Espuma dos dias — Como a América militarizou o Ocidente , por Arta Moeini

Seleção e tradução de Francisco Tavares

12 min de leitura

Como a América militarizou o Ocidente

A unidade é uma ilusão destinada a evitar uma divisão europeia

 

Por Arta Moeini

Publicado por  em 20 de Maio de 2023 (original aqui)

 

A “unidade da NATO” é uma miragem (Drew Angerer/Getty Images)

 

No mês que decorreu desde que Emmanuel Macron lançou o seu apelo a uma maior autonomia estratégica europeia, dois campos rivais lutaram pelo seu legado. O primeiro é povoado por atlantistas, como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, indignada com a suposta ingratidão de Macron em relação às garantias de segurança dos EUA e com a sua sugestão de que a Europa deve considerar os seus próprios interesses estratégicos, independentemente de Washington. O segundo contém os apoiantes neo-gaullistas e pan-europeus de Macron, como o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que o elogiou por fazer frente a Washington com uma visão da União Europeia como o “terceiro pólo” alternativo à China e aos Estados Unidos num mundo multipolar.

Ambas as reacções eram inteiramente previsíveis; e ambas sofrem de um equívoco semelhante quanto ao paradigma emergente das relações internacionais actuais e às mudanças estruturais que se perfilam no horizonte.

Do ponto de vista euro-atlântico, a invasão russa da Ucrânia foi um acontecimento galvanizador. A guerra reforçou um quadro maniqueísta, há muito adormecido, de conflito existencial entre a Rússia e o “Ocidente”. O que é, para a Ucrânia, um conflito físico e territorial assumiu assim dimensões ontológicas e apocalípticas. Nos fogos espirituais da guerra, o mito do “Ocidente” foi rebaptizado. Para uma NATO que procurava uma missão desde a queda da União Soviética, esta era a oportunidade de renovar a sua lógica institucional e ideológica, bem como de projectar solidariedade perante uma crise de emergência.

Entretanto, do ponto de vista das elites americanas, a guerra da Ucrânia sublinhou a profunda dependência militar da Europa em relação a Washington e reforçou ainda mais a base centrada nos EUA das relações transatlânticas. Não só justificou ostensivamente a sua posição de longa data de que a Europa deve pagar uma parte muito maior pelos privilégios de uma garantia de segurança dos EUA, como o debate sobre o valor estratégico da NATO e o seu alargamento foi efectivamente silenciado. Desde a invasão, a aliança já se alargou à Finlândia, enquanto a Suécia continua em processo de adesão. Tudo isto foi motivo de celebração, se não mesmo de triunfalismo, nos círculos liberais internacionalistas: A América, juntamente com a ordem ocidental que patrocina contra grandes potências desafiantes como a China, parecia estar a ser vingada.

Não foi, portanto, surpreendente que as observações de Macron tenham suscitado a ira do establishment atlantista da política externa, que não só confunde falsamente a relação transatlântica com a NATO e mede a sua saúde em termos da força e durabilidade da NATO, mas, crucialmente, também interiorizou a abordagem wilsoniana e “centrada na NATO” da América à segurança europeia. Para eles, a resistência da NATO como aliança permanente serve de protecção eficaz contra a formação de uma força de defesa europeia independente de Washington. Contudo, a aliança é também um instrumento para a continuação da influência americana sobre a política europeia. Como Ronald Steel escreveu, com presciência, nos anos sessenta: “Há mais do que um tipo de império, mais do que uma forma de exercer controlo sobre os outros e mais do que uma justificação para o fazer.”

Nas suas memórias de guerra, o antigo general e presidente francês Charles de Gaulle concordou certamente, chamando à NATO uma “falsa pretensão” destinada a “disfarçar o domínio americano sobre a Europa”. Os americanos, argumentou, “devem reconhecer que o melhor aliado dos Estados Unidos não é aquele que se rasteja perante eles, mas aquele que sabe como lhes dizer não”. No entanto, de Gaulle, um orgulhoso aristocrata europeu que teve de lidar com um Franklin Roosevelt imperioso durante a Segunda Guerra Mundial, era também mais pessimista quanto à futura direcção da política dos EUA, temendo que os americanos tivessem desenvolvido “esse gosto pela intervenção em que o instinto de dominação se esconde”.

Do outro lado do Atlântico, as opiniões de De Gaulle encontravam paralelos com as dos guerreiros da guerra fria originais dos Estados Unidos, como George Kennan e Dwight D. Eisenhower. “Se daqui a 10 anos”, observou o então candidato à presidência Eisenhower em 1951, “todas as tropas americanas estacionadas na Europa para fins de defesa nacional não tiverem sido devolvidas aos Estados Unidos, então todo este projecto [da NATO] terá falhado”. Reconhecendo o valor estratégico dos europeus como parceiros iguais e soberanos, Eisenhower entendeu que a política dos EUA deveria ter como objectivo promover uma força de defesa transnacional separada na Europa Ocidental com a capacidade de se tornar totalmente auto-suficiente.

Cerca de sete décadas depois, parece que fechámos o círculo. Mais de um ano após a invasão russa da Ucrânia, o sentimento de consenso produzido pela trágica guerra está a dissipar-se lentamente. Como observou o Presidente francês Emmanuel Macron, com a América a deslocar o seu foco estratégico para a Ásia, a questão da autonomia estratégica europeia deixou de ser académica e passou a ser vital se a Europa quiser ser um dos “pólos” do mundo multipolar emergente, em vez de um vassalo de Washington.

No entanto, há também aqui uma história diferente e mais complexa. Apesar do seu questionável carácter prático, os recentes apelos a uma iniciativa de defesa colectiva baseada na unidade europeia e nas suas reivindicações de identidade partilhada sofrem paradoxalmente de uma predisposição globalista e cesarista: não só estão ligados ao projecto de integração europeia concebido para manter as elites franco-alemãs numa posição de primazia, como a sua mentalidade parece encantada com a noção de competição entre grandes potências à escala global.

De facto, Macron interiorizou a base epistemológica da moderna teoria das relações internacionais e a sua obstinada fixação na realpolitik global. Isto reflecte a tendência moderna demasiado comum de considerar o mundo como cenário espacial de eleição tanto para a vida como para o conflito. “O acontecimento fundamental da modernidade”, como escreveu Heidegger, “é a conquista do mundo como imagem”. No quadro desta visão distorcida, para se manter relevante, uma entidade – seja ela individual, nacional ou organizacional – tem de desenvolver a capacidade de influenciar o global, porque a esperança de dominar o mundo enquanto tal dá um sentido existencial à existência.

No entanto, o regresso da geopolítica e da militarização à Europa também expôs a realidade da competição interna entre os diferentes blocos de Estados sobre os contornos de qualquer agenda colectiva – uma realidade que forçará inevitavelmente a uma reflexão mais interna sobre o que significa ser europeu. Enquanto Macron se concentra na projecção ou exteriorização do poder europeu para competir à escala mundial, a interiorização da Europa é mais provável – um processo que forma novos eixos e blocos em resposta às novas realidades regionais e geopolíticas do continente.

De facto, apesar de todo o discurso de unidade ocidental inspirado pela guerra na Ucrânia, começamos a ver fissuras nas fileiras da aliança da NATO. Há duas razões principais para este facto. Em primeiro lugar, o impulso americano para a expansão da NATO, desde 1991, alargou a aliança, acrescentando uma série de Estados de fronteira ou “equilibradores regionais” da Europa Central e Oriental (PECO). A estratégia, que começou com a administração Clinton mas foi totalmente defendida pela administração George W. Bush, era criar um pilar decididamente pró-americano no continente centrado em Varsóvia, o que forçaria uma deslocação para leste do centro de gravidade da aliança, afastando-o do tradicional eixo franco-alemão.

Ao utilizar o alargamento da NATO para enfraquecer os antigos centros de poder na Europa que lhe poderiam ter feito frente ocasionalmente (como no período que antecedeu a invasão do Iraque), Washington assegurou uma Europa mais complacente a curto prazo. No entanto, o resultado foi a formação de um gigante de 31 membros, composto por três categorias distintas de Estados com profundas assimetrias de poder e baixa compatibilidade de interesses. Como argumentei recentemente com Zachary Paikin:

“A aliança compõe-se agora essencialmente em três níveis: uma grande potência marítima e de âmbito mundial, os Estados Unidos (com os seus parceiros anglo-saxónicos estreitamente alinhados, o Canadá e o Reino Unido); uma série de potências médias” continentais com diferentes pontos de vista sobre a conveniência ou a viabilidade da ordem internacional do pós-guerra liderada pelos EUA, incluindo a França, a Alemanha e a Turquia; e um conjunto de Estados no espaço pós-soviético e em torno dele, liderados pela Polónia, que servem de “equilibradores regionais” contra as potências europeias históricas e a Rússia.”

 

Em consequência, a NATO tornou-se uma aliança altamente heterogénea, cujos membros têm prioridades de segurança e percepções de ameaça diferentes, aumentando a probabilidade de clivagens irreconciliáveis entre os Estados da Europa Ocidental e os seus homólogos da Europa Central e Oriental, especialmente à medida que os Estados Unidos se orientam para o Pacífico. Por outras palavras, a própria expansão da NATO poderá provavelmente ser a causa da sua desagregação final em pelo menos duas estruturas de aliança diferentes, ententes ou acordos regionais minilaterais.

Entretanto, a aliança militar nominalmente do Atlântico Norte já não está confinada ao teatro de operações europeu, e muito menos à sua base original na Europa Ocidental e na região do Atlântico. Ao adoptar as prioridades políticas dos EUA desde a Guerra Fria, a aliança transformou-se num conglomerado militar colectivo global que não só se estende à Europa Oriental, mas também à Eurásia e ao Pacífico, com o seu mais recente posto avançado a ser inaugurado no Japão.

Apesar de os líderes da Europa Central e Oriental, como o Primeiro-Ministro polaco Mateusz Morawiecki, continuarem a insistir nos Estados Unidos como “a base absoluta” da segurança na “nossa parte da Europa”, a maioria das nações europeias continua a optar por apaziguar Washington, mesmo que tenham pouco interesse em aumentar a escalada em locais como Taiwan. Previsivelmente, o imperativo de projectar solidariedade com Washington diminui quanto mais se vai para ocidente na Europa e quanto mais se afasta da presença ontológica da ameaça russa.

Embora Macron defenda um modelo de segurança pan-europeu e centrado na UE, através do qual espera alavancar a França como uma grande potência na cena mundial, a realidade é que a soberania institucional da UE é contrária aos interesses geopolíticos e à soberania nacional dos estados-membros mais pequenos – e de forma mais aguda, dado que uma “orientalização” semelhante também ocorreu em relação à UE, com a Ucrânia, a Moldávia e até a Geórgia previstos para serem futuros estados-membros. Embora seja muito mais provável que receiem ser abandonados por Washington, estes Estados pós-soviéticos são, ironicamente, muito mais soberanistas, conservadores e nacionalistas, tendendo a resistir à agenda liberal institucionalista e integracionista dos seus homólogos da Europa Ocidental. De facto, a reacção frenética aos avisos de Macron sobre o envolvimento da Europa em Taiwan sugere que pode já estar em curso uma luta pelo poder na UE. Assim, os desacordos enraizados sobre uma estratégia comum da UE em relação à China podem muito bem tornar-se o catalisador de uma futura divisão da Europa ao longo de um eixo Oeste-Leste.

Em última análise, o regresso da geopolítica, catapultado pela invasão russa da Ucrânia, significa que a expansão correcta da “Europa”, bem como a sua identidade em termos de segurança, está novamente em dúvida. Esta é uma história de interesses estratégicos divergentes entre “aliados” concorrentes que procuram assegurar a conformidade uns dos outros: cada lado procura impor os seus interesses e a sua visão ontológica como condição sine qua non da aliança ocidental.

E, a médio e longo prazo, esta nova realidade influencia as relações dos Estados europeus tanto com os actores externos como entre si. Por um lado, a Europa continental tem de determinar o âmbito adequado da sua relação com os Estados Unidos (e a anglosfera atlantista). Por outro lado, tem de enfrentar cada vez mais as abordagens divergentes em relação a Moscovo por parte das facções orientais e ocidentais, que provavelmente também afectarão as suas futuras posturas em relação a Pequim (as primeiras procuram a expulsão total da Rússia dos assuntos europeus, as segundas esperam uma eventual normalização das relações).

Enquanto se esforça por resolver a questão da Rússia, a Europa vê-se assim obrigada a reexaminar a sua identidade enquanto domínio cultural e geopolítico distinto, a recalibrar as suas próprias fronteiras e a descobrir a sua orientação estratégica (e a sua voz) face a um “Ocidente colectivo” assente no atlantismo liderado pelos EUA. É aqui que a longa história do continente pode servir de guia.

À medida que se expandia, o Império Romano tornou-se simplesmente demasiado grande, tendo dificuldade em conciliar as prioridades crescentemente incompatíveis das suas diferentes regiões. A extensão excessiva sempre foi a mãe da entropia e o Império Romano em declínio não tinha os recursos e a capacidade militar para responder de forma unificada às preocupações de segurança díspares dos seus quadrantes oriental e ocidental. Esta foi talvez a principal razão pela qual o Imperador Teodósio formalizou uma divisão já crescente entre as duas metades do mundo romano, para que cada uma pudesse responder melhor aos seus desafios imediatos em matéria de segurança. Enquanto o Ocidente continuou preocupado com os problemas económicos e com as incursões bárbaras ao longo da fronteira germânica, o Oriente organizou-se para enfrentar o desafio persistente do seu concorrente, o Império Sassânida [n.t. último império persa pré-islâmico, ver aqui]. Em suma, os romanos tiveram de se dividir em duas Romas para poderem enfrentar mais eficazmente uma série de desafios sistémicos.

O exemplo romano não é certamente uma analogia perfeita para a Europa actual, mas é instrutivo. A Europa actual é muito mais estável e formidável em comparação com a época romana tardia, sem que nenhum dos blocos enfrente a perspectiva de um colapso iminente. No entanto, tal como na Roma tardia, hoje uma divisão ao longo dos eixos franco-alemão e polaco reflectiria as diferentes prioridades estratégicas dos dois lados. Com o tempo, isto poderia significar o fim da NATO enquanto projecto e a sua substituição por duas entidades de segurança minilaterais alternativas – uma na Europa Ocidental, centrada na Alemanha e na França, e outra no Nordeste da Europa, ancorada na Polónia e nos Estados bálticos que lhe são favoráveis.

Num tal realinhamento futuro, a questão alemã continua a ser o problema central. A ascensão do Partido Verde, personificado pela super falcão e americanista ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, está a minar completamente o interesse nacional da Alemanha e o seu sector industrial. A coberto do “europeísmo”, estes internacionalistas liberais alemães estão empenhados numa espécie de negócio faustiano com os Estados Unidos e os seus principais aliados da Europa Central e Oriental, em que Berlim aceita a deslocação da NATO para Leste da Europa, em troca de um maior controlo sobre os imperativos de defesa e económicos da aliança. Isto é insustentável a longo prazo, não só porque está totalmente dependente da presença contínua dos Estados Unidos na Europa, mas também porque contradiz os interesses dos europeus ocidentais, que teriam de financiar e sustentar as austeridades militares de que o Leste necessita para enfrentar uma ameaça russa que as populações ocidentais não sentem tão intensamente.

Desde a Segunda Guerra Mundial, em parte devido ao legado da Guerra Fria e em parte devido à implacável interferência anglo-americana, a Europa deixou de ser o principal motor dos assuntos mundiais. Em vez disso, transformou-se num teatro regional semelhante ao do Médio Oriente, no qual a concorrência entre outras grandes potências – durante muitas décadas, Washington e Moscovo – ocupa o lugar central.

Para que isto mude – para que a Europa recupere a sua especificidade geopolítica -, os seus dirigentes políticos devem começar por reconhecer que não é um monólito, mas um mosaico composto por diferentes blocos. A ideia de “Ocidente” pode ser ontologicamente sedutora ou reconfortante em tempos de caos e tragédia, mas é uma ilusão que arma a paranóia colectiva para a unidade ideológica, concebida para descentralizar a Europa e privar os seus vários elementos de perseguirem os seus interesses particulares, que podem ou não opor-se às cruzadas americanas pela primazia global.

Ao mesmo tempo, Washington também tem de se adaptar às mudanças estruturais e à crescente regionalização que estão a moldar um mundo policêntrico baseado em potências médias civilizacionais. Tal como a “unidade da NATO” é uma miragem destinada a mascarar retoricamente os alicerces frágeis do universalismo ocidental sustentado pelo poder dos Estados Unidos, a “identidade europeia” é uma noção igualmente ambígua e problemática porque, em termos geopolíticos, existem pelo menos duas Europas com interesses de segurança, sistemas de valores e linhagem cultural divergentes. Optar por ignorar esta divisão equivale a nada mais do que dar um pontapé na lata adiando a resolução de um problema difícil – e arrisca-se a fazer estalar a própria aliança ocidental.

 

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O autor: Arta Moeini é o diretor de Investigação no Institute for Peace and Diplomacy e editor fundador de AGON. É um teórico da política internacional e um académico revisionista de Nietzsche e da Modernidade, cujos interesses se situam no nexo de tradições contrastantes do realismo político, da cultura e da política e da teoria das relações internacionais. A investigação actual do Dr. Moeini debruça-se profunda e criticamente sobre a questão do “futuro da ordem internacional” numa perspectiva realista. Introduz uma teoria recalibrada da política internacional centrada numa forma pós-hegemónica e cultural de realismo – tal realismo reconhece a soberania como elementar para a prática dos assuntos internacionais e poderia teoricamente sustentar e impulsionar a prática da “contenção” na política externa como uma condição sine qua non. Defende que a nova ordem mundial emergente seria uma ordem decisivamente “multipolar” e ancorada em vários grandes pólos culturais autónomos – afirmando assim o “pluralismo cultural global” e reconhecendo a necessidade de uma diplomacia humana e cultural assente no respeito mútuo entre nações soberanas e no diálogo aberto entre estadistas para promover uma paz sustentável e gerir conflitos.

O Dr. Moeini é também bolseiro de investigação no Center for the Study of Statesmanship em Washington D.C. e membro eleito da Academia de Filosofia e Letras. Tem um doutoramento (com distinção) e um mestrado em Governo pela Universidade de Georgetown, um mestrado em Relações Internacionais pelo Johns Hopkins SAIS e licenciatura em Ciência Política e Estudos do Próximo Oriente pela Universidade da Califórnia em Berkeley.

 

 

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