Seleção e tradução de Francisco Tavares
13 min de leitura
Requiem pelo pesadelo da NATO
Publicado por em 28 de Julho de 2023 (original aqui)

A disfunção da aliança militar Atlântica sobre a adesão da Ucrânia foi apenas a manifestação mais pública do desastre que foi a Cimeira de Vilnius.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, emerge como uma figura trágica no drama que se desenrola que é o conflito russo-ucraniano.
Ele foi convidado a sacrificar a vida dos seus compatriotas para ser visto pelos EUA e pela NATO como digno de ingressar no seu clube. Mas quando o sacrifício não produziu o resultado desejado (isto é, a derrota estratégica da Rússia), a porta da NATO, que tinha sido deixada um pouco aberta para incitar a Ucrânia a realizar a sua tarefa suicida, foi fechada.
Apesar das falsas maquinações da NATO para manter a perspetiva da potencial adesão Ucraniana (o Conselho Ucrânia-NATO, criado durante a Cimeira de Vilnius no início deste mês, é um excelente exemplo), todos sabem que a adesão ucraniana à aliança transatlântica é uma fantasia.
A Ucrânia tem agora de escolher um veneno à sua escolha – aceitar uma paz que torne as reivindicações territoriais russas permanentes, ao mesmo tempo que abandona para sempre a possibilidade, por mais distante que seja, de ser membro da NATO; ou continuar a lutar, com o resultado provável da perda adicional de território e da destruição da nação e do povo ucranianos.
A autobiografia de Robert Graves [1], Goodbye to All That, cumpre uma dupla função ao fornecer um modelo para a Ucrânia enquanto representação do traçado da morte da velha ordem da Europa — a aliança da NATO dominada pelos EUA, a União Europeia, a ordem internacional baseada em regras e todas as estruturas pós-Segunda Guerra Mundial, que mantiveram o mundo ocidental unido por quase oito décadas. Estão todos a desmoronar-se à nossa volta.
A luta de Graves para se adaptar à Inglaterra do pós-guerra no rescaldo dos horrores da Primeira Guerra Mundial, e as suas observações de uma nação lutando coletivamente para se definir, é um conto de advertência para o que está reservado à Ucrânia.
Enquanto a Ucrânia se despede do seu antigo eu, deve também abandonar os seus sonhos de se tornar una com uma comunidade Europeia cuja longevidade é muito duvidosa. Isto deve-se, em grande parte, à sua desastrosa participação no conflito russo-ucraniano.

A Ucrânia nunca mais será a mesma depois do fim desta guerra. Nem a aliança da NATO. Tendo definido a guerra por procuração que está a travar na Ucrânia contra a Rússia em termos existenciais, a NATO lutará para encontrar relevância e propósito num mundo pós-conflito.
A Cimeira de Vilnius de 11 a 12 de Julho representou, em muitos aspectos, o ponto alto da velha ordem Europeia. A cimeira foi o requiem para um pesadelo da própria criação da Europa – a morte de uma nação, a anulação de um continente e o fim de uma ordem que há muito perdera a sua legitimidade.
Estranho Isolamento
Observando as reportagens da Cimeira de Vilnius, fiquei impressionado com o estranho isolamento de Zelensky quando ele procurou misturar-se com os líderes das nações da NATO que o chamavam de amigo e aliado, mas tratavam-no a ele e à nação que ele lidera como qualquer coisa menos que isso. Zelensky fez todos os esforços para colocar a Ucrânia em posição de membro da NATO, mas apenas conseguiu um arranhão na porta de entrada.
Informado com antecedência de um comunicado proposto pela NATO declarando que a Ucrânia seria convidada a aderir à aliança “quando os aliados concordarem e as condições forem cumpridas”, o presidente ucraniano foi deixado para desabafar a sua frustração para uma imprensa complacente, disposta a aproveitar a chance de acender o fogo do escândalo. “Não tem precedentes e é absurdo”, lamentou Zelensky, ” quando o prazo não está definido nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia. Embora, ao mesmo tempo, sejam acrescentadas palavras vagas sobre ‘condições’, mesmo para convidar a Ucrânia.”
Acalmado depois de ser castigado pelos seus mestres da NATO, Zelensky mudou mais tarde de tom, falando do seu desejo de aderir à NATO, mas de uma forma nova e sem confrontos. “Os resultados da Cimeira foram bons”, disse Zelensky ao Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, durante uma conferência de imprensa conjunta, “mas se tivéssemos recebido um convite [à NATO], teriam sido perfeitos.”

Mais tarde, durante uma conferência de imprensa com o Presidente dos EUA, Joe Biden, Zelensky ficou mudo enquanto Biden continuava a deitar água fria sobre as perspectivas de adesão da Ucrânia à NATO. “Acabamos de concluir a primeira reunião do Conselho NATO-Ucrânia e — onde todos os nossos aliados concordaram que o futuro da Ucrânia está com a NATO”, disse Biden. “Todos os aliados concordaram em levantar os requisitos para o plano de ação de adesão da Ucrânia e criar um caminho para a adesão à NATO, enquanto a Ucrânia continua a fazer progressos nas reformas necessárias.”
Podia-se sentir a raiva e a frustração nos olhos de Zelensky enquanto ouvia Biden acrescentar insulto à injúria chamando-o de “Vladimir.”
Ver aqui
A disfunção da NATO em relação à adesão da Ucrânia, no entanto, foi apenas a manifestação mais pública do desastre que foi a Cimeira de Vilnius.
A fantasia da unidade
Enquanto Zelensky desempenhava o papel de alguém que procurava desesperadamente um encontro para o baile — na noite do baile — o presidente turco, Recep Erdogan, estava a fazer-se difícil. Depois de concordar em permitir que a Finlândia e a Suécia aderissem à NATO durante a Cimeira de Madrid do ano passado, Erdogan estabeleceu condições rigorosas que impediram, até abril de 2023, a ratificação da Finlândia como o mais novo membro da NATO. Ele deixou a Suécia em apuros na véspera da Cimeira de Vilnius.
Pouco antes de partir para Vilnius, Erdogan surpreendeu muitos ao associar a ratificação turca da candidatura da Suécia à adesão à aliança transatlântica ao desejo da Turquia de aderir à UE. “Primeiro, venham e abram o caminho para a Turquia na União Europeia e depois abriremos o caminho para a Suécia, assim como fizemos para a Finlândia”, declarou Erdogan. Pouco depois de chegar à Lituânia, Erdogan reuniu-se com o Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, e o primeiro-ministro sueco, Ulf Kristersson, após o que Erdogan inverteu o discurso, dizendo que a Turquia apoiava a adesão da Suécia à NATO.

Embora Erdogan não tenha recebido o seu convite para aderir à UE, a Suécia prometeu apoiar activamente a modernização da União Aduaneira UE-Turquia e a liberalização de vistos no que diz respeito aos pedidos de cidadãos turcos para viajar sem visto para a Europa.
Mas a reunião Stoltenberg-Erdogan-Kristersson foi apenas uma fachada de uma negociação difícil e astuta mais substancial entre Erdogan e Biden, que viu a Turquia receber luz verde para comprar novos caças F-16 e modernizar a sua frota existente de caças F-16.
A obtenção de caças F-16 foi um dos principais objetivos da Turquia desde que os EUA, em 2019, removeram a Turquia de um programa internacional liderado pelos EUA para desenvolver e produzir o caça F-35 após a compra pela Turquia do sistema de defesa aérea S-400 da Rússia. A venda do F-16, no entanto, foi paralisada após a imposição de sanções à Turquia em Dezembro de 2020 como parte da Lei de combate aos adversários da América através de sanções (CAATSA) – a primeira vez que tais sanções visaram um membro da NATO.

O desejo dos EUA de ver a Suécia entrar na NATO o mais rapidamente possível parecia ser justificação suficiente para que o governo Biden renunciasse às sanções da CAATSA e enviasse o acordo F-16 ao Congresso dos EUA com a sua bênção. Mas a adesão da Suécia não está garantida.
Enquanto os EUA e a NATO pressionam para que Erdogan convoque uma sessão especial do Parlamento para ratificar a adesão Sueca, Erdogan está a adiar até Outubro, quando o Parlamento turco se reúne. Erdogan está à procura de garantias de que o acordo F-16 será aprovado pelo Congresso dos EUA. No entanto, isso não é certo dadas as preocupações entre os legisladores sobre a relação tensa da Turquia com a Grécia, aliada da NATO, e a visão de que a redução do conflito é tão importante quanto a adesão da Suécia à NATO.
Para resumir: Biden e Stoltenberg destacaram a decisão de Erdogan de transferir o pedido de adesão da Suécia à NATO para o Parlamento turco para ratificação como um símbolo da unidade “sólida” da NATO.
Não dito é que Erdogan teve que ameaçar a NATO para que os EUA articulassem um suborno que fez com que os EUA renunciassem à sanção prévia de um aliado da NATO e, ao mesmo tempo, obrigassem os EUA a considerar as implicações de segurança do acordo, dada a hostilidade aberta que existe entre a Turquia e a Grécia, membro da NATO.
Webster define “unidade” como “uma condição de harmonia” e ” a qualidade ou estado de estar unido”. Quando se trata do uso adequado desse termo, não penso que a relação contenciosa entre a Turquia e a NATO possa ser admitida.
Acrescente-se a isso a rejeição da França de uma proposta de abertura de um gabinete de ligação da NATO no Japão, e o desacordo aberto em curso da Hungria com a NATO e a UE sobre como responder ao conflito da Rússia com a Ucrânia, e encontramos então o edifício da NATO crivado de fissuras de descontentamento e desacordo que só podem aprofundar-se quando a NATO olha de frente para a probabilidade crescente de uma vitória militar russa.
Goodbye to All That
Se as semanas que antecederam a Cimeira de Vilnius foram definidas pelo desejo da NATO de ver a tão esperada e muito apregoada contra-ofensiva Ucraniana atingir o seu potencial máximo, os dias que precederam a reunião da NATO confrontaram tanto a Ucrânia como os seus aliados ocidentais com a realidade de que a guerra também não está a correr bem.
A contra-ofensiva ucraniana foi formada em torno de uma força central de cerca de 60.000 soldados ucranianos que receberam treino especial da NATO e dos militares europeus em armas e táticas destinadas a derrotar as defesas russas. Desde que a contra-ofensiva começou em 8 de Junho, a Ucrânia perdeu quase metade dessas tropas e um terço do equipamento fornecido — nomeadamente dezenas de tanques de batalha principais Leopard e veículos de combate de infantaria Bradly que foram vistos por muitos como uma tecnologia revolucionária.
Em 1993, George Soros postulou uma arquitetura para uma nova ordem mundial baseada nos Estados Unidos como a única superpotência remanescente que supervisiona uma rede de alianças, sendo a mais importante a NATO, que cercaria o hemisfério norte contra uma ameaça russa.
“Os Estados Unidos”, escreveu Soros, ” não seriam chamados a agir como polícias do mundo. Quando agisse, agiria em conjunto com os outros. Aliás, a combinação de mão-de-obra da Europa Oriental com as capacidades técnicas da NATO aumentaria consideravelmente o potencial militar” de qualquer estrutura de aliança liderada pelos EUA”, porque reduziria o risco de sacos de cadáveres para os países da NATO, que é o principal obstáculo à sua vontade de agir.”
Quarenta anos depois, este mesmo cenário está a desenrolar-se nos sangrentos campos de batalha da Rússia e da Ucrânia. Os milhares de milhões de dólares de assistência militar prestada pelos EUA, NATO e outras nações europeias são a manifestação viva das “capacidades técnicas” de que Soros falou, que estão a ser casadas com “mão-de-obra da Europa Oriental” (isto é, Ucrânia) para aumentar o potencial militar da NATO de uma forma que reduza “o risco de sacos de cadáveres para os países da NATO.”
Não são mencionados as centenas de milhares de sacos de cadáveres que já foram lançados no solo escuro da Ucrânia, sublinhando assim o desprezo insensível por essa tragédia humana por parte dos participantes de Vilnius.
[1] N.T. Robert Graves (1895-1985) foi um escritor britânico que viveu em Espanha. Poeta e romancista, participou na 1ª guerra mundial. A sua obra mais célebre Eu, Claudio, imperador romano foi publicada em 1934. (para mais informação ver wikipedia aqui)
___________
O autor: Scott Ritter é um antigo oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA que serviu na antiga União Soviética implementando tratados de controlo de armas, no Golfo Pérsico durante a Operação Tempestade no Deserto e no Iraque supervisionando o desarmamento das ADM. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, publicado pela Clarity Press.