Seleção e tradução de Francisco Tavares
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‘Dêem uma oportunidade à guerra’ – Uma ‘guerra que até os pacifistas podem apoiar’
Publicado por em 5 de Junho de 2023 (original aqui)

O Ocidente está agora a acordar para a realidade de uma ordem global emergente, policêntrica e fluida, escreve Alastair Crooke.
Passado mais de um ano sobre a Operação Especial da Rússia, a explosão inicial de entusiasmo europeu perante a atitude ocidental em relação à Rússia dissipou-se. Em vez disso, o ambiente transformou-se em “pavor existencial, uma suspeita persistente de que a civilização [ocidental] se pode destruir a si própria“, escreve a professora Helen Thompson.
Por um instante, a euforia aglutinou-se em torno da suposta projecção da UE como uma potência mundial, como um actor-chave, prestes a competir à escala mundial. Inicialmente, os acontecimentos pareciam favorecer a convicção da Europa quanto aos seus poderes de mercado: A Europa ia derrubar uma grande potência – a Rússia – apenas com um golpe de Estado financeiro. A UE sentia-se com “seis pés de altura”, um gigante.
Na altura, pareceu um momento de galvanização: “A guerra reacendeu um quadro maniqueísta, há muito adormecido, de conflito existencial entre a Rússia e o Ocidente, assumindo dimensões ontológicas e apocalípticas. Nos fogos espirituais da guerra, o mito do ‘Ocidente’ foi rebaptizado“, sugere Arta Moeini [1].
Após a desilusão inicial com a falta de uma “morte rápida”, persistiu a esperança de que, se as sanções tivessem mais tempo e fossem mais abrangentes, a Rússia acabaria por entrar em colapso. Essa esperança transformou-se em pó. E a realidade do que a Europa fez a si própria começou a surgir – daí o terrível aviso da Professora Thomson:
“Aqueles que assumem que o mundo político pode ser reconstruído pelos esforços da vontade humana, nunca antes tiveram de apostar tão fortemente na tecnologia em detrimento da energia [fóssil] – como motor do nosso avanço material”.
No entanto, para os euro-atlantistas, o que a Ucrânia parecia oferecer – finalmente – era a validação do seu desejo de centralizar o poder na UE, o suficiente para merecer um lugar na “mesa de cima” com os EUA, como parceiros no Grande Jogo.
A Ucrânia, para o melhor ou para o pior, sublinhou a profunda dependência militar da Europa em relação a Washington – e à NATO.
Mais particularmente, o conflito na Ucrânia parecia abrir a perspectiva de consolidar a estranha metamorfose da NATO de aliança militar para uma aliança de paz esclarecida e progressista! Como Timothy Garton Ash disse no Guardian, em 2002, “a NATO tornou-se um movimento de paz europeu“, onde se podia ver “John Lennon encontrar-se com George Bush“.
A guerra da Ucrânia é retratada, neste sentido, como a “guerra que até os antigos pacifistas podem apoiar. Tudo o que os seus proponentes parecem estar a cantar é ‘Give War a Chance’ [Dêem uma chance à guerra]”.
Lily Lynch, uma escritora sedeada em Belgrado, argumenta [2] que,
“especialmente nos últimos 12 meses, líderes femininas telegénicas, como a primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, e a primeira-ministra estónia, Kaja Kallas, têm servido cada vez mais como porta-vozes do militarismo esclarecido na Europa… “
“Nenhum partido político na Europa exemplifica melhor a passagem do pacifismo militante para o atlantismo ardente pró-guerra do que os Verdes alemães. A maior parte dos Verdes originais tinham sido radicais durante os protestos estudantis de 1968… Mas à medida que os membros fundadores entravam na meia-idade, começaram a surgir fissuras no partido – que um dia o destruiriam”.
“O Kosovo mudou tudo: o bombardeamento de 78 dias da NATO contra o que restava da Jugoslávia, em 1999, aparentemente para pôr fim aos crimes de guerra cometidos pelas forças de segurança sérvias no Kosovo, transformaria para sempre os Verdes alemães. Para os Verdes, a NATO tornou-se um pacto militar activo, preocupado em difundir e defender valores como os direitos humanos, a democracia, a paz e a liberdade – muito para além das fronteiras dos seus Estados membros”.
Alguns anos mais tarde, em 2002, um funcionário da UE (Robert Cooper) podia imaginar a Europa como um novo “imperialismo liberal”. O “novo” consistia no facto de a Europa ter evitado o poder militar duro, em favor da utilização como arma de uma “narrativa” controlada e da participação controlada no seu mercado. Defendia “uma nova era de império”, em que as potências ocidentais já não teriam de seguir o direito internacional nas suas relações com os Estados “antiquados”; poderiam usar a força militar independentemente das Nações Unidas; e poderiam impor protectorados para substituir regimes que “governassem mal”.
A Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, do partido dos Verdes, Annalena Baerbock, prosseguiu com esta metamorfose, repreendendo os países com tradições de neutralidade militar e implorando-lhes que aderissem à NATO. Ela invocou a frase do arcebispo Desmond Tutu: “Se formos neutros em situações de injustiça, escolhemos o lado do opressor”. E a esquerda europeia ficou completamente cativada. Os principais partidos abandonaram a neutralidade militar e a oposição à guerra – e agora defendem a NATO. É uma inversão espantosa.
Tudo isto pode ter sido música para os ouvidos das euro-elites ansiosas pela ascensão da UE ao estatuto de Grande Potência, mas este Leviatã europeu de soft power foi totalmente sustentado pelo pressuposto não declarado (mas essencial) de que a NATO “protegia a Europa”. Isto implicava, naturalmente, que a UE tinha de se ligar cada vez mais à NATO – e, portanto, aos EUA, que controlam a NATO.
Mas o reverso desta aspiração atlantista – como observou o Presidente Emmanuel Macron – é a sua lógica inexorável de que os europeus acabam simplesmente por se tornar vassalos americanos. Macron estava antes a tentar mobilizar a Europa para a próxima “era dos impérios”, na esperança de a posicionar como um “terceiro polo” num concerto de impérios.
Os atlantistas ficaram devidamente enfurecidos com as afirmações de Macron (que, no entanto, atraiu o apoio de outros Estados da UE). Poderia até parecer (para os atlantistas furiosos) que Macron estava a ecoar o General de Gaulle, que tinha chamado à NATO uma “falsa pretensão” destinada a “disfarçar o estrangulamento da América sobre a Europa”.
Há, no entanto, dois cismas relacionados que resultaram desta NATO “re-imaginada”: Em primeiro lugar, expôs a realidade das rivalidades internas europeias e dos interesses divergentes, precisamente porque a liderança da NATO no conflito da Ucrânia coloca os interesses dos falcões da Europa Central e Oriental que querem “mais América e mais guerra contra a Rússia” contra os do eixo ocidental original da UE que quer autonomia estratégica (ou seja, menos “América” e um fim rápido do conflito).
Em segundo lugar, são sobretudo as economias ocidentais que teriam de suportar os custos e desviar a sua capacidade de produção para cadeias logísticas militares. O preço económico, a desindustrialização não militar e a inflação elevada poderiam ser suficientes para quebrar a Europa – economicamente.
A perspectiva de uma identidade coesa pan-europeia pode ser ontologicamente apelativa – e ser vista como um “acessório apropriado” para um aspirante a “actor mundial” – no entanto, essa identidade torna-se caricatura quando a Europa mosaico é transformada numa identidade abstracta e desterritorializada que reduz as pessoas ao seu mais abstracto.
Paradoxalmente, a guerra da Ucrânia – longe de consolidar a “identidade” da UE, como inicialmente imaginado – fracturou-a sob o stress do esforço concertado para enfraquecer e colapsar a Rússia.
Em segundo lugar, como observou Arta Moeini, director do Instituto para a Paz e a Diplomacia [3]:
“O impulso americano para a expansão da NATO desde 1991 alargou a aliança, acrescentando uma série de Estados com falhas da Europa Central e Oriental. A estratégia, que começou com a administração Clinton mas foi totalmente defendida pela administração George W. Bush, era criar um pilar decididamente pró-americano no continente, centrado em Varsóvia – o que forçaria uma deslocação para leste do centro de gravidade da aliança, afastando-o do tradicional eixo franco-alemão”.
“Ao utilizar o alargamento da NATO para enfraquecer os antigos centros de poder na Europa que poderiam ter ocasionalmente feito frente [a Washington], como no período que antecedeu a invasão do Iraque, Washington assegurou uma Europa mais complacente a curto prazo. O resultado, porém, foi a formação de um gigante de 31 membros com profundas assimetrias de poder e baixa compatibilidade de interesses” – que é muito mais fraco e vulnerável – do que pensa ser”.
Eis a chave: “a UE é muito mais fraca do que julga ser“. O início do conflito foi definido por um grupo de espíritos fascinados pela noção da Europa como um “motor e agitador” nos assuntos mundiais e hipnotizados pela prosperidade da Europa no pós-guerra.
Os líderes da UE convenceram-se de que esta prosperidade lhe tinha conferido a influência e a profundidade económica necessárias para contemplar a guerra – e para enfrentar os seus reveses – com uma sanguinidade panglossiana. O resultado foi, pelo contrário, o inverso: Colocou o seu projecto em perigo.
Em The Imperial Life Cycle, de John Raply e Peter Heather, os autores explicam o ciclo:
“Os impérios tornam-se ricos e poderosos e alcançam a supremacia através da exploração económica da sua periferia colonial. Mas, nesse processo, estimulam inadvertidamente o desenvolvimento económico dessa mesma periferia, até que esta possa recuar e, em última análise, desalojar o seu senhor”.
A prosperidade da Europa no pós-guerra não foi tanto uma criação sua, mas antes beneficiou do fim de um ciclo de acumulação anterior, agora invertido.
“As economias de crescimento mais rápido do mundo estão agora todas na antiga periferia; as economias com pior desempenho estão desproporcionadamente no Ocidente. São estas as tendências económicas que criaram o actual cenário de conflito entre superpotências – sobretudo entre a América e a China”.
A América pode considerar-se isenta dos moldes coloniais europeus, mas, fundamentalmente, o seu modelo é
“uma colagem político-cultural actualizada a que poderíamos chamar “neoliberalismo, NATO e ganga”, que segue o molde imperial intemporal: A grande vaga de descolonização que se seguiu à Segunda Guerra Mundial tinha como objectivo acabar com isso. Mas o sistema de Bretton Woods, que criou um regime comercial que favorecia os produtores industriais em detrimento dos produtores de matérias-primas e consagrou o dólar como moeda de reserva mundial, garantiu que o fluxo líquido de recursos financeiros continuasse a deslocar-se dos países em desenvolvimento para os desenvolvidos. Mesmo quando as economias dos Estados recém-independentes cresceram, as das economias do G7 e dos seus parceiros cresceram mais”.
Um império outrora poderoso é agora desafiado e sente-se em apuros. Surpreendido pela recusa de tantos países em desenvolvimento em se associarem ao isolamento da Rússia, o Ocidente está agora a despertar para a realidade de uma ordem mundial emergente, policêntrica e fluida. Estas tendências deverão manter-se. O perigo é que, economicamente enfraquecidos e em crise, os países ocidentais tentem reapropriar-se do triunfalismo ocidental, mas não tenham a força económica e a profundidade necessárias para o fazer:
“No Império Romano, os Estados periféricos desenvolveram a capacidade política e militar para pôr fim ao domínio romano pela força… O Império Romano poderia ter sobrevivido – se não se tivesse enfraquecido com guerras de escolha – ao seu rival persa em ascensão”.
O último pensamento “transgressor” vai para Tom Luongo: “Permitir que o Ocidente continue a pensar que pode ganhar é a forma mais radical de esmagar um adversário superior“.
Interessante!
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Notas de tradutor
[1] Este artigo de Arta Moeini foi publicado na Viagem dos Argonautas em 27/05/2023 (ver aqui)
[2] Este artigo de Lily Lynch foi publicado na Viagem dos Argonautas em 26/05/2023 (ver aqui)
[3] Vd, nota 1.
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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).