrou pelo gabinete do ministro e comeu, logo ali, o decreto de mobilização geral que estava a despacho.

Foi eleito deputado pelo povo em delírio.

Mário Henrique-Leiria

 

Este conto de Mário-Henrique Leiria integrou uma das suas obras maiores, Os Contos do Gin-Tonic, publicada pela primeira vez em 1973. Para ler sobre o autor e  a obra clique em: 

Contos do Gin-Tonic – Infopédia (infopedia.pt)

Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia Gin-Tonic? – Observador

ulfl122821_tm.pdf

 

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