MEDIUM
Qualquer entendimento do mundo deve partir de reconhecimentos basilares: o homem é um ser vivo que se encontra determinado pela natureza e esta engloba o seu próprio corpo como o mundo exterior.
A dependência, ou existência do seu corpo, com os impulsos animais que o governam, determinam o seu sentimento vital de sobrevivência e a sua consciência dota-o de uma conceção do mundo. O mundo é o meio onde o homem existe. Meios distintos originam diferentes conceções do mundo. «Na fome, no impulso sexual, na velhice e na morte, o homem vê-se sujeito aos poderes da vida natural. É natureza.» Os tipos de conceção do mundo, Wilhelm Dilthey.
Perceber a realidade exige conhecer as conceções do mundo dos homens e das sociedades em presença. Nós, os portugueses e os europeus em geral como membros da civilização que mais se difundiu pelo planeta devíamos ter aprendido a indispensabilidade de conhecermos as conceções dos outros para nos relacionarmos de forma vantajosa. A realidade da história, de hoje, demonstra que nada aprendemos, ou então que mantemos a convicção de que é o confronto e a imposição da nossa conceção a atitude que mais nos convém e que a arrogância supremacista é a marca da nossa civilização.
A atual guerra na Ucrânia distingue-se das anteriores na Sérvia, no Iraque, na Líbia, na Síria ou no Afeganistão pela alteração radical na situação de domínio do mundo por parte da Europa (e do ora crismado Ocidente alargado) que se iniciou com o Movimento Descolonizador após a Segunda Guerra Mundial. As conceções do mundo dos Estados europeus e dos Estados Unidos estão a ser rejeitadas com uma violência idêntica à da tentativa de imposição por parte dos 3/4 dos povos que foram dominados durante quatrocentos anos.
Os portadores de outras conceções do mundo dispõem agora do mesmo domínio da natureza que “nós” os do Ocidente e desenvolveram e dominam as mesmas máquinas e artefactos para o fazer.
O filósofo inglês Francis Bacon descreve em Novum Organum que as conceções do mundo resultam do domínio da natureza pelo homem, utilizando para isso atributos exclusivamente humanos, ampliados pelo engenho e pela arte. A grande rutura no pensamento europeu provocada pela obra de Bacon radica na introdução de um novo elemento para o saber dos homens e para caraterizar as sociedades, radica na importância central que atribui à aptidão para construir novos inventos e recursos que aliviem e melhorem a vida humana, a tecnologia. Um fator que os filósofos ainda hoje mais seguidos, os liberais que centram a criação de riqueza no comércio e os marxistas que sobrevalorizam o trabalho assalariado ignoraram. Adam Smith atribuiu a riqueza das nações à liberdade de comprar e vender e não nos artefactos que permitiram a compra e venda a grande distância: os grandes navios e os sistemas de navegação. Marx focou-se no trabalho, na alienação, no lucro, nos operários nas fábricas, mas desprezou a caldeira e a máquina a vapor que estiveram na origem da «revolução industrial» (algures entre 1760 e 1840) e do proletariado industrial, do sistema capitalista e do colonialismo. Marx aborda a colonização britânica da Índia, da China e da Irlanda, mas não o colonialismo que lhe é posterior.
A globalização, ao contrário do que o Ocidente (os EUA) pretendia, não criou apenas um mercado mundial onde os mais aptos a produzir artefactos de alto valor acrescentado os venderiam a elevado custo a troco de matérias primas dos dominados, também globalizou o saber construir esses artefactos, desde eletrodomésticos a bombas atómicas e satélites. Os «outros», os ¾ do planeta não aceitaram como haviam aceitado durante quinhentos anos as missangas e bugigangas, os panos e os pechisbeques que os descobridores ocidentais lhes ofereciam em troca de escravos, ouro e especiarias. Em trinta anos outras civilizações e outros espaços não apenas produzem o que o Ocidente produz, como por vezes o fazem melhor e quase sempre mais barato. Estamos a assistir na Ucrânia ao primeiro grande confronto resultante da globalização, a rejeição de um império mundial que emite moeda, impõe sanções, toma o espaço como sua propriedade e instalou 800 bases militares pelo planeta. Se esta guerra não descambar para o nuclear, o próximo confronto para os EUA manterem a supremacia mundial será com a China!
Os europeus tinham a experiência histórica de domínio de um espaço alargado, o Mediterrâneo. Em vez de senhores num mare nostrum, os atuais lideres europeus — continentais — preferiram ser serviçais numa colónia de um império que está contra o resto do mundo.
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