A Guerra na Ucrânia — A Ucrânia destruiu a barragem de Kakhovka: uma avaliação forense, por Thomas Palley

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

A Ucrânia destruiu a barragem de Kakhovka: uma avaliação forense

 Por Thomas Palley

Publicado por em 4 de julho de 2023 (original aqui)

 

A barragem de Kakhovka era uma estrutura maciça de duas milhas de comprimento que represava o rio Dnieper, que divide a Ucrânia. Foi construída pela União Soviética em 1956 e elevou o rio Dnieper em 16 metros (52 pés), criando o reservatório de Kakhovka. A barragem foi destruída em 6 de Junho de 2023, dando origem a inundações maciças a jusante em ambas as margens do rio, o que provocou uma catástrofe social e ambiental. A cidade de Kherson, situada perto da foz do rio com o Mar Negro, também foi inundada.

Tanto a Ucrânia como a Rússia negam ter feito explodir a barragem e culpam a outra parte. Nesta fase, todas as provas são circunstanciais e conjecturais, mas uma avaliação forense dessas provas sugere, de forma esmagadora, que a Ucrânia destruiu a barragem. Apesar disso, os políticos e os meios de comunicação social dos EUA e da Europa Ocidental têm procurado uniformemente implicar a Rússia como autora do crime.

Em vários aspectos, a destruição da barragem recorda em muitos aspetos a destruição, em 2022, do gasoduto Nord Stream 2, propriedade da Rússia. Esse gasoduto era uma infraestrutura civil; foi destruído por uma explosão; a sua destruição causou um enorme desastre ambiental; a Ucrânia nega qualquer papel; muitos governos europeus afirmaram que a Rússia tinha feito explodir o seu próprio gasoduto; e os meios de comunicação social ocidentais afirmaram explicitamente que a Rússia o tinha feito (Time) ou procuraram tendenciosamente implicar a Rússia (New York Times, Guardian).

 

As provas: uma avaliação forense

As provas relativas à destruição da barragem são circunstanciais, conjecturais e multidimensionais. O melhor ponto de partida é o motivo.

(1) O principal argumento contra a Rússia é o facto de ter feito explodir a barragem para perturbar a contraofensiva pré-anunciada da Ucrânia e ganhar vantagem militar. Este argumento é facilmente rejeitado.

A destruição da barragem inundou ambas as margens do rio Dnieper. As forças ucranianas estavam estacionadas na retaguarda, fora do alcance da artilharia russa. Em contrapartida, as forças russas estavam entrincheiradas na margem leste, antecipando a ofensiva da Ucrânia. O Guardian noticiou recentemente que: “A explosão – que Kiev e os governos ocidentais dizem ter sido provocada por Moscovo – arrastou as posições russas na linha da frente….. A explosão da barragem hidroelétrica facilitou a travessia do rio depois de o nível das águas ter baixado, deixando para trás uma planície arenosa”. De facto, a Ucrânia estabeleceu agora uma pequena cabeça de ponte na margem leste do rio, perto da destruída ponte Antonivskyi.

A Rússia estava, sem dúvida, consciente de que as inundações seriam militarmente contraproducentes. Assim, o The Moscow Times (que é altamente crítico em relação ao Presidente Putin) relatou em Novembro de 2022 que: “Os níveis do terreno significam que as inundações seriam provavelmente piores na margem esquerda do Dnipro, controlada pela Rússia, tornando a detonação de explosivos na barragem uma medida improvável da parte de Moscovo. [Destruir a barragem] significaria que a Rússia estaria a rebentar com o seu próprio pé“, disse o analista militar Michael Kofman no podcast War on the Rocks, no mês passado. “Inundaria a parte de Kherson [região] controlada pela Rússia… muito mais do que a parte ocidental que os ucranianos provavelmente libertarão“.

(2) Outra razão pela qual a Rússia não destruiria a barragem (e a Ucrânia sim) é o abastecimento de água da Crimeia. O reservatório de Kakhovka é uma importante fonte de abastecimento de água para a península seca da Crimeia através do canal da Crimeia do Norte. A Ucrânia cortou esse abastecimento em 2014. Ao recapturar a barragem de Kakhovka no início de 2022, a Rússia restabeleceu imediatamente o abastecimento, demonstrando a sua elevada prioridade. A destruição da barragem pela Rússia seria uma ferida auto-infligida. A destruição da barragem pela Ucrânia seria enquadrar-se nas aspirações ucranianas de perturbar e recapturar a Crimeia.

(3) Os anteriores ataques ucranianos à barragem demonstram a vontade da Ucrânia de a destruir. Em Novembro de 2022, durante a sua contraofensiva em Kherson, a Ucrânia bombardeou e danificou a barragem, numa tentativa infrutífera de cortar a retirada da Rússia através das linhas rodoviárias e ferroviárias no topo da barragem. Além disso, o Presidente Zelinsky avisou publicamente que a Rússia tinha minado a sala de geração da barragem, pelo que a Ucrânia tinha conhecimento desse facto. De acordo com as suas práticas, a Ucrânia negou esses ataques – como se a Rússia estivesse a bombardear as suas próprias tropas, cortando a sua linha de retirada e arriscando-se a inundar as suas posições em Kherson, que se encontravam de ambos os lados do rio.

Ainda mais contundente, o The Washington Post (29 de Dezembro de 2022) relata que o general ucraniano Andriy Kovalchuk, comandante da frente sul, reconheceu ter utilizado mísseis HIMARS de alta precisão fornecidos pelos EUA para atacar a barragem em Novembro de 2022: “Kovalchuk considerou a possibilidade de inundar o rio. Os ucranianos, disse ele, chegaram mesmo a efetuar um ataque de teste com um lançador HIMARS a uma das comportas da barragem de Nova Kakhovka, fazendo três buracos no metal para ver se a água do Dnieper podia subir o suficiente para impedir as travessias russas, mas sem inundar as aldeias vizinhas. O teste foi um sucesso, disse Kovalchuk….

(4) O silêncio dos serviços secretos militares dos EUA e do Reino Unido sugere que foi a Ucrânia que o fez. Os EUA e o Reino Unido estão profundamente envolvidos na guerra e empenhados em desacreditar e acusar a Rússia. No entanto, os serviços de informações de nenhum dos dois países fizeram declarações oficiais de que a Rússia fez explodir a barragem. A razão é que, se fizessem tais declarações, teriam de apresentar provas que ou não têm ou (mais provavelmente) mostram que foi a Ucrânia que o fez. O silêncio pode ser revelador, como na história de Sherlock Holmes em que a pista decisiva é o cão que não ladra.

(5) O momento da destruição não faz sentido do ponto de vista russo. A Rússia detém a barragem desde o início de 2022. Não a destruiu quando as forças russas estavam a retirar de Kharkiv, em Setembro de 2022, e também não destruiu a barragem quando as forças russas se retiraram do oeste de Kherson, em Novembro de 2022. Agora, a maré da guerra virou a favor da Rússia, como evidenciado pela captura de Bakhmut e pelo fracasso da contraofensiva ucraniana; pelos apelos da Ucrânia a armamento adicional e mais avançado; e pelos apelos do antigo Secretário-Geral da NATO, Anders Rasmussen, para colocar tropas polacas na Ucrânia. Estas circunstâncias explicam por que razão a Ucrânia tinha um incentivo militar para rebentar a barragem agora, e não a Rússia.

(6) Por último, Kherson é uma região de forte componente étnica russa, o que desencorajaria a Rússia de a inundar e encorajaria a Ucrânia a fazê-lo. Ao longo do conflito, as considerações demográficas foram quase totalmente negligenciadas pelos meios de comunicação ocidentais. A guerra foi travada nas regiões de Donbas e Kherson, que são quase exclusivamente de etnia russa. A preocupação com a segurança dos russos étnicos é uma grande prioridade para Moscovo, o que explica por que razão a Rússia evacuou locais antes do conflito. Em contrapartida, a Ucrânia é controlada pelas forças Azov/Bandera, que estão empenhadas em extinguir a presença étnica russa. Isso foi evidente na batalha de Mariupol, em que as forças de ocupação Azov utilizaram a população civil como escudo humano. É também evidente na purga em curso na Ucrânia da cultura russa, na proibição da língua russa e na proibição dos direitos políticos para os russos étnicos. Tendo em conta estas atitudes, a destruição de centros etnicamente russos convém à Ucrânia e ajuda a explicar a sua vontade psicológica de cometer um crime de tais proporções.

 

Como é que a barragem foi destruída?

As provas acima referidas apontam para a culpabilidade da Ucrânia. No entanto, permanece a questão de saber como é que a barragem foi destruída. Há duas possibilidades.

A primeira possibilidade é que a Ucrânia voltou a atingir as comportas da barragem de Kokhovka com mísseis HIMARS, como tinha feito em Novembro de 2022. Desta vez, a barragem cedeu devido à fragilidade estrutural acumulada por falta de manutenção e procedimentos operacionais anormais. Esta explicação explicaria tanto as assinaturas de explosão que foram detectadas sismograficamente como as assinaturas de calor infravermelho que foram detectadas pelos satélites espiões dos EUA. É também consistente com o argumento do colapso estrutural apresentado pela Conflict Intelligence Team (CIT), uma organização anti-Putin que monitoriza a atividade militar global da Rússia.

A segunda possibilidade é a Ucrânia ter disparado mísseis HIMARS contra um mecanismo detonador que se encontrava no topo da barragem. A barragem foi minada para fins militares, tal como todas as pontes e passagens. A Ucrânia sabia disso e surgiram fotografias que mostram um carro carregado de explosivos e ligado à estrutura da barragem. Esta explicação seria consistente com uma explosão a partir do interior da barragem. Seria também coerente com as assinaturas sísmicas e de infravermelhos detectadas, e a explicação do CIT seria também pertinente, uma vez que a barragem estava vulnerável devido a um desgaste inadequado.

 

Consequências

A provável destruição da barragem de Kakhovka pela Ucrânia e a ocultação cúmplice do Ocidente têm consequências importantes.

Em primeiro lugar, o Presidente Zelensky e os dirigentes ocidentais acusaram a Rússia de ecocídio e de crime de guerra. Se agora se demonstrar que a Ucrânia é responsável, isso torna a Ucrânia culpada desses crimes. Se foram utilizados mísseis HIMARS no ataque, isso tornaria os EUA cúmplices, pelo menos em espírito. Se tiverem sido utilizados mísseis britânicos Sorm Shadow, o Reino Unido será cúmplice. A extensão do envolvimento do pessoal americano ou britânico é uma incógnita.

Em segundo lugar, o facto de o Ocidente ocultar o provável ataque da Ucrânia torna-o cúmplice e tem consequências perigosas. Deixar a Ucrânia escapar impune promete encorajar ainda mais a imprudência ucraniana. Há muito que se receia que a Ucrânia ataque a central nuclear de Zaporizhzia e alegue que foi a Rússia que o fez. O ataque à barragem de Kakhovka pode ser visto como um ensaio, e o Presidente Zelensky já começou a intensificar a retórica nuclear sobre Zaporizhzia.

Um ataque à [Central Nuclear de] Zaporizhzia seria uma catástrofe para toda a Europa de Leste, para a Europa Central e mesmo para a Europa Ocidental. Para além disso, existe o risco de a Rússia interpretar esse ataque como semelhante a uma bomba suja e reagir da mesma forma. A cumplicidade tem as suas consequências.

Em terceiro lugar, o facto de o Ocidente ter ocultado o provável ataque ucraniano à barragem de Kakhovka tem repercussões noutras coberturas relativas à guerra e ameaça a democracia ocidental. A falsidade e desonestidade em relação aos assuntos externos não fica no exterior. Em vez disso, sangra para dentro e afecta o corpo político interno.

 

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O autor: Thomas Palley [1956-] é um economista estado-unidense. Foi economista chefe na Comissão de Análise Económica e de Segurança EUA-China (agência independente do governo dos Estados Unidos criada em 2000), sendo atualmente membro de Schwartz Economic Growth da New America Foundation. É licenciado em Letras pela Universidade de Oxford (1976) e obteve um mestrado em relações internacionais e um doutoramento em economia pela Universidade de Yale. Palley fundou o projecto “Economics for Democratic & Open Societies”. Palley cujo objectivo é “estimular a discussão pública sobre que tipos de acordos e condições económicas são necessários para promover a democracia e a sociedade aberta”. As posições anteriores de Palley incluem director do Projecto de Reforma da Globalização do Open Society Institute, e director assistente de Políticas Públicas para a AFL-CIO.

O seu trabalho tem abrangido teoria e política macroeconómica, finanças e comércio internacionais, desenvolvimento económico e mercados de trabalho onde a sua abordagem é pós-keynesiana.

 

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