A guerra na Ucrânia — “Vislumbres de um fim de jogo na Ucrânia”, por M.K. Bhadrakumar

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 min de leitura

Vislumbres de um fim de jogo na Ucrânia

Uma coisa é a Rússia saber que está, de facto, a combater a NATO na Ucrânia. Mas é uma coisa completamente diferente que a guerra possa escalar dramaticamente para uma guerra com a Polónia, escreve M.K. Bhadrakumar.

Por M.K. Bhadrakumar

Publicado por em 26 de Julho de 2023 (ver aqui)

Publicação original em (ver aqui)

 

Batalhão de infantaria polaco reforçado com pelotão aerotransportado ucraniano em exercícios conjuntos na Polónia, 2008. (MOD Ucrânia/Wikimedia Commons)

 

O problema da guerra na Ucrânia é que tem sido tudo fumo e espelhos. Os objectivos russos de “desmilitarização” e “desnazificação” da Ucrânia ganharam uma aparência surrealista. A narrativa ocidental de que a guerra é entre a Rússia e a Ucrânia, em que a questão central é o princípio vestefaliano da soberania nacional, foi-se desgastando progressivamente, deixando um vazio.

Hoje, percebe-se que a guerra é, na verdade, entre a Rússia e a NATO e que a Ucrânia deixou de ser um país soberano desde 2014, quando a CIA e as agências ocidentais irmãs – Alemanha, Reino Unido, França, Suécia, etc. – instalaram um regime fantoche em Kiev.

O nevoeiro da guerra está a dissipar-se e as linhas de batalha estão a tornar-se visíveis. A nível de autoridade, está a começar uma discussão franca sobre o fim do jogo.

É certo que a videoconferência do Presidente russo Vladimir Putin com os membros permanentes do Conselho de Segurança, em Moscovo, na passada sexta-feira, e o seu encontro com o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, em São Petersburgo, no domingo, se tornam o momento decisivo. As duas transcrições estão lado a lado e devem ser lidas em conjunto. (aqui e aqui)

Não há dúvida de que os dois eventos foram cuidadosamente coreografados pelos altos funcionários do Kremlin e tinham como objetivo transmitir múltiplas mensagens. A Rússia exala a confiança de que alcançou o domínio na frente de batalha – tendo esmagado os militares ucranianos e de ter passado a “contraofensiva” de Kiev para o espelho retrovisor. Mas Moscovo prevê que a administração Biden pode ter em mente um plano de guerra ainda maior.

Na reunião do Conselho de Segurança, Putin “desclassificou” os relatórios dos serviços secretos que chegaram a Moscovo, provenientes de várias fontes, que indicavam a existência de movimentos para inserir na Ucrânia Ocidental uma força expedicionária polaca. Putin chamou-lhe “uma unidade militar regular bem organizada e equipada para ser utilizada em operações” na Ucrânia Ocidental “para a ocupação subsequente destes territórios”.

 

Um Jogo Perigoso

 

Encontro Lukashenko-Putin no Kremlin, 2021. (Presidente russo/Wikimedia Commons)

 

De facto, há uma longa história de revanchismo polaco. Putin, ele próprio um grande estudioso de história, falou longamente sobre o assunto. Parecia estar certo de que, se as autoridades de Kiev concordassem com este plano polaco-americano, “como os traidores costumam fazer, o problema é deles. Nós não vamos interferir”.

Mas, acrescentou Putin, “a Bielorrússia faz parte do Estado da União, e lançar uma agressão contra a Bielorrússia significaria lançar uma agressão contra a Federação Russa. Responderemos a isso com todos os recursos de que dispomos”. Putin advertiu que o que está em curso “é um jogo extremamente perigoso, e os autores de tais planos devem pensar nas consequências”. 

No domingo, durante a reunião com Putin em São Petersburgo, Lukashenko retomou o fio da meada. Informou Putin sobre os novos destacamentos polacos perto da fronteira com a Bielorrússia – a apenas 40 km de Brest – e sobre outros preparativos em curso – a abertura de uma oficina de reparação de tanques Leopard na Polónia, a ativação de um aeródromo em Rzeszow, na fronteira ucraniana (a cerca de 100 km de Lvov), para utilização dos americanos que transferem armamento, mercenários, etc.

Lukashenko disse:

“Isto é inaceitável para nós. A alienação da Ucrânia Ocidental, o desmembramento da Ucrânia e a transferência das suas terras para a Polónia são inaceitáveis. Se as pessoas da Ucrânia Ocidental nos pedirem, dar-lhes-emos apoio. Peço-lhe [a si Putin] que discuta e reflicta sobre esta questão. Naturalmente, gostaria que nos apoiasse nesta matéria. Se surgir a necessidade desse apoio, se a Ucrânia Ocidental nos pedir ajuda, então prestaremos assistência e apoio às pessoas na Ucrânia Ocidental. Se isso acontecer, apoiá-los-emos de todas as formas possíveis”.

Lukashenko continuou: “Estou a pedir-vos que discutam esta questão e que reflictam sobre ela. Obviamente, gostaria que nos apoiassem nesta matéria. Com esse apoio, e se a Ucrânia ocidental pedir essa ajuda, iremos sem dúvida prestar assistência e apoio à população ocidental da Ucrânia“.

Como seria de esperar, Putin não respondeu – pelo menos, não publicamente. Lukashenko caracterizou a intervenção polaca como equivalente ao desmembramento da Ucrânia e à sua absorção “à peça” pela NATO. Lukashenko foi direto: “Isto é apoiado pelos americanos”. Curiosamente, também pediu o destacamento de combatentes Wagner para combater a ameaça à Bielorrússia.

O que importa é que Putin e Lukashenko tenham tido essa discussão publicamente. É evidente que ambos falaram com base em informações dos serviços secretos. Antecipam um ponto de inflexão no futuro.

Uma coisa é o povo russo estar bem ciente de que o seu país está de facto a combater a NATO na Ucrânia. Mas é uma coisa completamente diferente que a guerra possa escalar dramaticamente para uma guerra com a Polónia, um exército da NATO que os EUA consideram o seu parceiro mais importante na Europa continental.

Ao falar longamente sobre o revanchismo polaco, que tem um historial controverso na história europeia moderna, Putin calculou provavelmente que na Europa, nomeadamente na Polónia, poderia haver resistência às maquinações que poderiam arrastar a NATO para uma guerra continental com a Rússia.

De igual modo, a Polónia também deve estar a hesitar. Segundo o Politico, as forças armadas polacas têm cerca de 150 mil homens, dos quais 30 mil pertencem a uma nova força de defesa territorial que são “soldados de fim de semana que passam por 16 dias de treino seguidos de cursos de reciclagem”.

Mais uma vez, o poder militar da Polónia não se traduz em influência política na Europa, porque as forças centristas que dominam a UE desconfiam de Varsóvia, que é controlada pelo partido nacionalista Lei e Justiça, cujo desrespeito pelas normas democráticas e pelo Estado de direito prejudicou a reputação da Polónia em todo o bloco.

Acima de tudo, a Polónia tem razões para estar preocupada com a fiabilidade de Washington. No futuro, a preocupação dos dirigentes polacos será, paradoxalmente, a possibilidade de Donald Trump não regressar à presidência em 2024. Apesar da cooperação com o Pentágono durante a guerra da Ucrânia, os actuais dirigentes polacos continuam a desconfiar do Presidente Joe Biden – tal como acontece com o Primeiro-Ministro húngaro Viktor Orban.

 

Aviso ao Ocidente

 

Forças Armadas polacas em parceria com os EUA para treinar soldados ucranianos, 2016. (Sargento do Exército dos EUA Elizabeth Tarr/Wikimedia Commons)

 

Em suma, portanto, é lógico que as ameaças de Lukashenko e a lição de Putin sobre a história europeia podem ser consideradas mais como um aviso ao Ocidente, com o objetivo de modular um final de jogo na Ucrânia que seja ótimo para os interesses russos. Um desmembramento da Ucrânia ou uma expansão incontrolável da guerra para além das suas fronteiras não será do interesse da Rússia.

Mas a liderança do Kremlin terá em conta a contingência de as loucuras de Washington, decorrentes da sua necessidade desesperada de salvar a face de uma derrota humilhante na guerra por procuração, poderem não deixar outra alternativa às forças russas senão atravessar o Dnieper e avançar até à fronteira com a Polónia para impedir a ocupação da Ucrânia Ocidental pelo chamado Triângulo de Lublin, uma aliança regional com uma virulenta orientação anti-russa que inclui a Polónia, a Lituânia e a Ucrânia, formada em julho de 2020 e promovida por Washington.

As reuniões consecutivas de Putin em Moscovo e em São Petersburgo esclarecem o pensamento russo quanto a três elementos-chave do jogo final na Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia não tem intenções de conquistar o território da Ucrânia Ocidental, mas insistirá em ter uma palavra a dizer sobre a forma como as novas fronteiras do país e o futuro regime se irão parecer e atuar, o que significa que não será permitido um Estado anti-russo.

Em segundo lugar, o plano da administração Biden para arrancar a vitória das garras da derrota na guerra não tem qualquer hipótese, uma vez que a Rússia não hesitará em contrariar qualquer tentativa continuada dos EUA e da NATO de utilizar o território ucraniano como trampolim para travar uma nova guerra por procuração, o que significa que a absorção da Ucrânia pela NATO continuará a ser uma fantasia.

Em terceiro lugar, e mais importante, o exército russo, endurecido pela guerra e apoiado por uma poderosa indústria de defesa e uma economia robusta, não hesitará em confrontar os países membros da NATO que fazem fronteira com a Ucrânia se estes transgredirem os interesses fundamentais da Rússia, o que significa que os interesses fundamentais da Rússia não ficarão reféns do Artigo 5º da Carta da NATO.

 

_______

O autor: M.K. Bhadrakumar, antigo embaixador da Índia, analista político. Durante 3 décadas a sua carreira diplomática foi dedicada a missões nos territórios da antiga União Soviética, Paquistão, Irão e Turquia. Escreve principalmente sobre a política externa indiana e os assuntos do Médio Oriente, Eurásia, Ásia Central, Ásia do Sul e Ásia-Pacífico. O blog Indian Punchline, segundo o autor, reflecte as marcas de um humanista contra o pano de fundo do “século asiático”, sublinhando isto porque vivemos em tempos difíceis, especialmente na Índia, com uma polarização tão aguda nos discursos – “Ou estás connosco ou contra nós”.

 

Leave a Reply