Marriner Eccles, os New Dealers e a criação das Instituições de Bretton Woods — Parte IV- Reflexões sobre Bretton Woods — Texto 7. O Sistema Monetário Internacional de Bretton Woods: Uma Visão Histórica Geral (2/4),  por Michael D. Bordo

Nota de editor:

A parte IV, Reflexões sobre Bretton Woods, é constituída pelos seguintes textos:

Texto 1 – O FMI é -ou foi? – a pedra angular do Sistema Financeiro Internacional, por James M. Boughton

Texto 2 – Modificar a Carta do FMI, por James M. Boughton

Texto 3 – Proposta de alteração do Acordo do Fundo Monetário Internacional com vista a aumentar o nível do comércio mundial, por Harry D. White

Texto 4 – Reflexões sobre Bretton Woods, por Edward M. Bernstein

Texto 5 – Os múltiplos contextos de Bretton Woods, por Harold James

Texto 6 – Desigualdades Nacionais e a Economia Política da Reforma Financeira Global, por Eric Helleiner

Texto 7 – O Sistema Monetário Internacional de Bretton Woods: Uma Visão Histórica Geral, por Michael D. Bordo

 


Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares

17 min de leitura

Parte IV – Texto 7. O Sistema Monetário Internacional de Bretton Woods: Uma Visão Histórica Geral (2/4) (*) 

(*) Dada a extensão do texto, publicá-lo-emos em quatro partes. Hoje publicamos a 2ª parte.

 Por Michael D. Bordo

Extrato de “Uma Retrospectiva sobre o Sistema Bretton Woods: Lições para Reforma Monetária Internacional”

Publicado por  em Janeiro de 1993 (ver aqui)

 

 

(continuação – 2ª parte)

 

1.3 A História de Bretton Woods: Pré-convertibilidade, 1946-58

O sistema monetário internacional que começou após a II Guerra Mundial era muito diferente do sistema que os arquitectos de Bretton Woods tinham previsto. O período de transição da guerra para a paz foi muito mais longo e mais doloroso do que se previa. A plena convertibilidade dos principais países industriais só foi alcançada no final de 1958, embora o sistema tivesse começado a funcionar normalmente em 1955. Dois problemas inter-relacionados dominaram a primeira década do pós-guerra: o bilateralismo e a escassez do dólar.

 

1.3.1 Bilateralismo

Para praticamente todos os países com excepção dos Estados Unidos, o legado da II Guerra Mundial foi o de controlos cambiais e de comércio generalizados. À excepção do dólar, nenhuma das principais moedas era convertível [30]. Ao abrigo do Artigo XIV do acordo de Bretton Woods, os países podiam continuar a utilizar os controlos cambiais durante um período de transição indefinido após o estabelecimento do FMI em 1 de Março de 1947 [31]. Em conjunto com os controlos cambiais, cada país negociou uma série de acordos de pagamentos bilaterais com cada um dos seus parceiros comerciais [32]. A justificação dada para a continuação do uso dos controlos e do bilateralismo foi a escassez de reservas internacionais. Após a guerra, as economias da Europa e da Ásia estavam devastadas. Para produzir as exportações necessárias para a criação de indústrias geradoras de divisas, era necessário capital novo e melhorado. Havia uma escassez aguda de importações essenciais, tanto de alimentos para manter o nível de vida como de matérias-primas e equipamento de capital. Foram utilizados controlos para repartir as escassas reservas.

Os acordos bilaterais em cada país consistiam tipicamente em licenças e quotas para importações e exportações e a afectação de divisas através do banco central, com os bancos comerciais a actuarem como agentes. Cada banco central negociava tipicamente um acordo com os seus parceiros, fornecendo uma facilidade de descoberto na sua moeda denominada “swing” até um limite especificado (semelhante em conceito às reservas internacionais), com liquidação em divisas a partir desse limite. O Reino Unido desenvolveu um conjunto de acordos particularmente complicado. A libra esterlina era convertível para todas as transacções dentro da área da libra esterlina. A certos países privilegiados foi-lhes permitido o estatuto de conta transferível, através do qual podiam liquidar saldos estrangeiros em libras esterlinas ganhas com as suas exportações, e, em 1946-47, estes saldos podiam ser utilizados na liquidação de pagamentos em dólares. Um terceiro grupo de países tinha um estatuto de conta bilateral.

 

1.3.2 A escassez de dólares

No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos detinham dois terços do stock mundial de ouro monetário (ver fig. 1.10).

 

A avalanche de ouro nos Estados Unidos na década de 1930 foi consequência tanto da desvalorização do dólar em 1934, quando a administração Roosevelt aumentou o preço do ouro de $20,67 para $35,00 por onça, como da fuga de capitais da Europa. Durante a guerra, os influxos de ouro continuaram a financiar as despesas em tempo de guerra dos Aliados. No final da Segunda Guerra Mundial, as reservas de ouro e dólares da Europa (e do Japão) estavam esgotadas. A Europa apresentava um enorme défice da balança de transacções correntes, reflectindo a procura de importações essenciais e a reduzida capacidade das indústrias exportadoras [33]. O défice dos países da OCEE (Organização para a Cooperação Económica Europeia), agravado pelo mau Inverno de 1946-47, atingiu um máximo de 9 mil milhões de dólares (Trifina 1957, 32) em 1947 (ver fig. 1.11), equivalente ao montante do excedente da conta corrente dos EUA (ver fig. 1.12), uma vez que, sendo o único grande país industrial a operar a plena capacidade, os Estados Unidos forneciam as importações necessárias.

 

A escassez de dólares foi provavelmente agravada por paridades oficiais sobrevalorizadas pelos principais países industriais europeus fixadas no final de 1946 (ver quadro 1.2 no texto original, aqui).

O FMI pressionou os seus membros a declarar os valores de paridade o mais rapidamente possível. Argumentou-se que os défices da balança de pagamentos enfrentados pela maioria dos países reflectiam a incapacidade estrutural das suas indústrias de exportação e não a falta de competitividade. Se a taxa de câmbio escolhida fosse inadequada, poderia ser corrigida mais tarde. O teste crucial era a capacidade de exportar (Black 1991, cap. 3). A maioria dos países adoptou as suas paridades do dólar de antes da guerra, partindo do princípio de que a inflação do tempo de guerra e do pós-guerra não perturbaria seriamente as suas posições competitivas em relação aos Estados Unidos (Triffin 1957, cap. 2).

A experiência imediata do pós-guerra de enormes défices de pagamentos e esgotamento das reservas internacionais na Europa e a situação oposta nos Estados Unidos levaram muitos a acreditar que a escassez do dólar era permanente. As teorias de uma escassez permanente de dólares abundaram (ver Kindleberger 1950; McDougall 1957; e, para uma avaliação crítica, Yeager 1976, cap. 27, ap.). A explicação chave para uma escassez permanente era que a taxa de avanço da produtividade no resto do mundo nunca alcançaria a dos Estados Unidos. As explicações alternativas incluíam matérias-primas inadequadas, taxas de poupança mais baixas, instabilidade política, e falta de iniciativa empresarial. Os defensores destas teorias recomendaram uma série de propostas políticas, nomeadamente a discriminação contra as exportações dos EUA, a ajuda maciça dos EUA, o encorajamento dos fluxos de capital privado para a Europa, e a desvalorização.

 

1.3.3 Como evoluiu o Sistema

Em meados da década de 1950, ambos os problemas tinham sido resolvidos. As moedas da Europa Ocidental eram virtualmente convertíveis em 1955, e as suas contas correntes eram geralmente excedentárias (ver fig. 1.13). Os principais desenvolvimentos nesta progressão foram o Plano Marshall e a União Europeia de Pagamentos (UEP). Três outros desenvolvimentos importantes neste período foram o declínio da libra esterlina, o reduzido prestígio do FMI, e a ascensão do dólar como moeda chave.

 

O Plano Marshall

O Plano Marshall canalizou cerca de 13 mil milhões de dólares em ajuda (subvenções e empréstimos) para a Europa Ocidental entre 1948 e 1952 (ver Milward 1984; e Hoffman e Maier 1984) [34]. Seguiu-se à ajuda interina dos EUA e das Nações Unidas no pós-guerra em 1947. A Lei de Cooperação Económica de 1948, que criou o Plano Marshall, foi concebida para ajudar os países europeus a expandir as suas economias, restaurar a sua capacidade de exportação, e, ao criar estabilidade económica, preservar a estabilidade política. Estes resultados obter-se-iam aliviando o peso do financiamento de um enorme défice de pagamentos. O plano exigia que os membros cooperassem na liberalização do comércio e dos pagamentos. Consequentemente, a OCEE foi criada em Abril de 1948. Presidiu à atribuição de ajuda aos seus membros, ajuda baseada na dimensão dos défices das suas contas correntes. A ajuda dos EUA era para pagar as importações essenciais e fornecer reservas internacionais. Cada governo beneficiário fornecia fundos equivalentes em moeda local a serem utilizados para investimento na capacidade produtiva da indústria, agricultura, e infra-estruturas. Cada país tinha também uma comissão dos EUA que assessorava o governo anfitrião sobre o gasto dos seus fundos de contrapartida. O plano encorajou a liberalização do comércio intra-europeu e dos pagamentos, concedendo ajuda aos países que alargaram os créditos bilaterais a outros membros. Finalmente, foi criada a UEP. em 1950, sob os auspícios da OCEE, para simplificar a compensação bilateral e preparar o caminho para o multilateralismo.

Em 1952, em parte graças ao Plano Marshall, os países da OCEE tinham conseguido um aumento de 39% da produção industrial, uma duplicação das exportações, um aumento das importações em um terço, e um excedente da conta corrente (Salomão 1976, 18) (ver acima fig. 1.13).

De acordo com Eichengreen e Uzan (1991), o Plano Marshall aumentou permanentemente as taxas de crescimento dos beneficiários, mas não através dos canais tradicionais de investimento, despesas governamentais, e o saldo da balança de transacções correntes. Fê-lo através da melhoria da produtividade e da confiança dos investidores. Isto, por sua vez, foi conseguido reduzindo a instabilidade política associada à “guerra de desgaste” entre trabalhadores e proprietários e preenchendo o papel normalmente desempenhado pelo investimento privado estrangeiro.

 

A UEP e o Regresso à Convertibilidade

Foram necessários doze anos desde a declaração de valores de paridade oficiais por trinta e duas nações em Dezembro de 1946 até à realização da convertibilidade para transacções correntes pelos principais países industriais, tal como especificado nos Artigos de Bretton Woods [35]. As nações da Europa Ocidental tentaram vários esquemas para facilitar o processo de pagamentos antes de estabelecer a UEP (ver Kaplan e Schleiminger 1989).

A UEP, criada a 19 de Setembro de 1950 pelos países da OCEE, deveria inicialmente ter uma duração de dois anos, renovável posteriormente numa base anual. Seguiu o princípio básico de uma câmara de compensação de bancos comerciais. No final de cada mês, cada membro compensaria a sua posição líquida de débito ou crédito (contra todos os outros membros) com a União (o Banco de Compensações Internacionais [BIS] actuando como seu agente). A unidade de conta para estas compensações era o dólar dos EUA. A liquidação era feita em dólares, ouro ou crédito. A divisão entre crédito e dólares/ouro dependia da quota atribuída a cada membro, que por sua vez dependia do seu volume de comércio. A União foi iniciada com um fundo inicial de capital de exploração de 350 milhões de dólares fornecido pelos Estados Unidos.

A UEP teve tanto sucesso na redução do volume de transacções de pagamentos e no fornecimento do contexto para a liberalização gradual dos pagamentos que, em 1953, os bancos comerciais puderam participar em arbitragens de várias moedas (Tew 1988; Yeager 1976). A UEP tornou-se o centro de uma área de liquidação multilateral mundial, incluindo os países das zonas da libra esterlina e do franco.

Em 1954, o Reino Unido alargou o estatuto de conta transferível a todos os países com os quais tinha acordos bilaterais; assim, em 1955 o mundo estava dividido em duas áreas convertíveis diferentes separadas por controlos cambiais: uma área suave, baseada na UEP e na libra esterlina, e uma área dura, baseada no dólar. Os últimos passos para colmatar a lacuna foram dados em Fevereiro de 1955 – quando o Banco de Inglaterra alargou as suas operações no mercado cambial para indexar a taxa de câmbio em libras esterlinas transferíveis e o desconto em libras esterlinas no mercado de Zurique se aproximou da paridade – e oito países declararam as suas moedas convertíveis para transacções em conta corrente em 27 de Dezembro de 1958 [36].

 

O Declínio da Libra Esterlina

No período entre guerras, a libra esterlina partilhou o papel de moeda chave com o dólar. Esperava-se que desempenhasse um papel importante no período do pós-guerra. Conforme os acontecimentos vieram a revelar, a importância da libra esterlina diminuiu durante todo o período de Bretton Woods. No final da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha tinha um enorme défice da balança de pagamentos, especialmente em ouro e dólares (ver fig. 1.14), tal como os outros países europeus. A Grã-Bretanha também tinha uma dívida pendente de 3,7 mil milhões de libras esterlinas acumulada durante a guerra, contraindo empréstimos em grande parte do seu império. Muitos destes saldos foram “bloqueados”, ou seja, tornados inconvertíveis em dólares [37].

 

Em Dezembro de 1945, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha negociaram o Empréstimo Anglo-Americano, que foi ratificado a 15 de Julho de 1946. Em troca de 3,75 mil milhões de dólares dos Estados Unidos e mais 1,25 mil milhões de dólares do Canadá, os britânicos ratificaram os Artigos de Bretton Woods e prometeram restaurar a convertibilidade da conta corrente em dólares, com excepção dos saldos existentes em libras esterlinas, no prazo de um ano. Em 1946-47, o estatuto de contas transferíveis em libras esterlinas foi alargado a todos os países com acordos bilaterais, e, como prometido, a convertibilidade para transacções em conta corrente foi restaurada a 15 de Julho de 1947. A corrida subsequente à libra esterlina esgotou as reservas do Reino Unido em mil milhões de dólares no prazo de um mês, e a convertibilidade foi suspensa a 20 de Agosto de 1947. As contas transferíveis em libras esterlinas voltaram a estar sujeitas a controlo cambial. Em consequência do insucesso do acordo de 1946, o regresso à convertibilidade pelos países da Europa Ocidental, na sequência da reacção cautelosa dos britânicos, foi provavelmente adiado mais tempo do que teria sido de outro modo. O papel da libra esterlina como moeda de reserva foi ainda mais enfraquecido e o do dólar (por defeito) foi reforçado.

Um segundo acontecimento que enfraqueceu ainda mais a credibilidade da libra esterlina como moeda de reserva, mas que ajudou a restaurar o sistema monetário internacional, reduzindo tanto os défices europeus como o excedente dos EUA (e também fortaleceu a economia do Reino Unido), foi a desvalorização da libra esterlina em 1949. Embora os défices da balança de pagamentos e da conta corrente do Reino Unido (contra dólares e ouro) estivessem a diminuir em 1948 e 1949, uma recessão norte-americana reduziu a procura de bens britânicos no segundo trimestre de 1949 (Yeager 1976, 444). Isto, juntamente com a crença crescente de que a libra esterlina seria desvalorizada, desencadeou uma corrida especulativa à libra (Cairncross e Eichengreen 1983, cap. 4). Os especuladores evadiram os controlos cambiais por meio avanços e retrocessos e tomaram uma posição forte contra a libra esterlina no Verão de 1949 [38]. Duas semanas antes do evento, o chanceler do Tesouro, Sir Stafford Cripps, negou que a desvalorização fosse iminente. A 18 de Setembro de 1949, vinte e quatro horas depois de o FMI ter sido informado, a libra foi desvalorizada em 30,5%, para 2,80 dólares. Pouco tempo depois, vinte e três países reduziram a sua paridade em, na maioria dos casos, magnitudes semelhantes (ver quadro 1.2 no texto original, aqui). A desvalorização melhorou o défice da balança corrente e a balança de pagamentos global do Reino Unido (em ouro e dólares), embora se tenha deteriorado novamente nos dois anos seguintes da inflação da Guerra da Coreia (ver fig. 1. 14) [39].

As desvalorizações de 1949 foram importantes para o sistema de Bretton Woods por duas razões. Primeiro, elas, juntamente com a ajuda do Plano Marshall, ajudaram a mover os países europeus de um défice em conta corrente para um excedente, um movimento importante para a eventual restauração da convertibilidade. Em segundo lugar, revelaram uma fraqueza básica do sistema de paridades ajustáveis – a opção unidireccional de especular contra a paridade. Ao permitir alterações na paridade apenas em caso de desequilíbrio fundamental, o sistema de Bretton Woods encorajou as autoridades monetárias a adiar o ajustamento até terem a certeza de que era necessário. Nessa altura, os especuladores também estariam seguros, e tomariam uma posição a partir da qual não poderiam perder. Se a moeda for desvalorizada, eles ganham; se não o for, perdem apenas os juros (se houver) sobre os fundos especulativos (Friedman 1953).

 

O papel do FMI

Uma série de desenvolvimentos e acontecimentos na era da pré-convertibilidade tiveram grande significado para o prestígio e subsequente papel do FMI. O FMI, por intenção, não estava equipado para lidar com o problema da reconstrução do pós-guerra. Embora tenham ocorrido alguns saques limitados antes de 1952, a maior parte da assistência estrutural à balança de pagamentos neste período foi fornecida pelo Plano Marshall e outras ajudas dos EUA, nomeadamente o Empréstimo Anglo-Americano de 1945. A consequência deste desenvolvimento é que novas instituições como a OCEE e instituições existentes como o BIS, o agente da UEP, emergiram como fontes concorrentes da autoridade monetária internacional (Mundell 1969a). Se o plano original da unidade monetária de Keynes tivesse sido adoptado em Bretton Woods, a diferença entre os recursos propostos de 26 mil milhões de dólares e a dotação original do fundo de 8,8 mil milhões de dólares teria quase igualado os 13 mil milhões de dólares concedidos na assistência do Plano Marshall.

Além disso, embora um preceito chave dos Artigos fosse o multilateralismo, pouco foi feito pelo Fundo para atingir esse objectivo antes de 1952, quando, ao abrigo do Artigo XIV, começou a consultar com os membros individuais. O Fundo fez muito pouco para acelerar o processo de alcançar o multilateralismo porque sentiu que não estava capacitado para isso (DeVries 1986, cap. 4). Como consequência, foi criada uma outra agência, a UEP, para providenciar a câmara de compensação que Keynes previa no plano original da unidade monetária (Triffin 1957, cap. 3).

Também, em parte devido à sua oposição às taxas flutuantes, e em parte devido à sua ânsia de pôr o sistema a funcionar, o Fundo foi criticado por procurar uma declaração de valores de paridade demasiado cedo. As paridades fixas resultantes puseram em movimento forças dentro de cada país para resistir à desvalorização até ser demasiado tarde, e as mudanças que finalmente ocorreram em 1949 foram maiores do que o necessário (Scammell 1976, cap. 6) [40]. A crise associada à desvalorização da libra esterlina de 1949, por sua vez, criou mais resistência por parte das autoridades monetárias a alterações na paridade, o que acabou por alterar a natureza do sistema monetário internacional, passando da indexação ajustável pretendida pelos Artigos para um regime de taxa fixa.

O prestígio do Fundo foi severamente abalado por três acontecimentos no período de pré-convertibilidade (Mundell 1969a). O primeiro foi a desvalorização francesa de Janeiro de 1948 (ver quadro 2 no texto original, aqui), quando, numa tentativa de economizar na escassa moeda forte, a França criou um sistema de taxas de câmbio múltiplas. O sistema consistia numa taxa dupla para as moedas fortes, com a taxa oficial de 214,39 francos por dólar para importações básicas e uma taxa flutuante para transacções turísticas e financeiras. A taxa efectiva para as moedas fortes era de 260,26; para as moedas suaves, era a taxa oficial. Nos termos do artigo IV, secção 5, o Fundo censurou a França por criar taxas cruzadas descontínuas entre o dólar e a libra, desviando assim as exportações a serem reexportadas para os Estados Unidos via França (Horsefield 1969a, 203). O acesso aos recursos do Fundo foi negado à França até 1952. A França acabou com as taxas cruzadas descontínuas em Outubro de 1948 e adoptou uma taxa unificada na desvalorização de 1949 (ver quadro 1.2 no texto original, aqui). Uma vez que a França tinha acesso à ajuda do Plano Marshall, as acções do Fundo tiveram pouco efeito.

O segundo acontecimento foi a desvalorização da libra esterlina em Setembro de 1949. Embora o pessoal do Fundo tivesse anteriormente aconselhado os britânicos a desvalorizar (Black 1991, 67-68), o Fundo recebeu apenas um pré-aviso de vinte e quatro horas, e o tamanho da desvalorização foi maior do que o sugerido. Esta situação contrastava com o artigo IV, secção 5, que exigia que um membro consultasse o Fundo quando estivesse a ser considerada uma desvalorização superior a 10%, devendo o Fundo dispor de mais de setenta e duas horas para concordar ou objetar [41]. De acordo com Mundell (1969a), este acontecimento revelou a incapacidade do Fundo em dissuadir uma grande potência de seguir o seu interesse soberano.

O terceiro evento foi a decisão do Canadá, em Setembro de 1950, de flutuar a sua moeda (ver quadro 1.2). Confrontado com uma entrada maciça de capital dos Estados Unidos, o Banco do Canadá decidiu flutuar o dólar canadiano em vez de arriscar uma revalorização inadequada a partir da paridade de 0,909 dólares [42]. O Fundo foi altamente crítico em relação à acção. As autoridades monetárias canadianas garantiram ao Fundo que a flutuação era apenas temporária e que uma nova paridade seria declarada quando um novo equilíbrio tivesse sido alcançado. O dólar canadiano flutuou até 1961. O facto de os movimentos da taxa do dólar canadiano serem pequenos (ver fig. 1.8 acima) e de não haver evidência de especulação desestabilizadora (Yeager 1976, cap. 26), enfraqueceu significativamente o caso feito contra a flutuação pelo Fundo em vários relatórios anuais.

Finalmente, os recursos do Fundo eram insuficientes para resolver o problema emergente de liquidez dos anos de 1960. A diferença entre o crescimento das reservas internacionais necessárias para financiar o crescimento da produção e comércio reais e evitar a deflação e o crescimento do stock mundial de ouro monetário foi largamente satisfeita por um aumento das reservas oficiais de dólares americanos resultante do crescimento dos défices da balança de pagamentos dos EUA. Quando a convertibilidade total foi alcançada, o dólar americano estava a servir a função tampão para a qual os Artigos destinavam os recursos do Fundo (Mundell 1969a, 481).

Se o plano original da unidade monetária de Keynes tivesse sido adoptado, e se os Estados Unidos tivessem empreendido a ajuda do pós-guerra através dessa moeda e não através da ajuda do Plano Marshall, os Estados Unidos teriam acumulado facilidades de descoberto suficientes para financiar a maioria dos seus défices nas décadas de 1950 e 1960 (Gardner 1972, 27). No entanto, a liquidez extra teria provavelmente alimentado uma taxa de inflação mundial mais elevada do que a que efectivamente ocorreu.

 

A emergência do dólar como moeda chave

Durante o período de pré-convertibilidade, o dólar emergiu como a moeda chave do sistema monetário internacional. No início do período, a libra esterlina era a moeda dominante nas reservas mundiais, mas, no final dos anos 50, foi eclipsada pelo dólar (ver fig. 1.15).

 

Além disso, os dados sobrevalorizam o papel da libra esterlina porque incluem os saldos bloqueados da libra esterlina e a libra esterlina utilizada apenas nas áreas da libra esterlina e das contas transferíveis. Devido à enorme dimensão do papel que os Estados Unidos desempenham na economia mundial, à sua grande importância no comércio mundial, e aos seus mercados de capitais abertos e profundos, o dólar surgiu nos anos 50 como moeda internacional privada (McKinnon 1988). Foi utilizado como unidade de conta na facturação de importações e exportações, como meio de troca ao servir de moeda veicular para transacções interbancárias, e como reserva de valor para créditos privados. Simultaneamente, o dólar emergiu como moeda oficial internacional. Isto resultou da sua utilização como unidade de conta para definir as paridades dos países membros no FMI. O dólar foi também utilizado como moeda de intervenção primária – os membros mantiveram as suas paridades fixas através da compra e venda de dólares. Finalmente, devido ao seu papel como unidade de conta e meio de troca e à sua crescente aceitação privada, tornou-se a principal reserva internacional de valor a ser utilizada como reserva. A crescente procura privada e oficial de dólares foi suprida através de saídas de capital privadas e oficiais a longo prazo, superiores a um excedente da balança de transacções correntes, o que produziu uma série de défices da balança de pagamentos oficiais com início em 1950 (ver fig. 1.12 acima e 1.18 abaixo). Em 1958-59, o défice da balança de pagamentos tornou-se uma fonte de preocupação política. A primeira de muitas tentativas para conter a maré começou com políticas que vincularam a ajuda externa às exportações dos EUA e com a persuasão de governos estrangeiros para remover barreiras discriminatórias contra as exportações dos EUA (Salomão 1976, 27).

O sistema Bretton Woods convertível que começou no final de 1958 diferia em vários aspectos do sistema pretendido pelos seus arquitectos. Estes incluem o domínio dos Estados Unidos na ordem monetária internacional (que em breve seria desafiado por uma Europa continental reemergente), o reduzido prestígio do FMI, a ascensão do dólar como moeda chave e o declínio da libra esterlina, uma mudança do sistema de paridade ajustável para um regime de taxa de câmbio fixa de facto, e, finalmente, a crescente mobilidade do capital. Apesar da prevalência de controlos de capital na maioria dos países, a mobilidade do capital privado a longo prazo aumentou consideravelmente nos anos 1950, e os movimentos especulativos de capital a curto prazo (através de avanços e recuos) surgiram como uma força poderosa para impedir as tentativas das autoridades monetárias de manter uma paridade distante dos fundamentos. Embora as perspectivas para o sistema de Bretton Woods nunca parecessem tão positivas como em Dezembro de 1958, os sinais emergentes de fraqueza iriam em breve ser revelados.

 


Notas

[30] Sob a clássica norma de ouro, a convertibilidade referia-se à capacidade de um indivíduo privado livremente converter uma unidade de qualquer moeda nacional em ouro ao preço fixo oficial. Uma suspensão de convertibilidade significava que a taxa de câmbio entre o ouro e uma moeda nacional se tornava flexível, mas o indivíduo podia ainda transaccionar livremente em qualquer dos activos (Triffin 1960, 22). Na véspera da II Guerra Mundial, a convertibilidade referia-se à capacidade de um particular de fazer e receber livremente pagamentos em transacções internacionais em termos da moeda de outro país. Sob Bretton Woods, convertibilidade significava a liberdade dos indivíduos de se envolverem em transacções em contas correntes sem estar sujeito a controlos cambiais. Tew (1988, 50) refere-se a isto como ” convertibilidade de mercado ” e distingue-a da “convertibilidade oficial”, em que as autoridades monetárias de cada país devem estar livremente dispostas a comprar e vender divisas (principalmente dólares) para manter a paridade fixada (dentro da margem de 1%) e os Estados Unidos devem estar livremente dispostos a comprar e vender ouro para manter o preço fixo de $35,00 por onça (dentro da margem de 1%). Ele refere-se a ambos “convertibilidade de mercado e “convertibilidade oficial” como “Convertibilidade de Bretton Woods” (ver também McKinnon 1979, cap. 2; e Black 1987).

[31] Nos termos do Artigo XIV, três anos após 1 de Março de 1947, o FMI começaria a apresentar relatórios sobre os países com controlos em vigor; dois anos mais tarde começaria a consultar os membros individuais, aconselhando-os sobre políticas para restabelecer o equilíbrio e a convertibilidade dos pagamentos, Países que não fizessem progressos satisfatórios seriam censurados e, em última análise, ser-lhes-ia pedido que abandonassem o Fundo. Em facto real, o Fundo sempre aceitou a razão do país membro para permanecer ao abrigo do Artigo XIV.

[32] Só na Europa Ocidental foram negociados duzentos acordos em 1947 (Yeager 1976, 407)

[33] Condições semelhantes prevaleciam no Japão (Salomão 1976, 14).

[34] O Japão recebeu 1,25 mil milhões de dólares em assistência (empréstimo e subvenções) (Salomão 1976, 15)

[35] Contudo, a aceitação oficial do estatuto do Artigo VIII não foi alcançada até 1961.

[36] Só a Alemanha, pouco tempo depois, tornou convertíveis as transacções da conta de capital.

[37] Aproximadamente 2,3 mil milhões de libras esterlinas eram detidas pela área da libra esterlina em Dezembro de 1945. Em 1947, antes de se tentar a convertibilidade, foi acordado que 1,6 mil milhões de libras esterlinas seriam bloqueados (Pressnell 1986). Os saldos foram consideravelmente reduzidos na década seguinte pela desvalorização de 1949 e por uma sucessão dos excedentes da conta corrente.

[38] Os compradores estrangeiros de bens da área da libra esterlina atrasaram as suas compras e pagamentos, enquanto os importadores na área da libra esterlina aceleraram os seus pagamentos.

[39] Em reacção, o controverso plano ROBOT circulou em 1952 no interior do governo britânico, instando as autoridades a flutuar a libra, torná-la convertível em ouro e dólares e a financiar os saldos de libras esterlinas (ver Cairncross 1985, cap. 9).

[40] De acordo com Triffin (1957, cap. 3), o Fundo cometeu um erro ao não declarar a escassez do dólar em 1946. Se o tivesse feito, a desastrosa experiência com a convertibilidade da libra esterlina em 1947 poderia ter sido evitada.

[41] Setenta e duas horas se a desvalorização se situasse entre 10% e 20%.

[42] O Canadá tinha inicialmente fixado a sua paridade em 1946 em $1 .OO mas desvalorizada com o Reino Unido em 1949 a $0,909.

 


O autor: Michael D. Bordo [1942-], economista canadiano e estado-unidense, actualmente, Professor de Economia e Professor Distinto de Economia na Universidade Rutgers, é associado de investigação no National Bureau of Economic Research, bem como um Distinguished Visiting Fellow na Hoover Institution da Universidade de Stanford, é o terceiro historiador económico mais influente a nível mundial, de acordo com os rankings da RePEc/IDEAS, foi aluno de Milton Friedman e foi co-autor de numerosos livros e artigos com Anna Schwartz. Licenciado em Economia pela London School of Economics é doutorado pela Universidade de Chicago. (para mais detalhe ver wikipedia aqui)

 

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