Para além da guerra na Ucrânia — “A Grande Polónia: o monstro geopolítico que se avizinha” , por Piccole Note

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 min de leitura

 

A Grande Polónia: o monstro geopolítico que se avizinha

Por Piccole Note

Publicado por  em 23 de Abril de 2023 (ver aqui)

Publicação original por  em 13 de Abril de 2023 (ver aqui)

 

 

Embora o confronto na Ucrânia permaneça incerto, é certo que a Polónia estará seguramente entre os vencedores desta guerra. A recente viagem do primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki a Washington relançou definitivamente esta perspectiva geopolítica globalmente significativa, porque o peso da Grande Polónia será considerável no futuro.

The Guardian escreveu a este respeito: “Todos os principais partidos polacos apoiam a Ucrânia, mas também esperam que, embora o arco da história seja longo, acabe por se inclinar para uma nova ordem geopolítica. Querem que a Ucrânia saia desta guerra como uma estrela em ascensão, que derrube a secular orientação ocidental da Europa e que faça da Polónia o “vencedor não declarado” do conflito.

 

As mutáveis interpretações da integridade territorial

Esta perspectiva deslumbrante concretizar-se-ia após o fim da guerra, com a anexação da Ucrânia – o que restava dela – à Polónia.

Aliás, por cortesia de Zelensky, que, na sua visita a Varsóvia, no início de Abril, o declarou em termos inequívocos, afirmando que “não haverá mais fronteiras” entre as duas nações (atribuindo-lhe, assim, o poder de fazer o que quiser com o país do qual deveria ser senão o presidente).

Trata-se de um desenvolvimento verdadeiramente surpreendente para uma guerra em que o Ocidente saiu em defesa da integridade territorial da Ucrânia, porque o respeito por essa integridade faz parte das “regras” do mundo que quer preservar. Esta integridade, ameaçada pela Rússia, será preservada pela diluição da Ucrânia na Grande Polónia. Uma esquizofrenia flagrante.

Se esta perspectiva tem algum fundamento, não se deve tanto aos objectivos expansionistas polacos ou às decisões arbitrárias de Zelensky, mas aos patrocinadores internacionais de tal projecto, que são os mesmos círculos que alimentam esta guerra por procuração contra a Rússia, nomeadamente os círculos anglo-saxónicos hiper-atlantistas.

A Foreign Policy, por exemplo, elogia profusamente esta perspectiva, que repropõe a idade de ouro da Grande Polónia em chave moderna, a do Império dos Jaguelões estabelecido no final do século XIV – após a fusão com a Lituânia por casamento – que durou, entre fortunas diversas, até ao século XVI, estendendo o seu domínio à Bielorrússia, Ucrânia, Letónia, Estónia, República Checa, bem como a partes da Prússia, Hungria e Rússia [1].

E é precisamente a este período que se deve o conflito aceso entre a Polónia e a Rússia, pois os russos eram tão hostis ao domínio polaco que o dia da libertação de Moscovo do opressor ainda é celebrado como feriado (que, aliás, coincide com a festa de Nossa Senhora de Kazan, padroeira da Rússia, em parte porque a libertação foi atribuída à sua intercessão).

 

A nação mais poderosa da Europa

O atávico antagonismo Moscovo-Varsóvia converte a Grande Polónia num baluarte ideal para conter a Rússia e quebrar temporalmente as relações entre Moscovo e a Europa Ocidental, como desejam os neoconservadores. (ver vídeo)

Mas, como explica o The Guardian no artigo acima citado, o seu objectivo era também redimensionar o papel geopolítico da Europa Ocidental. De facto, como explica o Foreign Policy, o Império dos Jaguelões nasceu não para enfrentar inimigos orientais, mas para lidar com a “ameaça dos Cavaleiros Teutónicos”.

A continuação do artigo da Foreign Policy é instrutiva, pois, depois de sublinhar as dificuldades da Ucrânia em aderir à NATO e à UE, explica: “Imaginemos que, no final da guerra, a Polónia e a Ucrânia formam um Estado federal ou confederal comum, fundindo as suas respectivas políticas externas e de defesa e integrando a Ucrânia na UE e na NATO quase instantaneamente.

“A União polaco-ucraniana tornar-se-ia o segundo maior país da UE e, provavelmente, a maior potência militar do continente, garantindo um contrapeso mais do que adequado ao tandem franco-alemão, algo de que a UE carece após o Brexit” [para benefício de Londres, acrescente-se].

 

Baluarte anti-russo

“Para os Estados Unidos e a Europa Ocidental, a união seria uma forma permanente de proteger o flanco oriental da Europa da agressão russa. Em vez de um país turbulento e algo caótico de 43 milhões de pessoas à espreita na terra de ninguém, a Europa Ocidental seria protegida da Rússia por um país formidável com uma consciência muito clara da ameaça russa.”

“Sem uma Ucrânia independente, não pode haver uma Polónia independente”, declarou publicamente Jozef Pilsudski, que liderou a Polónia entre as duas grandes guerras, defendendo uma federação da Europa de Leste liderada pelos polacos, que incluiria a Lituânia, a Bielorrússia e a Ucrânia, essencialmente uma repetição da Commonwealth medieval” [polaco-lituana].

Joseph Goebbels e o embaixador alemão von Moltke visitam o Marechal Pilsudski em 15 de Junho de 1934. À direita, o Ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Józef Beck. O Pacto Hitler-Piłsudski, um pacto de não-agressão germano-polaco, foi assinado a 26 de Janeiro de 1934 (Wikipédia).

 

“Não se trata de uma fantasia. No início da guerra, a Polónia aprovou uma lei que permitia aos refugiados ucranianos obterem documentos de identidade polacos, o que lhes dava acesso a uma série de benefícios sociais e de saúde reservados aos cidadãos polacos”.

“O governo ucraniano prometeu retribuir a cortesia estendendo aos polacos que vivem na Ucrânia um estatuto legal negado a outros cidadãos estrangeiros. Com mais de 3 milhões de ucranianos a viver na Polónia […], os laços culturais, sociais e pessoais entre as duas nações estreitam-se todos os dias.”

 

O monstro geopolítico

Uma tal fusão/anexação implica muitas dificuldades, mas a Foreign Policy cita a unificação alemã pós-1989 como um exemplo virtuoso. Pode ser feita “quando existe vontade política”, conclui. E a vontade política existe: os Estados Unidos e a Grã-Bretanha poderão contar com Varsóvia para proteger os seus interesses no continente europeu e contra Moscovo.

Se tivermos em conta o armamento da NATO despejado na Ucrânia e na Polónia, a convergência do movimento neonazi ucraniano com os impulsos nacionalistas polacos, o antagonismo aceso dos dois países em relação à Rússia, incandescente no conflito actual, e os seus objectivos dissimulados em relação à Bielorrússia, tudo isto faz desta criatura geopolítica, nascida da engenharia política anglo-saxónica, um rolo compressor geopolítico encravado na Europa continental. A realização do sonho neoconservador corre assim o risco de se tornar um pesadelo para o resto dos países europeus (e não só).

Para concluir, vale a pena referir que esta perspectiva não é nova. Há já algum tempo que a NATO, em colaboração com políticos locais, trabalha no projecto Intermarium, ou seja, a união dos países da Europa Central e Oriental, desde o Báltico até ao Mar Negro e ao Adriático, numa função anti-russa; tal como há já algum tempo que se fala de uma fusão ucraniano-polaca. Mas pareceu-nos útil registar a aceleração que está a ocorrer.

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Nota

[1] N.T. Sobre o império dos Jaguelões ver wikipedia aqui.

 


Davide Malacaria., jornalista italiano e blogger, escreveu no católico “30giorni” e dirige o sítio Piccole Note de que é fundador. “Trabalhava numa revista, mas já não trabalho. Mas a vontade de olhar para os jornais continuou a ser a de captar lampejos de inteligência e de conforto sobre os assuntos do mundo e da Igreja. E de as comunicar aos outros. Daí a ideia deste pequeno sítio. Uma coisa pobre, sem pretensões, que espero que seja de alguma utilidade para aqueles que partilharem estas páginas comigo. Com o passar do tempo, Piccole note enriqueceu-se com colaborações queridas. Não como resultado de uma procura laboriosa, mas através de uma feliz acumulação espontânea. Uma riqueza para o sítio, mas muito mais para os nossos pobres corações.”

 

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